Contato Carl Sagan …Contato deve ser a obra de Carl Sagan mais conhecida. O cientista e divulgador de ciências experimentou pela primeira vez o gênero romance para apresentar suas idéias a respeito do universo, da humanidade e da própria ciência. O livro conta a história de uma pesquisadora que utiliza radiotelescópios à procura de vestígios de vida inteligente fora da Terra. A trama avança quando um sinal é detectado. Com certeza a parte do livro que mais me intrigou foi as especulações sobre as conseqüências de sabermos que não estamos sozinhos. As regras da economia, religião e política internacional seriam seriamente modificadas na análise de Carl. O livro nos faz pensar, e vale a pena a leitura. Carl Sagan Contato Para Alexandra que atinge a maioridade no Milênio. Possamos nós deixar à tua geração um mundo melhor do que a nós foi deixado. Título do original inglês: Contact by Carl Sagan, 1985 Tradução: Fernando Pinto Rodrigues Revisão de texto: Manuel Joaquim Vieira Composição: Textype — Artes Gráficas 2. a edição: Abril de 1997 PARTE I A MENSAGEM O meu coração treme qual frágil folha. Os planetas rodopiam nos meus sonhos. As estrelas comprimem-se contra a minha janela. Giro no meu sono. A minha cama é um cálido planeta.      MARVIN MERCER P.S. 153 Fifth Grade Harlem Cidade de Nova Iorque, N.I. (1981) CAPÍTULO I Números transcendentes Pequena mosca, Teu estival folguedo A minha descuidada mão Afugentou. Não sou eu Uma mosca como tu? Ou não és tu Um homem como eu? Pois eu danço, E bebo, e canto, Até que mão distraída Afugente o meu vôo. Pelos padrões humanos não poderia ter sido artificial: era do tamanho de um mundo. Mas era tão extravagante e complicadamente formada, tão claramente planejada para qualquer objetivo complexo, que só podia ter sido a expressão de uma idéia. Deslizando em órbita polar à volta da grande estrela azul-branca, parecia um imenso, imperfeito poliedro incrustado de milhões de lapas taciformes. Cada taça estava apontada a uma parte especial do céu. Cada constelação estava a ser observada. O mundo poliédrico desempenhava a sua enigmática função havia tempos infinitos. Era muito paciente. Podia dar-se ao luxo de esperar eternamente. Quando a tiraram para fora, nem sequer chorava. Tinha a minúscula fronte enrugada e os seus olhos abriram-se muito. Olhou para as luzes brilhantes, para os vultos vestidos de branco e verde e para a mulher deitada na mesa debaixo dela. Sons de algum modo familiares passaram sobre ela. O seu rosto tinha uma expressão estranha para uma recém-nascida — perplexidade, talvez. Quando tinha dois anos, levantava as mãos acima da cabeça e dizia muito docemente: «Papá, pega.» Os amigos dele mostravam-se surpreendidos. A garotinha era delicada. «Não se trata de delicadeza», dizia-lhes o pai. «Ela costumava gritar quando queria que lhe pegassem. Por isso, uma vez, disse — Ellie, não precisas de gritar. Basta dizeres: ‘papá, pega.’ Os miúdos são espertos. Não é verdade, Presh?» Por isso, ela agora estava lá em cima, numa altitude estonteante, empoleirada nos ombros do pai e agarrada ao seu cabelo, que começava a ficar ralo. A vida era melhor ali em cima, muito mais segura do que gatinhar através de uma floresta de pernas. Lá em baixo, qualquer pessoa a podia pisar. Podia perder-se. Agarrou-se com mais força. Deixando os macacos, dobraram uma esquina e deparou-se-lhes um grande bicho de pernas delgadas, pescoço comprido, corpo sarapintado e chifres pequeninos na cabeça. Erguia-se acima deles. «Têm o pescoço tão comprido que a fala não pode sair», disse o pai. Ela teve pena da pobre criatura condenada ao silêncio. Mas sentiu também uma alegria pela sua existência, um prazer por haver tais maravilhas. — Vá, Ellie — instigou-a a mãe brandamente, com um tom de satisfação na voz familiar. — Lê. A irmã da mãe não acreditara que Ellie, com três anos, soubesse ler. A tia estava convencida de que as histórias infantis tinham sido decoradas. Naquela altura desciam vagarosamente a State Street, num fresco dia de Março, e tinham parado diante de uma montra. Lá dentro, uma pedra vermelho-borgonha cintilava ao sol. — Joalheiro — leu Ellie devagar, pronunciando quatro sílabas. Com um sentimento de culpa, entrou no quarto de hóspedes. O velho aparelho de rádio Motorola estava na prateleira, como ela se lembrava. Era muito grande e pesado e, ao apertá-lo contra o peito, quase o deixou cair. Na parte de trás estavam escritas as palavras: «Perigo.. Não furar.» Mas ela sabia que, se não estivesse ligado, não haveria perigo. Com a língua entre os lábios, retirou os parafusos e expôs as entranhas do aparelho. Como desconfiara, não havia orquestras minúsculas nem locutores em miniatura a viver silenciosamente as suas pequenas vidas à espera do momento em que o botão fosse girado, com um clique, para «ligado». Em vez disso, havia bonitos tubos de vidro, um pouco parecidos com lâmpadas elétricas. Alguns assemelham-se às igrejas de Moscovo que vira apresentadas num livro. As pontes da sua base estavam perfeitamente concebidas para se ajustarem aos receptáculos onde se achavam encaixadas. Com a parte de trás tirada e o botão em «ligado», introduziu a ficha do aparelho numa tomada próxima, na parede. Se não lhe tocasse, se não se aproximasse, como poderia magoá-la? Decorridos poucos momentos, alguns tubos começaram a brilhar suavemente, mas não se ouviu nenhum som. O aparelho estava «estragado» e tinha sido posto de parte havia alguns anos, em favor de um modelo mais moderno. Um dos tubos não brilhava. Ela tirou a ficha da tomada e retirou o tubo renitente do seu receptáculo. No interior havia um quadrado metálico, preso a fios pequeninos. A eletricidade passa ao longo dos fios, pensou vagamente. Mas primeiro tinha de entrar no tubo. Uma das pontas da base parecia dobrada e, com um bocadinho de trabalho, ela conseguiu endireitá-la. Voltou a encaixar o tubo e a ligar o aparelho e ficou encantada ao vê-lo começar a brilhar e ouvir um oceano de estática erguer-se à sua volta. Olhou na direção da porta fechada com um sobressalto e reduziu o volume do som. Girou o botão que dizia «freqüência» e encontrou uma voz que falava agitadamente — tanto quanto conseguiu entender, acerca de uma máquina russa que estava no céu a girar interminavelmente à volta da Terra. Interminavelmente, pensou. Girou de novo o botão, à procura de outras estações. Passado um bocado, receosa de ser descoberta, desligou o aparelho, voltou a aparafusar frouxamente a parte de trás e, ainda com maior dificuldade, levantou a telefonia e tornou a pô-la na prateleira. Quando saía do quarto de hóspedes, um pouco ofegante, a mãe apareceu e ela sobressaltou-se de novo. — Aconteceu alguma coisa, Ellie? — Não, mamã. Aparentou um ar casual, mas o seu coração batia depressa e as palmas das suas mãos suavam. Sentou-se num lugar favorito do pequeno quintal das traseiras e, com os joelhos erguidos até ao queixo, pensou no interior do rádio. Todos aqueles tubos são realmente necessários? Que aconteceria se os tirássemos um de cada vez? O pai chamara-lhes uma vez tubos de vácuo. Que acontecia dentro de um tubo de vácuo? Não havia realmente nenhum ar lá dentro? Como entravam no aparelho a música das orquestras e a voz dos locutores? Eles gostavam de dizer «estamos no ar». O rádio era transportado pelo ar? Que acontecia dentro do aparelho de rádio quando mudávamos de estação? Que era a «freqüência»? Porque era necessário ligá-lo a uma tomada para trabalhar? Seria possível fazer uma espécie de mapa que mostrasse como a eletricidade passa através do aparelho? Seria possível desmontá-lo sem se magoar? E montá-lo de novo? — Ellie, que andaste tu a fazer? — perguntou a mãe, ao passar com roupa lavada para estender. — Nada, mãezinha. Estou só a pensar. Nas férias do seu décimo verão levaram-na a visitar dois primos que detestava, num aglomerado de chalés ao longo de um lago da península Setentrional do Michigan. Não conseguia compreender que pessoas que viviam num lago no Wisconsin se expusessem a conduzir durante cinco horas a fim de irem para outro lago no Michigan. Especialmente para verem dois rapazes ruins e infantis. Só com dez e onze anos. Autênticos patetas. Como podia o seu pai, que noutros aspectos a compreendia tão bem, querer que ela brincasse dia após dia com idiotas? Passou todo o verão a evitá-los. Numa noite abafada e sem lua, depois do jantar, desceu sozinha até ao cais arborizado. Tinha acabado de passar um barco a motor e o barco a remos do tio, amarrado à doca, balançava suavemente na água estrelada. Tirando as cigarras distantes e um grito quase subliminal que ecoava através do lago, o silêncio era total. Olhou para o céu luminoso salpicado de estrelas e sentiu o coração acelerado. Sem olhar para baixo, apenas com a mão estendida para se guiar, encontrou uma extensão de erva macia e deitou-se. O céu resplandecia de estrelas. Havia milhares delas, a maioria a piscar e algumas luminosas e firmes. Olhando cuidadosamente, podiam ver-se tênues diferenças de cor. Aquela luminosa, ali, não era azulada? Tateou de novo o chão debaixo dela; era sólido, firme… tranqüilizador. Cautelosa, sentou-se e olhou para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo da longa extensão da beira-lago. Conseguia ver ambos os lados da água. O mundo parece apenas plano, pensou. Na realidade, é redondo. Tudo isto é uma grande bola… a girar no meio do céu… uma vez por dia. Tentou imaginar o mundo a girar, com milhões de pessoas coladas a ele, falando línguas diferentes, usando roupas engraçadas, todas presas à mesma bola. Voltou a estender-se e tentou sentir a rotação. Talvez conseguisse senti-la só um bocadinho. Do outro lado do lago, uma estrela brilhante piscava entre os ramos mais altos. Semi-cerrando os olhos, distinguiam-se raios de luz a sair dela, como se dançassem. Semi-cerrando-os um pouco mais, os raios mudavam obedientemente de comprimento e de forma. Seria imaginação sua ou… a estrela estava agora inquestionavelmente acima das árvores? Poucos minutos antes espreitara entre os ramos, que ora a ocultavam, ora a revelavam. Agora estava mais alta, não havia dúvida nenhuma a esse respeito. Era a isso que se referiam quando diziam que uma estrela estava a nascer, pensou. A Terra virava-se na outra direção. De um lado do céu, as estrelas nasciam. Este lado chamava-se Oriente. Do outro lado do céu, atrás dela, para lá dos chalés, as estrelas estavam a pôr-se. Esse lado chamava-se Ocidente. Uma vez em cada dia, a Terra dava uma volta completa e as mesmas estrelas tornavam a nascer no mesmo lugar. Mas, se uma coisa tão grande como a Terra girava uma vez por dia, tinha de mover-se absurdamente depressa. Toda a gente que ela conhecia tinha de estar a girar a uma velocidade incrível. Pensou que conseguia agora sentir realmente a Terra girar — não apenas imaginá-lo na sua cabeça, mas senti-lo de fato na boca do estômago. Era como descer num elevador rápido. Esticou o pescoço mais para trás, para que o seu campo de visão não fosse contaminado por nada na Terra, até ver somente céu preto e estrelas brilhantes. Com um sentimento de satisfação, foi avassalada pela idéia de que o melhor seria agarrar-se aos tufos de erva de cada lado, mas agarrar-se com todas as forças, ou então cairia no céu, com o corpo pequeno e às cambalhotas minguado pela imensa esfera escurecida que ficava em baixo. Gritou, gritou de fato, antes de conseguir abafar o grito com o punho. Foi assim que os primos conseguiram encontrá-la. Correndo pela encosta abaixo, descobriram-lhe no rosto um misto invulgar de embaraço e surpresa que prontamente assimilaram, ansiosos por surpreenderem qualquer pequena imprudência que pudessem ir contar aos pais dela. O livro era melhor do que o filme. Para começar, tinha muito mais coisas. E alguns dos desenhos eram tremendamente diferentes do filme. Mas, em ambos, Pinóquio — um rapaz de madeira de tamanho natural que adquiria magicamente vida — usava uma espécie de cabresto e parecia ter cavilhas nas articulações. Quando Geppetto está mesmo a acabar de fazer Pinóquio, vira as costas ao boneco e é imediatamente atirado de pantanas por um pontapé bem apontado. Nesse instante chega o amigo do carpinteiro e pergunta-lhe que está ele a fazer estatelado no chão. «Estou a ensinar», responde Geppetto com dignidade, «o alfabeto às formigas.» Ellie achava a frase muito espirituosa e deliciava-se a contá-la às amigas. Mas todas as vezes que a citava ficava a pairar na margem do seu consciente uma pergunta não formulada: Podia-se ensinar o alfabeto às formigas? E querer-se-ia? Ali em baixo, com centenas de insetos apressados capazes de percorrer toda a nossa pele ou até de nos picar? De resto, que podiam as formigas saber? Às vezes levantava-se no meio da noite para ir à casa de banho e encontrava lá o pai, em calças de pijama, de pescoço esticado para cima e uma espécie de patrício desdém a acompanhar o creme de barbear que lhe cobria o lábio superior. «Olá, Presh», dizia ele. Era um diminutivo de «preciosa», e ela amava-o por a tratar assim. Por que se barbeava ele à noite, quando ninguém poderia saber se tinha a barba crescida? «Porque», respondia-lhe ele a sorrir, «a tua mãe saberá.» Anos mais tarde, ela descobriu que compreendera aquela observação brincalhona apenas incompletamente. Os seus pais tinham estado apaixonados. Depois das aulas montara na bicicleta e fora para um pequeno parque no lago. Tirou de um pequeno alforje O Manual do Radiamador e Um Americano na Corte do Rei Artur. Após momentânea hesitação, decidiu-se pelo segundo. O herói de Mark Twain tinha levado uma traulitada na cabeça e acordara na Inglaterra arturiana. Talvez fosse tudo um sonho ou uma ilusão. Mas talvez fosse real. Era possível viajar para trás no tempo? Com o queixo nos joelhos, procurou uma passagem preferida: aquela em que o herói de Mark Twain é encontrado pela primeira vez por um homem de armadura, que ele toma por um fugitivo de um manicômio local. Ao chegarem à crista do monte vêem uma cidade desenrolar-se diante deles: «— Bridgeport? — perguntei eu. — Camelot — respondeu ele.» Fitava o lago azul, a tentar imaginar uma cidade que pudesse passar simultaneamente por Bridgeport, do século XIX, e Camelot, do século XVI, quando a mãe correu para ela. — Procurei-te em toda a parte. Por que nunca estás onde possa encontrar-te? Oh, Ellie — murmurou —, aconteceu uma coisa horrível! No sétimo ano andavam a estudar «pi». Era uma letra grega que lembrava a arquitetura de Stonehenge, em Inglaterra: duas colunas verticais com uma trave em cima: p. Medindo a circunferência de um círculo e dividindo-a depois pelo diâmetro do círculo, obtinha-se o valor de pi. Em casa, Ellie pegou na tampa de um boião de maionese, passou-lhe um cordel à volta, endireitou o cordel e com uma régua mediu a circunferência do círculo. Fez o mesmo ao diâmetro e dividiu um número pelo outro. Obteve 3,21. Parecia simples. No dia seguinte, o professor, Mr. Weisbrod, disse que pi era cerca de 22/7, aproximadamente 3,1416. Mas, na realidade, se se queria ser exato, era um decimal que se prolongava indefinidamente sem repetir o padrão dos números. Indefinidamente, pensou Ellie. Levantou a mão. O ano escolar começara havia pouco e ela ainda não fizera nenhumas perguntas naquela aula. — Como pode alguém saber que os decimais se prolongam indefinidamente? — Porque é assim — respondeu o professor, com alguma rispidez. — Mas por quê? Como sabe? Como se podem contar decimais indefinidamente? — Miss Arroway — o professor estava a consultar a caderneta da turma —, essa é uma pergunta estúpida. Está a desperdiçar o tempo da aula. Nunca ninguém chamara estúpida a Ellie, e ela deu consigo desfeita em lágrimas. Billy Hortsman, que ocupava o lugar ao seu lado, estendeu bondosamente a mão e colocou-a sobre a dela. O pai fora recentemente acusado de praticar adulterações nos odômetros dos carros usados que vendia e, por isso, Billy estava sensível à humilhação pública. Ellie fugiu da aula a soluçar. Depois das aulas foi de bicicleta à biblioteca do colégio próximo, a fim de consultar livros de matemática. Tanto quanto conseguiu depreender do que leu, a sua pergunta não tivera nada de estúpida. Segundo a Bíblia, os antigos hebreus tinham aparentemente pensado que pi era exatamente igual a três. Os Gregos e os Romanos, que sabiam montes de coisas a respeito de matemática, não tinham a mínima idéia de que os dígitos de pi se prolongavam indefinidamente sem se repetir. Tratava-se de um fato que só fora descoberto havia cerca de duzentos e cinqüenta anos. Como queriam que ela soubesse se não podia fazer perguntas? Mas Mr. Weisbrod tivera razão acerca dos primeiros dígitos. Pi não era 3,21. Talvez a tampa do boião da maionese estivesse um bocadinho machucada, não fosse um círculo perfeito. Ou talvez ela tivesse sido descuidada ao medir o cordel. No entanto, mesmo que tivesse sido muito mais cuidadosa, não podiam esperar que medisse um número infinito de dízimos. Havia, porém, outra possibilidade. Podia-se calcular pi tão exatamente quanto se quisesse. Se uma pessoa soubesse uma coisa chamada cálculo, poderia experimentar fórmulas para pi que lhe permitiriam calculá-lo até tantos decimais quantos o tempo de que dispusesse lhe permitisse. O livro enunciava fórmulas para pi dividido por quatro. Algumas delas não conseguia pura e simplesmente compreendê-las. Mas havia outras que a fascinavam: pi p/4, dizia o livro, era o mesmo que 1–1/3 + 1/5 — 1/7 +…, com as frações a continuar indefinidamente. Sem perda de tempo, tentou pôr a fórmula em prática, adicionando e subtraindo as frações alternadamente. O resultado saltava de maior do que p/4 para menor do que 7p/4, mas ao fim de algum tempo podia ver-se que esta série de números seguia em linha reta para a resposta certa. Nunca lá se podia chegar exatamente, mas era possível alguém aproximar-se tanto quanto quisesse, desde que fosse muito paciente. Pareceu-lhe um milagre que a forma de todos os círculos do mundo estivesse conexa com aquela série de frações. Como podiam os círculos saber alguma coisa de frações? Decidiu aprender cálculo. Mas o livro dizia ainda mais alguma coisa: chamava-se um número «transcendente». Não existia nenhuma equação com números ordinários capaz de dar pi, a não ser que fosse infinitamente longa. Ela já aprendera sozinha um pouco de álgebra e compreendia o que isso significava. E pi não era o único número transcendente. Efetivamente, havia uma infinidade de números transcendentes. Mais do que isso, havia infinitamente mais números transcendentes do que números ordinários, apesar de pi ser o único de que ela jamais ouvira falar. Em mais de um sentido, estava ligado à infinidade. Tivera um vislumbre de algo grandioso. Escondida entre todos os números ordinários existia uma infinidade de números transcendentes de cuja presença nunca se suspeitaria a não ser que se penetrasse profundamente na matemática. De vez em quando, um deles, como o pi, surgia inesperadamente na vida quotidiana. Mas na sua maioria — um número infinito deles, recordou a si mesma — estavam escondidos, metidos na sua própria vida, quase com certeza não vislumbrados pelo irritável Mr. Weisbrod. Desde o princípio que não teve ilusões a respeito de John Staughton. Que a sua mãe pudesse sequer encarar a idéia de casar com ele — mesmo sem tomar em consideração que tinham passado apenas dois anos depois da morte do pai — era um mistério impenetrável para ela. De aspecto razoavelmente agradável ele conseguia dar a impressão, quando se empenhava nisso, de que se interessava realmente por uma pessoa. Mas era um tirano. Convidava os alunos para os fins-de-semana na nova casa para onde se tinham mudado a fim de montarem e tratarem do jardim e, depois de se irem embora, troçava deles. Disse a Ellie que estava apenas a iniciar o liceu e não deveria olhar duas vezes para nenhum dos seus jovens alunos inteligentes. Inchava-o uma imaginária importância pessoal. Ellie tinha a certeza de que, como professor, desprezava secretamente o seu falecido pai, que fora apenas lojista. Staughton tornara claro que um interesse por rádio e eletrônica era inadequado numa rapariga, que não lhe caçaria um marido, e que compreender física era para ela uma idéia pateta e aberrante. «Pretensiosa», foi a palavra que empregou. Ela não tinha, simplesmente, capacidade para isso. Tratava-se de um fato objetivo a que seria melhor habituar-se. Dizia-lho para seu próprio bem. Ela agradecer-lho-ia mais tarde. No fim de contas, ele era um professor associado de Física[1 - Professor universitário cuja categoria se situa entre a de professor catedrático e a de assistente (N. da T.)]. Sabia o que tal estudo exigia. Estes sermões enfureciam-na sempre, embora — apesar da recusa de Staughton em acreditá-la — nunca tivesse considerado uma carreira científica. Não era um homem brando, como o seu pai fora, e não fazia a mínima idéia do que fosse o sentido do humor. Quando alguém pensava que ela era filha de Staughton, Ellie sentia-se indignada. A mãe e o padrasto nunca lhe sugeriram que mudasse o apelido para Staughton; sabiam qual seria a sua resposta. Ocasionalmente, havia um pouco de calor humano no indivíduo, como quando, no quarto do hospital onde fora submetida a uma amigdalectomia, ele lhe oferecera um esplêndido caleidoscópio. — Quando me fazem a operação? — perguntara, um pouco sonolenta. — Já fizeram — respondera Staughton. — Vais ficar boa. Ela achara inquietante que pudessem ser roubados blocos completos de tempo sem seu conhecimento e atribuíra-lhe as culpas, embora na altura soubesse que estava a ser infantil. Que a mãe pudesse amá-lo verdadeiramente, era inconcebível. Devia ter voltado a casar por solidão, por fraqueza. Precisava de alguém que tomasse conta dela. Ellie jurou que nunca aceitaria uma situação de dependência. O pai morrera, a mãe distanciara-se e ela sentia-se exilada em casa de um tirano. Já não havia ninguém que lhe chamasse Presh. Ansiava por libertar-se. «— Bridgeport? — perguntei eu. — Camelot — respondeu ele.» CAPÍTULO II Luz coerente Desde que adquiri o uso da razão, o meu pendor para aprender tem sido tão violento e tão forte que nem as repreensões de outras pessoas… nem a minha própria ponderação… têm conseguido impedir-me de obedecer a este impulso natural que Deus me deu. Só Ele deve saber por quê; e sabe também que Lhe tenho suplicado que me tire a luz do meu entendimento, deixando apenas a suficiente para respeitar a Sua lei, pois algo mais do que isso é excessivo numa mulher, segundo algumas pessoas. E outras dizem que é até prejudicial.      JUANA INES DE LA CRUZ Resposta ao Bispo de Puebla (1691), que atacara o seu trabalho erudito como inapropriado para o seu sexo. Desejo propor à consideração benévola do leitor uma doutrina que, receio, pode parecer extremamente paradoxal e subversiva. A doutrina em questão é esta: é indesejável acreditar numa proposição quando não existe fundamento absolutamente nenhum para supô-la verdadeira. Tenho de admitir, claro, que, se tal opinião se tornasse comum, transformaria completamente a nossa vida social e o nosso sistema político; como ambos são presentemente irrepreensíveis, isto deve militar contra ela.      BERTRAND RUSSEL Skeptical Essays, (1928) Circundando a estrela azul-branca no seu plano equatorial havia um imenso anel de fragmentos em órbita — rochas e gelo, metais e matéria orgânica —, avermelhados na periferia e azulados mais próximo da estrela. O poliedro do tamanho de um mundo precipitou-se através de uma abertura dos anéis e emergiu do outro lado. No plano anelar fora intermitentemente ensombrado por penedos gelados e montanhas em desmoronamento. Mas agora, transportado na sua trajetória na direção de um ponto acima do pólo oposto da estrela, o sol refletia-se dos seus milhões de apêndices taciformes. Olhando com muita atenção poder-se-ia talvez ter visto um deles efetuar um ligeiro ajustamento direcional. Não se teria visto a erupção de ondas de rádio saindo dele para os abismos do espaço. Não obstante todo o domínio dos humanos na Terra, o céu noturno fora um companheiro e uma inspiração. As estrelas eram reconfortantes. Pareciam demonstrar que o firmamento fora criado para benefício e instrução de humanos. Este conceito patético tornou-se a sabedoria convencional difundida pelo mundo inteiro. Nenhuma cultura estava isenta dela. Algumas pessoas encontravam no firmamento uma abertura para a sensibilidade religiosa. Muitas sentiam-se intimidadas e humildes com a magnificência e a escala do cosmo. Outras eram estimuladas para os mais extravagantes vôos da fantasia. No próprio momento em que os humanos descobriram a escala do universo e verificaram que as suas mais desenfreadas fantasias eram, na realidade, reduzidas a uma expressão pequeníssima só pelas verdadeiras dimensões da Galáxia a Via Láctea, tomaram providências que garantiram que os seus descendentes seriam incapazes de ver sequer as estrelas. Durante um milhão de anos tinham crescido com um conhecimento pessoal e quotidiano da abóbada do firmamento. Nos últimos milhares de anos começaram a construir cidades e a emigrar para elas. Nas últimas décadas uma importante fração da população humana abandonara um modo de vida rústico. A medida que a tecnologia se desenvolveu e as cidades se tornaram poluídas, as noites ficaram sem estrelas. Novas gerações atingiram a maturidade completamente ignorantes do céu que deslumbrara os seus antepassados e estimulara a era moderna de ciência e tecnologia. Sem sequer se aperceber disso, precisamente quando a astronomia iniciava uma era de ouro, a maioria das pessoas separou-se do céu, num isolacionismo cósmico que só terminou com o alvorecer da exploração espacial. Ellie olhava para cima, para Vênus, e imaginava que se tratava de um mundo mais ou menos como a Terra — povoado por plantas, e animais, e civilizações, embora cada uma delas diferente das espécies que temos aqui. Nos subúrbios da cidade, logo após o pôr do Sol, examinava o céu noturno e perscrutava aquele brilhante ponto de luz não bruxuleante. Em comparação com nuvens próximas, mesmo por cima delas e ainda iluminadas pelo Sol, parecia um pouco amarelo. Tentava imaginar o que lá se passava. Punha-se em bicos de pés e fitava fixamente o planeta. Às vezes, quase conseguia convencer-se de que podia realmente vê-lo; um turbilhão de nevoeiro amarelo dissipava-se subitamente e uma imensa cidade crivada de pedras preciosas era momentaneamente revelada. Carros aéreos andavam velozmente entre os pináculos de cristal. Às vezes imaginava que espreitava para o interior de um desses veículos e vislumbrava um deles. Ou imaginava um jovem, a olhar para cima, para um brilhante ponto de luz, no seu céu, a pôr-se em bicos de pés e a fantasiar a respeito dos habitantes da Terra. Era uma idéia irresistível: um planeta abafado, tropical, fervilhante de vida inteligente e ali mesmo ao lado. Sujeitava-se à memorização rotineira, mas sabia que era, na melhor das hipóteses, a concha oca de uma educação. Fazia o mínimo trabalho necessário para se sair airosamente dos seus estudos e dedicava-se a outras matérias. Arranjava maneira de passar períodos livres e horas ocasionais, depois das aulas, naquilo a que chamavam «oficina» — uma pequena fábrica modesta e soturna instalada quando a escola dedicara mais esforço do que estava agora em moda à «educação vocacional». «Educação vocacional» significava, mais do que qualquer outra coisa, trabalhar com as mãos. Havia tornos mecânicos, máquinas de furar e outras máquinas — ferramentas de que estava proibida de se aproximar, pois, por muito competente que pudesse ser, não deixava de ser «uma rapariga». Relutantemente, autorizavam-na a dedicar-se aos seus próprios projetos na área da eletrônica da «oficina». Construiu rádios mais ou menos a partir do zero e depois avançou para algo mais interessante. Construiu uma máquina criptografadora. Era rudimentar, mas funcionava. Podia pegar em qualquer mensagem em língua inglesa e transformá-la, mediante um simples código de substituição, em algo que parecia uma língua de trapos. Construir uma máquina que fizesse o contrário — que convertesse uma mensagem criptografada em linguagem clara quando se ignorava a convenção de substituição —, isso era muito mais difícil. Podia-se fazer a máquina percorrer todas as substituições possíveis (A representa B, A representa C, A representa D…), ou podia-se lembrar que, em inglês, algumas letras eram usadas mais freqüentemente do que outras. Fazia-se uma idéia mais ou menos aproximada da freqüência do emprego das letras olhando para o tamanho das caixas de cada letra de tipo da tipografia ali ao lado. «ETAOIN SHRDLU», diziam os rapazes da tipografia, indicando com muita aproximação a ordem das doze letras mais freqüentemente usadas em inglês. Ao decodificar uma longa mensagem, a letra mais comum representava provavelmente um E. Ela descobriu também que algumas consoantes tinham tendência para andar juntas; as vogais distribuíam-se mais ou menos ao acaso. A palavra de três letras mais comum da língua inglesa era the. Se no interior de uma palavra havia uma letra entre um T e um E, era quase com certeza um H. Se não era, podia-se apostar num R ou numa vogal. Ellie deduziu outras normas e passou muitas horas a contar a freqüência das letras em vários livros escolares antes de descobrir que tais tabelas de freqüência já tinham sido compiladas e publicadas. A sua máquina decriptografadora destinava-se apenas a seu gozo pessoal. Não a utilizava para transmitir mensagens secretas a amigos. Sentia-se insegura quanto a quem poderia confiar com segurança esses seus interesses eletrônicos e criptográficos; os rapazes mostravam-se nervosos ou grosseiros e as raparigas gozavam-na estranhamente. Soldados dos Estados Unidos da América combatiam num lugar distante chamado Vietnam. Parecia que todos os meses mais homens jovens estavam a ser arrebatados da rua ou da quinta e enviados para o Vietnam. Quanto mais se informava das origens da guerra e escutava as declarações públicas de líderes nacionais, tanto mais indignada se sentia. O presidente e o Congresso mentiam e matavam, pensava, e quase toda a gente consentia mudamente. O fato de o padrasto aprovar as posições oficiais no tocante a obrigações decorrentes de tratados, teorias do dominó e agressão comunista descarada só fortalecia a sua resolução. Começou a assistir a reuniões e comícios no colégio próximo. As pessoas que lá conheceu pareceram-lhe muito mais inteligentes e cordiais, mais vivas, do que os seus canhestros e baços companheiros de liceu. John Staughton começou por adverti-la e acabou por proibi-la de passar tempo com estudantes do colégio. Eles não a respeitariam, disse. Aproveitar-se-iam dela. Ela fingia uma sofisticação que não tinha nem nunca teria. O seu estilo de vestuário estava a deteriorar-se. Roupas do gênero das fardas de faxina militar não eram apropriadas para uma rapariga e constituíam um travesti, uma hipocrisia, para alguém que afirmava opor-se à intervenção americana no Sudeste asiático. Tirando piedosas exortações a Ellie e a Staughton para não «brigarem», a mãe pouco participava em tais discussões. Particularmente, rogava a Ellie que obedecesse ao padrasto, que fosse «simpática». Ellie suspeitava agora de que Staughton casara com a mãe por causa do seguro de vida do pai — por que outro motivo haveria de ser? Não evidenciava, de modo nenhum, quaisquer sinais de a amar — e ele não tinha predisposição para ser «simpático». Um dia, algo agitada, a mãe pedira-lhe que fizesse uma coisa para bem de todos eles: freqüentasse o curso de Bíblia. Enquanto o pai, um céptico no tocante a religiões reveladas, fora vivo, não houvera qualquer conversa acerca de cursos de Bíblia. Como podia a mãe ter casado com Staughton? A pergunta cresceu nela pela milésima vez. O curso de Bíblia, continuou a mãe, ajudaria a instilar as virtudes convencionais; mas, mais importante ainda, mostraria a Staughton que Ellie estava disposta a uma certa conciliação. Por amor e compaixão pela mãe, acedeu. Por isso, todos os domingos, durante a maior parte de um ano letivo, Ellie participou num grupo regular de discussão numa igreja próxima. Pertencia a uma das respeitáveis congregações protestantes, sem a mácula do evangelismo desordenado. Compunham-no alguns alunos liceais, um certo número de adultos — principalmente mulheres de meia-idade — e a instrutora, que era a mulher do pastor. Ellie nunca lera a Bíblia a sério, anteriormente, e tinha inclinação para aceitar a opinião porventura pouco generosa do pai de que era «meio história bárbara, meio contos de fadas». Por isso, no fim-de-semana que precedeu a primeira aula leu com atenção o que lhe pareceu serem as partes importantes do Velho Testamento, esforçando-se por fazê-lo de espírito aberto. Reconheceu ato contínuo existirem duas histórias diferentes e mutuamente contraditórias da Criação nos dois primeiros capítulos do Gênesis. Não compreendeu como podia haver luz e dias antes de o Sol ter sido feito e teve dificuldade em perceber com quem Caim casara ao certo. As histórias de Lot e das suas filhas, de Abraão e Sara no Egito, do noivado de Dinah e de Jacob e Esaú deixaram-na perplexa. Compreendia que a covardia ocorresse no mundo real — que filhos pudessem enganar e defraudar um pai idoso, que um homem pudesse consentir medrosamente na sedução da sua mulher pelo rei, ou até encorajar o estupro das suas filhas. Mas naquele livro sagrado não havia uma palavra de protesto contra tais ultrajes. Pelo contrário, parecia que os crimes eram aprovados, louvados até. Quando a aula começou, sentia-se ansiosa pela discussão daquelas incoerências inquietantes, por um esclarecimento aliviador do Propósito de Deus ou, pelo menos, ao mesmo tempo, pareciam muito mais emocionalmente vulneráveis do que ela esperara. Talvez uma coisa causasse a outra. Estava meio convencida de que não freqüentaria o colégio, embora estivesse decidida a sair de casa. Staughton não pagaria para ela ir para qualquer outro lado e as tímidas intercessões da mãe não valiam de nada. Mas Ellie obtivera resultados espetacularmente bons nos exames padronizados de admissão ao colégio e ouvira com surpresa os professores dizerem-lhe ser provável que lhe fossem oferecidas bolsas de estudo por universidades famosas. Respondera ao acaso a diversas perguntas de opção múltipla e considerara a sua prova um bambúrrio. Se se sabe muito pouco, apenas o suficiente para excluir todas menos as duas respostas mais prováveis, e se depois se responde por intuição a dez perguntas concretas, há aproximadamente uma probabilidade em mil de dar a resposta certa às dez, explicou a si mesma. Para vinte perguntas concretas, as probabilidades eram de uma em um milhão. Mas provavelmente qualquer coisa como um milhão de miúdos fizera aquela prova. Alguém tinha de ter sorte. Cambridge, no Massachusetts, parecia suficientemente longe para se furtar à influência de John Staughton, mas também suficientemente perto para vir de lá de férias, a fim de visitar a mãe — que via o programa como um compromisso difícil entre abandonar a filha e irritar cada vez mais o marido. Ellie surpreendeu-se a si mesma ao preferir Harvard ao Massachusetts Institute of Technology. Chegou para o período de orientação: uma jovem bonita de cabelo escuro, altura mediana, sorriso oblíquo e uma avidez de aprender tudo. Estava decidida a alargar a sua educação, a tirar tantos cursos quantos possíveis, além dos seus interesses fulcrais em Matemática, Física e Engenharia. Mas havia um problema com os seus interesses fulcrais. Achou difícil discutir Física, quanto mais debatê-la, com os seus condiscípulos predominantemente masculinos. Ao princípio, eles ouviam as suas observações com uma espécie de desatenção seletiva. Havia uma ligeira pausa e depois continuavam como se ela não tivesse falado. Ocasionalmente, prestavam atenção à sua observação, elogiavam-na até, e em seguida continuavam igualmente sem se desviar da sua maneira de ver. Ellie estava razoavelmente convencida de que as suas observações não eram inteiramente idiotas e não desejava ser ignorada, e muito menos ignorada e tratada com condescendência, alternadamente. Sabia que parte do que sucedia — mas apenas parte — se devia à suavidade da sua voz. Aperfeiçoou uma voz de física, uma voz profissional: clara, competente e muitos decibéis acima do tom de conversa social. Com tal voz era importante ter razão. Ela tinha de escolher os seus momentos. Era difícil falar demoradamente numa voz assim, pois às vezes corria o perigo de desatar a rir. Por isso, deu consigo a optar por intervenções rápidas, por vezes cortantes e geralmente suficientes para prender a atenção deles: depois podia continuar durante um bocado num tom de voz mais normal. Todas as vezes que ia parar a um novo grupo tinha de lutar para abrir novamente caminho, só para meter a sua colherada na discussão. Os rapazes encontravam-se uniformemente alheios ao fato de haver sequer um problema. Às vezes, ela estava ocupada num exercício de laboratório ou num seminário quando o professor dizia: «Cavalheiros, prossigamos», e depois apercebia-se do franzir de testa de Ellie e acrescentava: «desculpe, Miss Arroway, mas considero-a um dos rapazes.» O maior cumprimento que eram capazes de lhe prestar era o de, na mente deles, ela não ser francamente feminina. Teve de lutar para não adquirir uma personalidade excessivamente combativa ou tornar-se completamente misantropa. Conteve-se, de súbito. «Misantropo» é alguém que antipatiza com toda a gente, e não apenas com homens. E havia sem dúvida uma palavra para quem detesta mulheres: «misógino». Mas os lexicógrafos tinham-se, não se sabia como, esquecido de arranjar uma palavra que significasse a antipatia pelos homens. Eles próprios eram quase todos homens, pensou, e tinham sido incapazes de imaginar que existisse mercado para tal palavra. Mais do que muitas outras raparigas, vivera tolhida por interdições paternas. As suas recém-encontradas liberdades — intelectual, social e sexual — eram inebriantes. Numa época em que muitas das suas contemporâneas optavam por vestuário informe que minimizava as distinções entre os sexos, ela aspirava a uma elegância e simplicidade de vestuário e maquilagem que a obrigavam a «esticar» o seu orçamento limitado. Havia maneiras mais eficazes de fazer afirmações políticas, pensava. Cultivou alguns amigos íntimos e arranjou uma quantidade de inimigos casuais, que antipatizavam com ela por causa do seu vestuário, das suas opiniões políticas e religiosas, ou pelo vigor com que defendia os seus pontos de vista. A sua competência e o prazer que sentia na ciência eram consideradas atitudes reprovadoras por muitas jovens competentes noutros aspectos. Mas algumas consideravam-na aquilo a que os matemáticos chamam um «teorema de existência» — uma demonstração de que uma mulher podia, sem dúvida nenhuma, distinguir-se na ciência — ou até um modelo de comportamento. No auge da revolução sexual experimentou com entusiasmo gradualmente crescente, mas verificou que intimidava os seus supostos amantes. Os seus relacionamentos tendiam a durar poucos meses, ou menos ainda. A alternativa parecia ser disfarçar os seus interesses e sufocar as suas opiniões, coisa que se recusara resolutamente a fazer no liceu. Perseguia-a a imagem da mãe, condenada a um aprisionamento resignado e apaziguador. Começou a sentir curiosidade a respeito de homens não relacionados com a vida acadêmica e científica. Parecia que algumas mulheres eram completamente desprovidas de astúcia e concediam os seus afetos quase sem um momento de pensamento consciente. Outras decidiam pôr em prática uma campanha de perfeição militar, com árvores e emergência ramificadas e posições de retirada, tudo para «caçar» um homem desejável. A palavra «desejável» era a denúncia da estratégia, pensava Ellie. O pobre diabo não era realmente desejado, mas apenas «desejável», um objeto plausível de desejo na opinião daqueloutros a pensar em quem toda aquela lamentável charada se desenrolava. A maioria das mulheres, pensava, encontravam-se algures no meio, procurando conciliar as suas paixões com a sua apercebida vantagem a longo prazo. Talvez houvesse comunicações ocasionais entre amor e interesse próprio que escapavam à percepção da mente consciente. Mas a idéia geral da cilada calculada causava-lhe calafrios. Naquela questão, concluiu, era uma aficionada do espontâneo. Foi então que conheceu Jesse. O rapaz com quem saíra levara-a a um bar numa cave à saída de Kenmore Square. Jesse cantava ritmos e blues e era primeiro-guitarrista. O modo como cantava e a maneira como se mexia tornaram evidente a Ellie aquilo de que andara a sentir a falta. Na noite seguinte voltou sozinha. Sentou-se na mesa mais próxima e cravou os olhos nele durante ambos os seus números. Dois meses depois viviam juntos. Era só quando os contratos dele o levavam a Fiartford ou a Bangor que ela trabalhava alguma coisa. Passava os dias com os outros estudantes: rapazes com a última geração de réguas de cálculo suspensas no cinto como troféus; rapazes com lapiseiras de plástico na algibeira do peito; rapazes meticulosos, formais, de riso nervoso; rapazes sérios, que passavam todos os momentos de vigília a tornar-se cientistas. Absorvidos na tarefa de se treinarem para sondar os abismos da natureza, eram quase impotentes, desamparados, nos assuntos humanos comuns, em que, não obstante todo o seu saber, pareciam patéticos e superficiais. Talvez a entrega dedicada à ciência fosse tão esgotante, tão competitiva, que não sobrava tempo para uma pessoa se tornar um ser humano bem equilibrado. Ou talvez as suas inabilidades sociais os tivessem conduzido para campos onde a carência não seria notada. Exceto no aspecto da ciência propriamente dita, ela não os achava boa companhia. À noite havia Jesse, com os seus saltos e os seus lamentos musicais, uma espécie de força da natureza que se apoderara da vida dela. No ano que passaram juntos não se recordava de uma única noite em que ele propusesse que fossem dormir. Não sabia nada de física nem de matemática, mas estava bem acordado dentro do universo, e durante algum tempo ela também esteve. Ellie sonhava com a conciliação dos seus dois mundos. Tinha fantasias de músicos e físicos num concerto social harmonioso. Mas os serões que organizava eram embaraçosos e terminavam cedo. Um dia ele disse-lhe que queria um filho. Tornar-se-ia sério, assentaria, arranjaria um emprego normal. Poderia até considerar a possibilidade de casar. — Um filho? — perguntou-lhe ela. — Mas eu teria de abandonar a escola. Ainda me faltam anos para acabar. Se tivesse um filho, poderia nunca mais voltar a estudar. — Sim, mas teríamos um filho. Não terias escola, mas terias outra coisa. — Jesse, eu preciso da escola. Ele encolheu os ombros e ela sentiu a vida em comum de ambos escorregar-lhe dos ombros com esse gesto e desaparecer. Durou ainda mais alguns meses, poucos, mas na realidade terminara tudo naquela breve conversa. Despediram-se com um beijo e ele partiu para a Califórnia. Ela não voltou a ouvir a sua voz. No fim da década de sessenta, a União Soviética conseguiu fazer descer veículos espaciais na superfície de Vênus. Foram as primeiras naves espaciais da espécie humana a pousar em estado funcional noutro planeta. Antes, ao longo de uma década, radioastrônomos americanos, confinados à Terra, tinham descoberto que Vênus era uma fonte intensa de radiemissão. A explicação mais popular para tal fato fora a de que a atmosfera maciça de Vênus aprisionava o calor através de um efeito de estufa planetário. De acordo com esta opinião, a superfície do planeta era sufocantemente quente, excessivamente quente para permitir a existência de cidades de cristal e Venusianos curiosos. Ellie ansiava por qualquer outra explicação e tentava, sem êxito, imaginar modos de a radiemissão poder provir de muito acima de uma superfície venusiana clemente. Alguns astrônomos de Harvard e do MIT afirmavam que nenhuma das alternativas a um Vênus tórrido podia explicar os dados-rádio. A idéia de um efeito de estufa tão maciço parecia a Ellie improvável e de certo modo desagradável, um planeta que se deixara morrer. Mas, quando a nave espacial Venera pousou e pôs efetivamente um termômetro de fora, a temperatura registrada era suficientemente elevada para derreter estanho ou chumbo. Ela imaginou as cidades de cristal a liquefazer-se (embora Vênus também não fosse assim tão quente), a superfície inundada de lágrimas de silicato. Era uma romântica. Havia anos que o sabia. Mas, ao mesmo tempo, teve de admirar quanto a radioastronomia era poderosa. Os astrônomos tinham ficado em casa, apontado os seus radiotelescópios para Vênus e medido a temperatura da superfície quase tão exatamente quanto as sondas da Venera o fizeram treze anos depois. Sentia-se fascinada com a eletricidade e a eletrônica desde que se conhecia. Mas aquela era a primeira vez que ficava profundamente impressionada com a radioastronomia. Uma pessoa fica em segurança no seu próprio planeta e aponta o seu telescópio, com a sua eletrônica associada. Informação acerca de outros mundos desce então, pulsante, através das antenas. A idéia maravilhava-a. Ellie começou a visitar o modesto radiotelescópio da Universidade na vizinha Harvard, Massachusetts, e eventualmente recebeu um convite para ajudar nas observações e na análise dos dados. Foi aceita, como assistente aga durante o verão, no National Radio Astronomy Observatory de Green Bank, Virgínia Ocidental, e à chegada olhou com algum arrebatamento para o radiotelescópio primitivo de Grote Reber, construído no seu quintal das traseiras em Wheaton, Ilinóis, em 1938, a servir agora de lembrete do que um amador devotado consegue realizar. Reber fora capaz de detectar a radiemissão do centro da Galáxia quando, por acaso, ninguém da vizinhança estava a ligar o motor do carro e o aparelho de diatermia, ao fundo da rua, não estava a funcionar. O Centro Galáctico era muito mais potente, mas o aparelho de diatermia ficava muito mais perto. A atmosfera de paciente investigação e as ocasionais recompensas de modestas descobertas eram-lhe agradáveis. Estavam a tentar avaliar como o número de distantes fontes de rádio extragalácticas aumentava à medida que procuravam mais profundamente no espaço. Ellie começou a pensar em melhores maneiras de detectar sinais-rádio fracos. Na devida altura licenciou-se cum laude em Harvard e foi trabalhar em radioastronomia, como pós-graduada, no outro extremo do país, no California Institute of Technology. Durante um ano foi pupila de David Drumlin. Ele tinha uma reputação mundial de ser brilhante e não tolerar idiotas de boa mente, mas no fundo era um daqueles homens que se podem encontrar no ponto mais alto de todas as profissões e estão num estado de permanente ansiedade, temendo que alguém, algures, demonstre ser mais inteligente do que eles. Drumlin ensinou a Ellie algo do verdadeiro cerne da matéria, especialmente as suas bases teóricas. Embora constasse inexplicavelmente que ele era atraente para as mulheres, Ellie achou-o freqüentemente combativo e constantemente absorvido em si mesmo. Ela era demasiado romântica, dizia-lhe ele. O universo está rigorosamente ordenado de acordo com as suas próprias regras. A idéia é pensar como o universo pensa, não impingir as nossas predisposições românticas (e anelos de rapariga, acrescentou uma vez) ao universo. Tudo quanto não é proibido pelas leis da natureza, garantiu-lhe — citando um colega do fundo do corredor —, é obrigatório. Mas, prosseguiu, quase tudo é proibido. Ela observou-o enquanto ele prelecionava, tentando adivinhar aquela singular combinação de características de personalidade. Viu um homem em excelente forma física: cabelo prematuramente grisalho, sorriso sardônico, óculos de leitura em meia-lua empoleirados perto da ponta do nariz, laço, queixo quadrado e restos de um sotaque nasalado de Montana. Para ele, passar um bom bocado era convidar os estudantes graduados e o corpo docente mais jovem para jantar (ao contrário do padrasto dela, que gostava de um séquito de estudantes, mas considerava uma extravagância oferecer-lhes de jantar). Drumlin demonstrava uma territorialidade intelectual extrema, encaminhando a conversa para tópicos em que ele era o especialista reconhecido e despachando rapidamente, em seguida, as opiniões contrárias. Depois do jantar sujeitava-os muitas vezes a uma projeção de diapositivos do Dr. D. a mergulhar com aparelho respiratório autônomo em Cozumel, em Tobago ou na Grande Barreira de Coral. Sorria e acenava freqüentemente para a câmara, mesmo nas imagens subaquáticas. Às vezes aparecia uma vista submarina da sua colega científica Dra. Helga Bork. (A mulher de Drumlin levantava sempre objeções a esses diapositivos particulares, com a fundamentação razoável de que a maior parte da assistência já os vira em anteriores jantares. Na verdade, a assistência já vira todos os diapositivos. Drumlin reagia enaltecendo as virtudes da atlética Dra. Bork e a humilhação da mulher aumentava.) Muitos dos estudantes colaboravam de boa vontade no entretenimento, à procura de alguma novidade que porventura lhes tivesse escapado anteriormente entre os corais-cérebro e os espinhosos ouriços-do-mar. Alguns tremiam de embaraço ou absorviam-se na salada de abacate. Uma tarde estimulante para os seus estudantes graduados consistia em serem convidados, em grupos de dois ou três, para o conduzirem de carro à beira de um penhasco favorito que ficava perto de Pacific Palisades. Despreocupadamente preso ao seu hang-glider, lançava-se no precipício na direção do oceano tranqüilo, algumas dezenas de metros abaixo. A missão dos estudantes era conduzirem o carro pela estrada marginal abaixo e recolhê-lo. Ele «picava» sobre eles, a sorrir exultantemente. Alguns eram convidados a fazerem-lhe companhia, mas poucos aceitavam. Ele tinha, e com isso se deleitava, a vantagem competitiva. Era uma magnífica exibição. Outros professores consideravam os estudantes graduados recursos para o futuro, os seus porta-testemunhos intelectuais para a geração seguinte. Mas Ellie achava que o Dr. Drumlin tinha um ponto de vista completamente diferente. Para ele, os estudantes graduados eram pistoleiros. Nunca se sabia qual deles poderia desafiá-lo de um momento para o outro para a disputa do título de «Pistoleiro mais Rápido do Oeste». Tinham de ser mantidos nos seus lugares. Ele nunca se lhe «atirara», mas ela tinha a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, era capaz de tentar. No segundo ano de Ellie no Cal Tech, Peter Valerian regressou ao campus do seu ano sabático no estrangeiro. Era um homem brando e sem atrativos especiais. Ninguém, e ele menos do que toda a gente, o considerava particularmente brilhante. No entanto, possuía um currículo sólido de realizações significativas em radioastronomia porque, como explicava quando insistiam com ele, «não largava o assunto». Havia um aspecto ligeiramente desacreditável na sua carreira científica: fascinava-o a possibilidade de inteligência extraterrestre. Dir-se-ia que cada membro do corpo docente tinha o direito a um fraco: o de Drumlin era o vôo em hang-glider e o de Valerian a vida noutros mundos. Os fracos de outros eram bares com criadas topless, ou plantas carnívoras, ou uma coisa chamada «meditação transcendental». Valerian pensava em inteligência extraterrestre, abreviadamente. E, havia mais tempo e mais aprofundadamente — e em muitos casos mais cuidadosamente — do que qualquer outro. À medida que o foi conhecendo melhor, pareceu a Ellie que a ele proporcionava um fascínio, um romance, que contrastava profundamente com a monotonia da vida pessoal de Valerian. Aquilo de pensar em inteligência extraterrestre não era trabalho para ele, mas sim divertimento. A sua imaginação subia a grandes altitudes. Ellie adorava ouvi-lo. Era como entrar no País das Maravilhas ou na Cidade Esmeralda. Na realidade, era até melhor, porque no fim de todas as suas reflexões ficava o pensamento de que talvez pudesse ser realmente verdade, pudesse realmente acontecer. Um dia, cismava ela, um dos grandes radiotelescópios podia receber de fato uma mensagem, e não apenas no campo da fantasia. Mas noutro aspecto era pior, pois Valerian, como Drumlin noutras matérias, frisava repetidamente que a especulação tinha de ser confrontada com a realidade física racional. Era uma espécie de peneira que separava a rara especulação útil de torrentes de tolices. Os extraterrestres e a sua tecnologia tinham de ser rigorosamente conformes com as leis da natureza, fato que deforma gravemente muitas perspectivas encantadoras. Mas o que emergia dessa peneira e sobrevivia à mais cética análise física e astronômica podia até ser verdade. Claro que não era possível ter a certeza. Era natural existirem possibilidades que nos escapavam e que, um dia, seriam detectadas por pessoas mais inteligentes. Valerian sublinhava quanto estamos coarctados pelo nosso tempo, e pela nossa cultura, e pela nossa biologia; quanto somos, por definição, limitados na imaginação de criaturas ou civilizações fundamentalmente diferentes. E, tendo evoluído separadamente em mundos muito diferentes, teriam de ser muito diferentes de nós. Era possível que seres muito mais avançados do que nós pudessem ter tecnologias inimagináveis — isto era, de fato, quase garantido — e até leis de física novas. Era irremediavelmente tacanho, dizia ao passarem por uma sucessão de arcadas de estuque como numa pintura de Chirico, imaginar que todas as importantes leis da física tinham sido descobertas no momento em que a nossa geração começara a encarar o problema. Haveria uma física do século XXI e uma física do século XXII, e até uma física do Quarto Milênio. Podíamos estar tremendamente afastados da realidade ao imaginar como uma civilização técnica muito diferente comunicaria. Mas, tranqüilizava-se sempre, os extraterrestres sabiam com certeza como estávamos atrasados. Se fôssemos mais avançados, já saberiam da nossa existência. Ali estávamos nós, mal começando a firmar-nos nos nossos dois pés, tendo descoberto o fogo na quarta-feira anterior e somente ontem se nos deparando, como que por acaso, a dinâmica newtoniana, as equações de Maxwell, os radiotelescópios e indícios de superunificação das leis da física. Valerian tinha a certeza de que eles nos não dificultariam as coisas. Tentariam facilitá-las, pois, se quisessem comunicar com patetas, teriam de dar desconto a esses mesmos patetas. Era por isso, pensava, que teria uma probabilidade de obter resultados se alguma vez chegasse uma mensagem. A sua falta de brilho era, na realidade, a sua força. Ele sabia, tinha a certeza, o que os patetas sabiam. Como tópico para a sua tese de doutorado, Ellie escolheu, com a cooperação do corpo docente, o desenvolvimento de uma melhoria dos sensíveis receptores empregados nos radiotelescópios. Isto permitia utilizar os seus talentos em eletrônica, libertava-a do essencialmente teórico Drumlin e permitia-lhe continuar as suas discussões com Valerian — mas sem dar o passo profissionalmente perigoso de trabalhar com ele em inteligência extraterrestre. Era uma matéria demasiado especulativa para uma dissertação de doutorado. O padrasto adquirira o hábito de denunciar os seus vários interesses como irrealisticamente ambiciosos ou, de vez em quando, como mortalmente banais. Quando teve conhecimento do tema da sua tese através da coscuvilhice (entretanto ela deixara por completo de lhe falar), ignorou-o como prosaico. Ela estava a trabalhar no laser de rubi. Um rubi é feito principalmente de alumina, que é quase perfeitamente transparente. A cor vermelha deriva de uma pequena impureza de crômio distribuída através do cristal de alumina. Quando se faz incidir um forte campo magnético no rubi, os átomos de crômio aumentam a sua energia ou, como os físicos gostam de dizer, são elevados para um estado excitado. Ela adorava a imagem de todos os pequenos átomos de crômio chamados para uma atividade febril em cada amplificador, tornados frenéticos para uma boa causa prática — amplificar um sinal de rádio fraco. Quanto mais forte o campo magnético, mais excitados se tornam os átomos de crômio. Assim, o maser poderia ser sintonizado para se tornar particularmente sensível a uma radiofreqüência selecionada. Ellie descobriu um modo de fazer rubis com impurezas de lantânio além dos átomos de crômio, a fim de um maser poder ser sintonizado para uma amplitude de freqüência mais estreita e detectar um sinal muito mais fraco do que masers anteriores. O seu detector tinha de ser mergulhado em hélio líquido. Depois instalou o novo instrumento num dos radiotelescópios do Cal Tech em Owens Valley e detectou, em freqüências inteiramente novas, aquilo a que os astrônomos chamam a radiação de fundo do corpo negro de três graus — os resíduos no radiespectro da imensa explosão que iniciou este universo, o Big Bang. «Vejamos se não me enganei», costumava dizer para consigo, «peguei num gás inerte que existe no ar, transformei-o num líquido, pus algumas impurezas num rubi, acrescentei um magneto e detectei os fogos da Criação.» Depois abanava a cabeça, maravilhada. A uma pessoa ignorante da física subjacente podia parecer a mais arrogante e pretensiosa necromancia. Como se explicaria semelhante coisa aos melhores cientistas de mil anos atrás, que tinham conhecimentos a respeito do ar, dos rubis e de magnetitas, mas não acerca de hélio líquido, emissão estimulada e bombas de fluxo supercondutoras? Na verdade, recordou a si mesma, não faziam sequer a mais pequena idéia a respeito do radiespectro. Ou sequer a idéia de um espectro — a não ser vagamente, em resultado da contemplação do arco-íris. Não sabiam que a luz eram ondas. Como podíamos nós esperar compreender a ciência de uma civilização que nos levava um avanço de mil anos? Era necessário fazer rubis em grandes quantidades, pois apenas alguns teriam as propriedades necessárias. Nenhuns eram gemas genuínas e, na sua maioria, eram pequenos. Mas ela adquiriu o hábito de usar alguns dos resíduos maiores. Condiziam bem com a sua coloração escura. Mesmo que fosse cuidadosamente cortada, reconhecia-se sempre alguma anomalia na pedra encastoada num anel ou num broche: por exemplo, a maneira estranha como captava a luz em certos ângulos de uma abrupta reflexão interna, ou uma mácula cor de pêssego dentro do vermelho de rubi. Ela explicava a amigos não cientistas que gostava de rubis, mas não podia dar-se ao luxo de os ter. Era um pouco como o cientista que primeiro descobriu o caminho bioquímico da fotossíntese das plantas verdes e depois passou a usar sempre agulhas de pinheiro ou um pé de salsa na lapela. Os colegas, cujo respeito por ela aumentava, consideravam o fato uma pequena idiossincrasia. Os grandes radiotelescópios do mundo estão construídos em lugares remotos pela mesma razão que levou Paul Gauguin a navegar para Taiti: para trabalharem bem, precisam de estar longe da civilização. À medida que o tráfico-rádio civil e militar aumentou, os radiotelescópios foram tendo de se esconder — seqüestrados, digamos, num obscuro vale de Porto Rico, ou exilados num imenso deserto restolhoso do Novo México ou do Cazaquistão. Como a radinterferência continua a aumentar, torna-se cada vez mais lógico construir os telescópios completamente fora da Terra. Os cientistas que trabalham nestes observatórios isolados mostram propensão para serem pertinazes e determinados. As esposas abandonam-nos e os filhos saem de casa na primeira oportunidade, mas os astrônomos resistem e agüentam. Raramente pensam em si próprios como sonhadores. O pessoal científico permanente de observatórios remotos tende a ser constituído pelos práticos, pelos experimentalistas, pelos peritos que sabem muito a respeito de concepção de antenas e análise de dados e muito menos a respeito de quasars ou pulsars. De um modo geral, não tinham anelado pelas estrelas na infância; tinham estado demasiado ocupados a reparar o carburador do carro da família. Depois de receber o seu doutorado, Ellie aceitou colocação como investigadora associada no Observatório de Arecibo, uma grande taça com trezentos e cinco metros de largura, fixada ao chão de um vale de carste nos sopés dos montes do Noroeste do Porto Rico. Com o maior radiotelescópio do planeta, sentiu-se ansiosa por utilizar o seu detector maser para observar o máximo de objetos astronômicos que pudesse — planetas e estrelas próximos, o centro da Galáxia, pulsars e quasars. Como membro em tempo inteiro do pessoal do Observatório ser-lhe-ia destinada uma quantidade significativa de tempo para observação. O acesso aos grandes radiotelescópios é vivamente competitivo, pois os projetos de investigação que valem a pena são muito mais do que a capacidade dos aparelhos permite. Por isso, o tempo de telescópio reservado ao pessoal residente é uma condição prévia de valor incalculável. Para muitos dos astrônomos é a única razão que os levaria a aceitar viver em lugares tão remotos. Ela esperava também examinar algumas estrelas próximas, em busca de possíveis sinais de origem inteligente. Com o seu sistema detector seria possível ouvir as perdas-rádio de um planeta como a Terra, mesmo que ele se encontrasse a alguns anos-luz de distância. E uma sociedade avançada que pretendesse comunicar conosco seria indubitavelmente capaz de possuir uma força de transmissão muito maior do que a nossa. Se Arecibo, utilizado como um telescópio de radar, era capaz de transmitir um megavátio de energia para um lugar específico do espaço, então uma civilização apenas um bocadinho avançada em relação à nossa poderia, pensava ela, transmitir cem megavátios ou mais. Se estavam a transmitir intencionalmente para a Terra com um telescópio tão grande como o de Arecibo, mas com um emissor de cem megavátios, Arecibo seria capaz de os detectar virtualmente em qualquer ponto da Galáxia da Via Láctea. Quando pensava cuidadosamente no assunto, surpreendia-a o fato de, na procura de inteligência extraterrestre, o que podia ser feito se encontrar à frente do que tinha sido feito. Achava insignificantes os recursos que tinham sido destinados àquela questão. Sentia dificuldade em encontrar um problema científico mais importante. As instalações de Arecibo eram conhecidas pela gente local como El Radar. A sua função era, de modo geral, obscura, mas proporcionava mais de cem postos de trabalho, que faziam muita falta. As jovens da localidade eram seqüestradas dos astrônomos do sexo masculino, alguns dos quais podiam ser vistos a quase todas as horas do dia ou da noite, cheios de energia nervosa, praticando jogging ao longo do caminho circunferencial que contornava o disco. Em conseqüência disso, as atenções concentradas em Ellie depois da sua chegada, embora não fossem inteiramente mal acolhidas, não tardaram a desviar-lhe a atenção da sua investigação. A beleza física do lugar era considerável. Ao crepúsculo olhava pelas janelas de controle e via nuvens de tempestade pairarem sobre o outro bordo do vale, logo a seguir a uma das três imensas torres das quais estavam suspensas as antenas de corneta e o seu recém-instalado sistema maser. No cimo de cada torre brilhava uma luz vermelha para avisar e fazer afastar quaisquer aviões que improvavelmente se tivessem desviado para aquela remota paisagem. Às quatro da manhã costumava ir até ao exterior a fim de tomar um pouco de ar e esforçar-se por compreender um coro maciço de milhares de rãs terrestres locais chamadas coquis, nome que era uma onomatopéia do seu grito lamentoso. Alguns astrônomos viviam perto do Observatório, mas o isolamento, agravado pela ignorância da língua espanhola e pela inexperiência de qualquer outra cultura, tendia a impeli-los, e às suas mulheres, para a solidão e a anomia. Alguns tinham decidido viver na Base Aérea de Ramey, que possuía a única escola de língua inglesa das imediações. Mas a viagem de automóvel de noventa minutos também aumentava o seu sentimento de isolamento. Ameaças repetidas de separatistas porto-riquenhos, erradamente convencidos de que o Observatório desempenhava qualquer missão militar importante, aumentavam a sensação de histeria sufocada, de circunstâncias dificilmente controladas. Muitos meses depois, Valerian fez uma visita. Nominalmente, encontrava-se ali para fazer uma conferência, mas ela sabia que parte do seu objetivo era verificar como ela se ia dando e proporcionar-lhe o possível apoio psicológico. A sua investigação estava a correr muito bem. Ellie descobrira o que parecia ser um novo complexo de nuvens moleculares interestelares e obtivera alguns excelentes dados de elevada resolução temporal sobre a pulsar do centro da nébula do Caranguejo. Completara até a investigação mais sensível até aí realizada de sinais de uma dúzia de estrelas próximas, mas sem resultados positivos. Houvera uma ou duas regularidades suspeitas. Observara de novo as estrelas em questão e não conseguira encontrar nada fora do vulgar. Se olhamos para muitas estrelas, mais cedo ou mais tarde a interferência terrestre ou a concatenação de ruído ocasional produzirá um padrão que por momentos nos faz palpitar o coração. Acalmamo-nos e conferimos. Se não se repete, consideramo-lo espúrio. Esta disciplina era essencial se ela queria preservar algum equilíbrio emocional em face do que procurava. Estava decidida a ser tão tenaz e lúcida quanto possível, mas sem abandonar a sensação de maravilhamento que antes de mais nada a impulsionava. Recorrendo às escassas provisões que tinha no frigorífico comunitário, improvisou um almoço-piquenique rudimentar e Valerian sentou-se com ela mesmo na periferia do disco taciforme. Viam-se ao longe trabalhadores a reparar ou a substituir os painéis, calçando sapatos de neve especiais para não rasgarem as chapas de alumínio e não se despencarem no solo, em baixo, pelas aberturas. Valerian mostrou-se encantado com o progresso dela. Trocaram pequenos mexericos e falaram de assuntos científicos especiais correntes. A conversa desviou-se para a SETI, como a procura de inteligência extraterrestre começava a ser chamada. — Alguma vez pensou em trabalhar nisso a tempo inteiro, Ellie? — perguntou ele. — Não, não pensei muito. Mas também não é realmente possível, pois não? Que eu saiba, não existe em parte alguma do mundo nenhuma instalação importante destinada à SETI em tempo inteiro. — Não, mas poderá existir. Há uma probabilidade de que dúzias de discos adicionais sejam acrescentados ao Very Lar e Array e o transformem num observatório dedicado à SETI. Claro que fariam também um pouco do tipo habitual da radioastronomia. Seria um interferômetro estupendo. Trata-se apenas de uma possibilidade, é dispendioso, exige vontade política autêntica e, na melhor das hipóteses, está a anos de distância. É somente uma coisa para pensar. — Peter, acabo de examinar umas quarenta e tal estrelas próximas de tipo espectral mais ou menos solar. Estudei a linha de hidrogênio de vinte e um centímetros, que toda a gente diz ser a freqüência de aviso óbvia, porque o hidrogênio é o átomo mais abundante do universo, etc. E fi-lo com a sensibilidade mais elevada jamais experimentada. Não existe a sombra de um sinal. Talvez não exista ninguém lá. Talvez toda esta história seja um desperdício de tempo. — Como a vida em Vênus? Isso não passa de conversa de desiludida. Vênus é um mundo infernal; é apenas um planeta. Mas há centenas de milhares de milhões de estrelas na Galáxia. Você observou somente um punhado delas. Não acha um pouco prematuro desistir? Resolveu um milésimo milionésimo do problema. Provavelmente muito menos do que isso, se tiver em consideração outras freqüências. — Bem sei, bem sei. Mas não tem a sensação de que, se eles estão nalgum lado, estão em todo o lado? Se seres realmente avançados vivem a mil anos-luz de distância, não seria natural terem um posto avançado no nosso quintal das traseiras? Bem sabe que uma pessoa podia trabalhar eternamente na SETI e nunca se convencer de que completara a busca. — Oh, começa a parecer o Dave Drumlin! Se não conseguimos encontrá-los durante o tempo da sua vida, não está interessado. Estamos apenas a iniciar a SETI. Você sabe quantas possibilidades existem. Esta é a altura de deixar abertas todas as opções. Esta é a altura de ser otimista. Se vivêssemos em qualquer época anterior da história humana, poderíamos passar toda a nossa vida a pensar no assunto sem podermos fazer nada para encontrar a resposta. Mas este momento é único. É a primeira vez que alguém tem possibilidade de procurar inteligência extraterrestre. Você fez o detector para procurar civilizações nos planetas de milhões de outras estrelas. Ninguém garante o êxito. Mas consegue imaginar coisa mais importante? Suponha-os ali, a enviar-nos sinais sem ninguém na Terra a escutar. Isso seria ridículo, seria grotesco. Não se envergonharia da sua civilização se tivéssemos meios de escutar e nos faltasse a energia, a garra, para o fazer? Duzentos e cinqüenta e seis imagens do mundo esquerdo perpassaram à esquerda. Duzentos e cinqüenta e seis imagens do mundo direito deslizaram à direita. Ela integrou as quinhentas e doze imagens numa visão envolvente do que a cercava. Estava profundamente embrenhada numa floresta de grandes folhas ondulantes, umas verdes, outras estioladas, quase todas maiores do que ela. Mas não tinha dificuldade nenhuma em subi-las, equilibrar-se precariamente, de vez em quando, numa folha inclinada, cair para a branda almofada das folhas horizontais de baixo e depois continuar sem hesitar o seu caminho. Sabia que estava centrada na pista. Na pista torturantemente recente. Não se importaria nada, se a tal pista a guiasse, de escalar um obstáculo cem ou mil vezes mais alto do que ela. Não precisava de torres nem de cordas; já estava equipada. O terreno imediatamente à sua frente recendia a um odor marcador deixado recentemente — tinha de ser — por outra batedora do seu clã. Conduziria a comida; conduzia quase sempre. A comida apareceria espontaneamente. Batedoras descobri-la-iam de volta. Às vezes, a comida era uma criatura muito parecida com ela própria; outras, era apenas um matacão amorfo ou cristalino. Ocasionalmente era tão grande que se tornavam necessárias muitas do seu clã, trabalhando juntas, elevando-o e empurrando-o sobre as folhas dobradas, para o levar para casa. Estalou as mandíbulas, num antegosto. — O que me preocupa mais — continuou ela — é o oposto, a possibilidade de eles não estarem a tentar. Podiam comunicar conosco, sim senhor, mas não o fazem porque não vêem nenhuma utilidade nisso. E como olhou para baixo, para a beira da toalha de mesa que tinham estendido sobre a erva… como as formigas. Ocupam a mesma paisagem que nós. Têm muito que fazer, coisas em que ocupar-se. Em certo nível, estão muito conscientes do seu ambiente. Mas nós não tentamos comunicar com elas. Por isso, não creio que tenham a mais vaga idéia de que existimos. Uma grande formiga, mais empreendedora do que as suas companheiras, aventurara-se a avançar pela toalha de mesa e marchava com desenvoltura ao longo da diagonal de um dos quadrados encarnados e brancos. Reprimindo um pequeno estremecimento de repugnância, ela atirou-a, com um piparote desajeitado, novamente para a erva — onde era o seu lugar. CAPÍTULO III Ruído branco Melodias ouvidas são doces, mas as não ouvidas são mais doces.      JOHN KIATS «Ode on a Grecian Um» (1820) As mentiras mais cruéis são muitas vezes ditas em silêncio.      ROBERT LOUIS STEVENSON Virginibus Puerisque (1881) Os impulsos viajavam havia anos através do grande escuro entre as estrelas. Ocasionalmente, interceptavam uma nuvem irregular de gás e poeira e um pouco da energia era absorvida ou disseminada. Os restantes prosseguiam na direção primitiva. À frente deles havia uma tênue luminosidade amarela, que aumentava lentamente de brilho entre as outras luzes invariáveis. Agora, embora para os olhos humanos continuasse a ser um ponto, era de longe o objeto mais luminoso do céu preto. Os impulsos estavam a encontrar uma horda de gigantes bolas de neve. Uma mulher esbelta, com trinta e tantos anos, entrava no edifício da administração de Argus. Os seus olhos, grandes e afastados um do outro, suavizavam-lhe a estrutura óssea angulosa do rosto. Uma bandelette de tartaruga prendia-lhe, sem apertar, o cabelo comprido e escuro na base do pescoço. Envergando com despreocupação uma T-shirt de malha e uma saia de caqui, seguiu por um corredor do primeiro andar e transpôs uma porta onde se lia: E. Arroway — diretora. Quando retirou o polegar do fecho acionado por pressão digital, um observador poderia ter reparado num anel que usava na mão direita, com uma pedra vermelha singularmente leitosa que não parecia encastoada por um profissional. A mulher acendeu um candeeiro, procurou numa gaveta e finalmente tirou uns auscultadores. Momentaneamente iluminada na parede ao lado da secretária estava uma citação das Parábolas de Franz Kafka: Agora as Sereias têm uma arma ainda mais fatal do que o seu canto, ou seja, o seu silêncio… Talvez alguém pudesse ter escapado ao seu cantar; mas ao seu silêncio, certamente nunca. A mulher apagou a luz com um gesto da mão e dirigiu-se para a porta, na semiobscuridade. Na sala de controle certificou-se rapidamente de que estava tudo em ordem. Através da janela podia ver alguns dos cento e trinta e um radiotelescópios que se estendiam por dezenas de quilômetros através do deserto restolhoso do Novo México, qual estranha espécie de flor mecânica esticando-se na direção do céu. A tarde estava no princípio e ela estivera levantada até tarde na noite anterior. A radioastronomia pode fazer-se durante o dia, porque o ar não dispersa as ondas de rádio do Sol como dispersa a luz visível normal. Para um radiotelescópio apontando para qualquer lado menos para muito perto do Sol, o céu é negro como breu. Exceto para as ondas de rádio. Para além da atmosfera da Terra, do outro lado do céu, há um universo fervilhante de radiemissão. Estudando ondas de rádio podemos aprender coisas a respeito de planetas, estrelas e galáxias, acerca da composição de grandes nuvens de moléculas orgânicas que pairam entre as estrelas, acerca da origem, da evolução e do destino do universo. Mas todas estas radiemissões são naturais — causadas por processos físicos, elétrons espiralando no campo magnético galáctico, ou moléculas interestelares colidindo umas com as outras, ou os ecos distantes do vermelho do Big Bang passando dos raios gama na origem do universo para as domesticadas e frias ondas de rádio que enchem todo o espaço da nossa época. Nas escassas poucas décadas em que os seres humanos se dedicaram ao estudo da radioastronomia nunca houve um verdadeiro sinal vindo dos abismos do espaço, qualquer coisa fabricada, qualquer coisa artificial, qualquer coisa engendrada por uma mente alienígena. Houve falsos alarmes. A variação regular de tempo da radiemissão de quasars e, especialmente, pulsars, tinha ao princípio sido considerada, hesitantemente, tremulamente, uma espécie de sinal anunciador de outro alguém, ou talvez um farol de radionavegação para naves exóticas que cruzassem os espaços entre as estrelas. Mas verificara-se que se tratava de outra coisa — tão exótica, talvez, como um sinal de seres no céu noturno. Os quasars pareciam espantosas fontes de energia, porventura relacionados com buracos negros maciços nos centros de galáxias, alguns deles observados havia já mais de meio caminho, no tempo, em relação à origem do universo. Os pulsars são núcleos atômicos com um movimento giratório rápido e do tamanho de uma cidade. E houvera outras mensagens ricas e misteriosas que tinham acabado por se revelar de certo modo inteligentes, mas não muito extraterrestres. O firmamento estava agora polvilhado de sistemas de radar militares secretos e satélites de radiocomunicação que se encontravam fora do alcance das súplicas de alguns radioastrônomos civis. Algumas vezes eram autênticos foras-da-lei que ignoravam os acordos internacionais de telecomunicações. Não havia nem apelo, nem agravo. Ocasionalmente, todas as nações negavam a responsabilidade. Mas nunca houvera um sinal alienígena inequívoco. E, no entanto, a origem da vida parecia agora ser tão fácil — e havia tantos sistemas planetários, tantos mundos e tantos milhares de milhões de anos disponíveis para evolução biológica que custava a crer que a Galáxia não estivesse fervilhante de vida e inteligência. O Projeto Argus era a maior instituição do mundo dedicada à busca pela rádio de inteligência extraterrestre. Ondas de rádio viajavam à velocidade da luz, mais rapidamente do que a qual, parecia, nada podia avançar. Eram fáceis de gerar e fáceis de detectar. Até mesmo civilizações tecnológicas muito atrasadas, como a da Terra, descobriram a rádio no princípio da sua exploração do mundo físico. Até mesmo com a rudimentar radiotecnologia disponível — agora, apenas algumas décadas após a invenção do radiotelescópio — é quase possível comunicar com uma civilização idêntica no centro da Galáxia. Mas havia tantos lugares no céu para explorar e tantas freqüências nas quais uma civilização alienígena podia transmitir, que se impunha um programa de observação sistemático e freqüente, paciente. Argus funcionava em pleno havia mais de quatro anos. Houvera glitches, boggeys, indícios, alarmes falsos. Mas nenhuma mensagem. — Boa tarde, doutora Arroway. O engenheiro solitário sorriu-lhe agradavelmente e ela retribuiu com um aceno de cabeça. Todos os cento e trinta e um telescópios do Projeto Argus eram controlados por computadores. O sistema varria lentamente o céu, sozinho, certificando-se de que não havia avarias mecânicas ou eletrônicas e comparando os dados de diferentes elementos do exército de telescópios. Ela lançou uma vista de olhos ao analisador de mil milhões de canais, uma bancada eletrônica que cobria uma parede inteira, e à exposição visual do espectrômetro. Não restava, na realidade, muito para os astrônomos e os técnicos fazerem enquanto o dispositivo de telescópios varria lentamente o céu, ao longo dos anos. Se detectava alguma coisa de interesse, fazia soar automaticamente um alarme que alertava os cientistas do projeto, se necessário fosse na cama, à noite. Depois, a Dra. Arroway começava a funcionar em pleno para determinar se, no caso em questão, se tratava de uma falha instrumental ou de algum boggey espacial americano ou soviético. Juntamente com o pessoal de engenharia, estudava meios de melhorar a sensibilidade do equipamento. Havia algum padrão, alguma regularidade na emissão? Destinava alguns dos radiotelescópios ao exame de objetos astronômicos exóticos que tinham sido recentemente detectados por outros observatórios. Ajudava membros do pessoal e visitantes em projetos sem relação com a SETI. Voava para Washington a fim de manter vivo o interesse da agência de financiamento, a National Science Foundation. Proferia algumas conferências públicas sobre o Projeto Argus — no Rotary Club, em Socorro, ou na Universidade do Novo México, em Albuquerque — e, ocasionalmente, saudava um repórter empreendedor que chegava, por vezes sem ser anunciado, ao mais remoto Novo México. Ellie tinha de se acautelar para que o tédio não se apoderasse dela. Os seus colegas de trabalho eram simpáticos, mas — mesmo independentemente da impropriedade de um relacionamento pessoal estreito com um subordinado nominal — ela não se sentia tentada a quaisquer verdadeiras intimidades. Houvera alguns relacionamentos breves, escaldantes, mas fundamentalmente casuais, com homens locais sem qualquer ligação com o Projeto Argus. Também nessa área, a sua vida descera sobre ela um tédio, uma lassidão. Sentou-se diante de uma das consolas e ligou os auscultadores. Sabia que era inútil, pedante, pensar que ela, à escuta num ou dois canais, detectaria um padrão, quando o imenso sistema de computadores que monitorizavam mil milhões de canais não detectara. Mas dava-lhe uma modesta ilusão de utilidade. Recostou-se, de olhos semicerrados, com uma expressão quase sonhadora a envolver os contornos do seu rosto. É realmente encantadora, permitiu-se pensar o técnico. Ouviu, como sempre, uma espécie de estática, um ruído contínuo, repetitivo, sem método. Uma vez, quando escutava uma parte do céu que incluía a estrela AC+73888, na Cassiopéia, parecera-lhe ouvir uma espécie de canto, a esbater-se e a renascer tantalicamente, situado imediatamente além da sua capacidade de se convencer de que havia ali, de fato, alguma coisa. Aquela era a estrela em cuja direção a nave espacial Voyager 1, agora nas imediações da órbita de Netuno, acabaria por viajar. A nave transportava um registro fonográfico de ouro, no qual estavam gravadas saudações, imagens e canções da Terra. Será possível que eles nos estejam a enviar a sua música à velocidade da luz, enquanto nós lhes enviamos a nossa apenas a um décimo-milésimo dessa velocidade? Noutras ocasiões, como agora, quando a estática era claramente isenta de padrão, Ellie recordava a si mesma a famosa máxima de Shannon a respeito da teoria da informação, segundo a qual a mensagem mais eficientemente codificada era indistinguível do ruído, a não ser que se possuísse de antemão a chave da codificação. Premiu rapidamente alguns botões da consola à sua frente e ligou duas das freqüências de banda estreita uma contra a outra, uma em cada auscultador. Nada. Escutou os dois planos de polarização das ondas de rádio e depois o contraste entre polarização linear e circular. Havia mil milhões de canais por onde escolher. Podia-se passar a vida a tentar levar a palma ao computador, a escutar com ouvidos e cérebros humanos pateticamente limitados a procurar um padrão. Os humanos são bons, pensou, no discernimento de padrões sutis que realmente existem, mas são-no igualmente a imaginá-los quando estão por completo ausentes. Devia haver alguma seqüência de impulsos, alguma configuração da estática, capazes de produzir por um instante um ritmo sincopado ou uma breve melodia. Mudou a ligação para um par de radiotelescópios que escutavam uma conhecida fonte de rádio galáctica. Ouviu um glissando pelas radiofreqüências abaixo, um whistler devido à dispersão de ondas de rádio por elétrons no tênue gás interestelar entre a fonte de rádio e a Terra. Quanto mais pronunciado o glissando, maior o número de elétrons que se encontravam no caminho e mais distante a fonte estava da Terra. Fizera aquilo tantas vezes que lhe bastava ouvir um whistler de rádio pela primeira vez para ficar com uma idéia exata da sua distância. Este, calculou, encontrava-se a mil anos-luz de distância — muito para lá da vizinhança local de estrelas, mas ainda bem no interior da grande Galáxia da Via Láctea. Ellie voltou a prestar atenção ao modo de exploração celeste do Projeto Argus. Voltou a não encontrar nenhum padrão. Era como um músico a escutar o ribombar de uma trovoada distante. As ocasionais pequenas extensões de padrão perseguiam-na e introduziam-se-lhe na memória com tal insistência que por vezes se via forçada a voltar atrás, às gravações de determinado período de observação, para ver se havia alguma coisa que a sua mente tivesse captado e houvesse escapado aos computadores. Toda a sua vida, os sonhos tinham sido seus amigos. Os seus sonhos eram invulgarmente pormenorizados, bem estruturados, coloridos. Conseguia perscrutar atentamente o rosto do pai, digamos, ou a parte de trás de uma velha telefonia, e o sonho fazia-lhe a vontade com pormenores visuais completos. Conseguira sempre recordar-se dos seus sonhos, até às mais pequenas minúcias — exceto nas ocasiões em que se encontrara sob grande pressão, como antes da prova oral do seu doutorado, ou quando ela e Jesse estavam a afastar-se. Mas agora estava a ter dificuldade em recordar as imagens dos seus sonhos. E, desconcertantemente, começara a sonhar sons — como sucede às pessoas cegas de nascença. Nas primeiras horas da manhã, a sua mente inconsciente criava algum tema ou alguma cantilena que nunca ouvira antes. Ellie acordava, dava uma ordem audível à luz da sua mesa-de-cabeceira, pegava na caneta que ali deixara para esse fim, riscava uma pauta e transpunha a música para o papel. Às vezes, após um longo dia, passava-a no seu gravador e perguntava a si mesma se a ouvira em Ofitico ou Capricórnio. Estava, admitia-o relutantemente, a ser atormentada pelos elétrons e pelos buracos móveis que habitam receptores e amplificadores e pelas partículas carregadas e pelos campos magnéticos do gás frio e rarefeito entre as tremeluzentes estrelas distantes. Era uma única nota repetida, aguda e rouca nas margens. Precisou de um momento para a reconhecer. Depois teve a certeza de que não a ouvia havia trinta e cinco anos. Tratava-se da roldana metálica da corda da roupa que protestava todas as vezes que a mãe puxava e punha outra bata acabada de lavar a secar ao sol. Quando era garotinha, adorara o exército de molas de roupa em ordem de marcha; e, quando não estava ninguém perto, afundava o rosto nos lençóis acabados de secar. O cheiro, simultaneamente doce e acre, encantava-a. Seria aquilo agora uma baforada dele? Lembrava-se de si mesma a rir e a afastar-se, em passos ainda pouco firmes, dos lençóis, quando a mãe, num dos seus movimentos graciosos, a levantava no ar — parecia erguê-la para o céu — e a levava no côncavo do braço, como se ela fosse apenas uma trouxinha de roupa para ser bem arrumada na cômoda do quarto dos pais. — Doutora Arroway? Doutora Arroway? O técnico olhou-lhe para as pálpebras trêmulas e reparou na sua respiração superficial. E a pestanejou duas vezes, tirou os auscultadores e lançou-lhe um pequeno sorriso apologético. Às vezes, os seus colegas tinham de falar muito alto se queriam ser ouvidos acima do ruído de rádio cósmico amplificado. Por sua vez, ela dava desconto ao volume do ruído — detestava tirar os auscultadores para conversas breves —, gritando também. Quando estava suficientemente preocupada, uma troca de gracejos casual ou até jovial podia parecer a um observador inexperiente um fragmento de uma discussão violenta e não provocada, inesperadamente desencadeada no meio do silêncio da vasta instalação de rádio. Mas desta vez ela disse apenas: — Desculpe. Devo ter passado pelas brasas. — O doutor Drumlin está ao telefone. Está no gabinete do Jack e diz que tem um encontro marcado consigo. — Com a breca, esqueci-me! Com o passar dos anos, o brilho de Drumlin permanecera intacto, mas tinham surgido diversas idiossincrasias pessoais adicionais que não eram evidentes quando ela trabalhara brevemente como sua aluna graduada no Cal Tech. Por exemplo, agora tinha o hábito desconcertante de verificar, quando julgava que ninguém estava a observar, se tinha a braguilha aberta. Ao longo dos anos aumentara a sua convicção de que não existiam extraterrestres, ou, pelo menos, se existiam, eram tão raros e tão distantes que não seria possível detectá-los. Fora a Argus para o colóquio científico semanal. Mas ela descobriu que também ali o levara outro propósito. Drumlin escrevera uma carta à National Science-Foundation insistindo em que Argus terminasse a sua procura de inteligência extraterrestre e se dedicasse em tempo inteiro a radioastronomia mais convencional. Tirou-a de uma algibeira interior e insistiu com ela para que a lesse. — Nós só trabalhamos no projeto há quatro anos e meio! Exploramos menos de um terço do céu setentrional. Esta é a primeira investigação que está a detectar todo o ruído rádio no mínimo em bandas e freqüência ótimas. Por que quereria você parar agora? — Não, Ellie, isto é interminável. Ao fim de doze anos não encontrará nenhum sinal de nada. Argumentará que tem de ser construída outra instalação Argus pelo custo de centenas de milhões de dólares na Austrália ou na Argentina, para explorar o céu meridional. E, quando isso falhar, falará da construção de alguma parabolóide com antena de vôo livre em órbita terrestre, para poder obter ondas milimétricas. «Conseguirá sempre imaginar qualquer espécie de exploração que não foi feita. Inventará sempre qualquer explicação para o fato de os extraterrestres gostarem de emitir precisamente onde não procuramos. — Oh, Dave, já discutimos isto cem vezes! Se falharmos, aprenderemos alguma coisa acerca da raridade da vida inteligente — ou, pelo menos, da vida inteligente que pensa como nós e quer comunicar com civilizações atrasadas como a nossa! E, se tivermos êxito, ganharemos o jackpot cósmico! Não é possível imaginar maior descoberta. — Há projetos de primeira categoria que não dispõem de tempo de utilização de telescópio. Há trabalhos sobre evolução de quasars, pulsars binários, as cromosferas de estrelas próximas e até aquelas loucas proteínas interestelares. Estes projetos aguardam em bicha, porque esta instalação — de longe a distribuição melhor faseada do mundo — está a ser utilizada quase inteiramente para a SETI. — Setenta e cinco por cento para a SETI, Dave, vinte e cinco por cento para radioastronomia rotineira. — Não lhe chame rotineira. Temos a oportunidade de olhar para trás, para o tempo em que as galáxias estavam a ser formadas, ou talvez mesmo antes disso. Podemos examinar os núcleos de nuvens moleculares gigantes e os buracos negros do centro de galáxias. Está prestes a dar-se uma revolução na astronomia e você está a atravessar-se no caminho. — Dave, tente não pessoalizar isto. Argus nunca teria sido construída se não houvesse apoio público à SETI. A idéia da Argus não é minha. Sabe que me escolheram para diretora quando os últimos quarenta discos ainda estavam a ser construídos. A NSA apóia inteiramente… — Não inteiramente, e não se eu tiver alguma palavra a dizer. Isto é exibicionismo. Isto é fazer tagatés a chalados dos OVNis e da banda desenhada e a adolescentes de espírito fraco. Nesta altura, Drumlin estava praticamente a gritar e Ellie sentiu uma tentação irresistível de lhe reduzir o volume de som. Devido à natureza do seu trabalho e à sua relativa eminência, encontrava-se constantemente em situações em que era a única mulher presente, tirando as que serviam café ou trabalhavam com as máquinas de estenografar. Apesar do que parecia uma vida inteira de esforço da sua parte, ainda havia uma hoste de cientistas do sexo masculino que só falavam uns com os outros, teimavam em interrompê-la e ignoravam, quando podiam, o que ela tinha a dizer. Ocasionalmente, haviam aqueles que, como Drumlin, demonstravam uma franca antipatia. Mas, pelo menos, ele tratava-a como tratava muitos homens. Era imparcial nas suas explosões, que distribuía igualmente por cientistas de ambos os sexos. Havia um pequeno punhado de colegas seus do sexo masculino que não revelavam modificações de personalidade constrangedoras na sua presença. Precisava de passar mais tempo com eles, pensou. Pessoas como Kenneth der Heer, o biólogo molecular do Instituto Salk, que fora nomeado recentemente conselheiro científico presidencial. E Peter Valerian, claro. Ela sabia que a impaciência de Drumlin com Argus era partilhada por muitos astrônomos. Ao fim dos primeiros dois anos, uma espécie de melancolia infiltrara-se na instalação. Na messe, ou durante os longos e pouco exigentes períodos de vigilância, havia debates apaixonados acerca das intenções dos putativos extraterrestres. Não era possível imaginar como seriam diferentes de nós. Para dificuldade, bastava a de imaginar as intenções dos nossos representantes eleitos em Washington. Quais seriam as intenções de tipos de seres fundamentalmente diferentes de mundos fisicamente diferentes a centenas ou milhares de anos-luz de distância? Alguns estavam convencidos de que o sinal não seria transmitido no espectro de rádio, mas sim no infravermelho, ou no visível, ou algures entre os raios gama. Ou talvez os extraterrestres estivessem a transmitir avidamente, mas com uma tecnologia que não inventaríamos ainda durante mil anos. Astrônomos de outras instituições estavam a fazer descobertas extraordinárias entre as estrelas e as galáxias, a localizar aqueles objetos que, fosse por que mecanismo fosse, geravam ondas de rádio intensas. Outros radioastrônomos publicavam ensaios científicos, assistiam a encontros, eram encorajados por uma sensação de progresso e propósito. Os astrônomos de Argus tinham tendência para não publicar e eram geralmente ignorados quando se fazia apelo à apresentação de ensaios na reunião anual da American Astronomical Society ou nos simpósios trienais e nas sessões plenárias da International Astronomical Union. Por isso, consultada a National Science Foundation, a diretoria de Argus reservara vinte e cinco por cento do tempo de observação para projetos não relacionados com a busca de inteligência extraterrestre. Tinham sido feitas algumas descobertas importantes sobre os objetos extra galácticos que pareciam, paradoxalmente, mover-se mais depressa do que a luz; sobre a temperatura da superfície da grande lua de Netuno, Tritão; e sobre a matéria escura dos espaços exteriores das galáxias próximas onde não se podiam ver estrelas nenhumas. O moral começava a melhorar. O pessoal de Argus sentia que estava a contribuir para aguçar o gume da descoberta astronômica. É verdade que o tempo para completar uma exploração total do céu tinha sido aumentado. Mas, agora, as suas carreiras profissionais tinham uma certa rede de segurança. Podiam não ser bem sucedidos no objetivo de encontrar sinais de outros seres inteligentes, mas tinham a possibilidade de colher outros segredos do tesouro da natureza. A procura de inteligência extraterrestre — referida em toda a parte pela abreviatura SETI, exceto por aqueles que falavam um tanto ou quanto mais otimistamente de comunicação com inteligência extraterrestre (CETI) — era essencialmente uma rotina de observação, o enfadonho objetivo principal para o qual a maior parte da instalação tinha sido construída. Mas durante uma quarta parte do tempo podia-se ter a certeza de utilizar o mais potente conjunto de radiotelescópios da Terra para outros projetos. Bastava apenas suportar a parte enfadonha. Uma pequena porção de tempo fora também reservada a astrônomos de outras instituições. Embora o moral tivesse melhorado notoriamente, havia muitos que concordavam com Drumlin; olhavam cobiçosamente o milagre tecnológico que os cento e trinta e um radiotelescópios de Argus representavam e imaginavam utilizá-los para os seus próprios e indubitavelmente meritórios programas. Ela mostrou-se alternadamente conciliadora e contestadora com Dave, mas nem uma coisa nem outra produziu qualquer efeito. Ele não estava com disposição amigável. O colóquio de Drumlin foi em parte uma tentativa para demonstrar que não havia extraterrestres em parte alguma. Se nós realizáramos tanto apenas nuns poucos milhares de anos de alta tecnologia, de que seria capaz — perguntou — uma espécie verdadeiramente avançada? Seriam capazes de deslocar estrelas, de reconfigurar galáxias. E, no entanto, não existia em toda a astronomia nenhum sinal de um fenômeno que não pudesse ser compreendido por processos naturais, sem que fosse necessário fazer qualquer apelo a inteligência extraterrestre. Por que não detectara já Argus um sinal de rádio? Imaginavam a existência de apenas um radiemissor em todo o firmamento? Faziam idéia de quantos milhares de milhões de estrelas já tinham observado? A experiência era meritória, mas agora acabara. Não tinham de explorar o resto do céu. A resposta era evidente. Nem no espaço mais profundo nem perto da Terra havia qualquer sinal de extraterrestres. Eles não existiam. No período destinado a perguntas, um dos astrônomos de Argus interrogou-o acerca da Hipótese Zôo, o argumento de que os extraterrestres existiam, de fato, mas preferiam não tornar a sua presença conhecida, a fim de ocultarem aos humanos o fato de haver outros seres inteligentes no cosmo — no mesmo sentido em que um especialista no comportamento de primatas poderia desejar observar um bando de chimpanzés na selva, mas não interferir nas suas atividades. Em resposta, Drumlin fez uma pergunta diferente: É provável que, com um milhão de civilizações na Galáxia o gênero de número, disse, que era «propalado» em Argus, não haja um único «caçador furtivo»? Como se explica que todas as civilizações da Galáxia respeitem uma ética de não interferência? É provável que nem uma delas ande a bisbilhotar a Terra? — Mas, na Terra — respondeu Ellie —, caçadores furtivos e guardas de caça possuem níveis de tecnologia mais ou menos iguais. Se o guarda de caça está um passo importante à frente — com radar e helicópteros, digamos —, os caçadores furtivos têm o negócio estragado. A observação foi calorosamente acolhida por alguns dos membros do pessoal do Projeto Argus, mas Drumlin limitou-se a dizer: — Está às apalpadelas, Ellie. Está às apalpadelas. A fim de desanuviar o cérebro, tinha o hábito de percorrer longas distâncias sozinha na sua única extravagância, um Thunderbird de 1958 cuidadosamente conservado, com tejadilho duro amovível e pequenas vigias de vidro a flanquear o banco da retaguarda. Freqüentemente, deixava o tejadilho em casa e conduzia velozmente através do deserto restolhoso, à noite, com as janelas descidas e o cabelo escuro a esvoaçar atrás dela. Tinha a impressão de que, ao longo dos anos, acabara por conhecer todas as pequenas vilas empobrecidas, todos os montes íngremes e mesas e todos os policiais de trânsito estaduais da parte sudoeste do Novo México. Depois de um turno de observação noturna adorava passar velozmente pelo posto de guarda de Argus (isto antes da colocação da cerca anticiclone), mudar rapidamente de velocidade e conduzir para norte. À volta de Santa Fé podia vislumbrar-se a luminosidade tenuíssima do alvorecer, acima das montanhas Sangue de Cristo. (Por que seria que uma religião, perguntava-se, usava o sangue e o corpo, o coração e o pâncreas, da sua figura mais reverenciada para batizar as suas localidades? E por que não se encontrava o cérebro entre outros órgãos proeminentes, mas não celebrados?) Desta vez conduziu para sudeste, na direção das montanhas Sacramento. Teria Dave razão? Poderiam a SETI e Argus ser uma espécie de ilusão coletiva de um punhado de astrônomos insuficientemente realistas? Seria verdade que, fossem quantos fossem os anos que passassem sem a recepção de uma mensagem, o projeto continuaria, inventando sempre uma nova estratégia para a civilização emissora, concebendo incessantemente novos e dispendiosos instrumentos? Que seria um sinal convincente de malogro? Quando estaria ela disposta a desistir e a dedicar-se a qualquer outra coisa mais segura, qualquer outra coisa com mais garantias de resultados? O Observatório Nobeyama, no Japão, acabara de anunciar a descoberta da adenosina, uma molécula orgânica complexa, um tijolo de construção do ADN, instalada no espaço, numa densa nuvem molecular. Poderia, com certeza, ocupar-se utilmente a procurar no espaço moléculas relacionadas com a vida, mesmo que desistisse da procura de inteligência extraterrestre. Na alta estrada da montanha olhou para o horizonte meridional e captou um vislumbre da constelação Centauro. Na disposição daquelas estrelas, os antigos Gregos tinham visto uma criatura quimérica, meio homem, meio cavalo, que ensinara sageza a Zeus. Mas Ellie nunca conseguia distinguir nenhum padrão que se parecesse, ainda que remotamente, com um centauro. Era Alpha Centauro, a estrela mais brilhante da constelação, que a encantava. Era a estrela mais próxima, apenas a 4,25 anos-luz de distância. Na realidade, Alpha Centauro era um sistema triplo, dois sóis a orbitar-se apertada e mutuamente e um terceiro, mais distante, orbitando ambos. Vistas da Terra, as três estrelas amalgamavam-se e formavam um ponto de luz solitário. Em noites especialmente claras, como aquela, conseguia por vezes vê-lo a pairar algures sobre o México. De vez em quando, em ocasiões em que o ar estivera carregado de poeira do deserto após diversos dias consecutivos de tempestades de areia, ia de carro para as montanhas, a fim de conseguir um pouco de altitude e transparência atmosférica, saía do automóvel e observava o sistema estelar mais próximo. Os planetas eram ali possíveis, embora muito difíceis de detectar. Algum podia estar a orbitar de perto qualquer dos sóis triplos. Uma órbita mais interessante, com alguma estabilidade mecânica celeste razoável, era a figura de um oito, que se desenhava à volta dos dois sóis interiores. Como seria, perguntava-se, viver num mundo com três sóis no céu? Provavelmente ainda mais quente do que o Novo México. Ellie reparou, com um agradável pequeno estremecimento, que a auto-estrada alcatroada de duas vias estava ladeada de coelhos. Já os vira antes, especialmente quando os seus passeios de carro a tinham levado até ao Texas Ocidental. Estavam com as quatro patas assentes no chão, nas lombas da estrada; mas, à medida que cada um era momentaneamente iluminado pelos novos faróis de quartzo do Thunderbird, erguia-se nas patas traseiras, paralisado, com as dianteiras frouxamente pendentes. Era como se ao longo de quilômetros houvesse uma guarda de honra de coelhos a saudá-la, enquanto ela cortava ruidosamente a noite. Olhavam para cima, mil narizes rosados a estremecer, dois mil olhos brilhantes a luzir no escuro, enquanto aquela aparição se lançava velozmente direita a eles. Talvez fosse uma espécie de experiência religiosa, pensou. Pareciam ser, na sua maioria, coelhos jovens. Talvez nunca tivessem visto faróis de automóveis. Pensando bem, os dois intensos feixes de luz a deslocar-se a uma velocidade de duzentos e trinta quilômetros por hora constituíam um espetáculo muito interessante. Apesar dos milhares de coelhos que ladeavam a estrada, parecia nunca haver nenhum no meio, perto da linha divisora das duas vias, nunca se verificava uma corridinha atrapalhada para fora do caminho, nunca um triste corpo morto, de orelhas estendidas no pavimento. Mas por que motivo se alinhavam eles ao longo da estrada? Talvez isso tivesse alguma coisa a ver com a temperatura do asfalto, pensou. Ou talvez eles andassem apenas a forragear na vegetação rasteira próxima e sentissem curiosidade a respeito das luzes brilhantes que se aproximavam. Mas seria razoável que nunca nenhum deles desse uns saltitos curtos para visitar os seus primos do outro lado da estrada? Que imaginariam que a auto-estrada era? Uma presença estranha no seu meio, uma presença de função insondável, construída por criaturas que a maior parte deles nunca vira? Duvidava que algum sentisse sequer curiosidade a tal respeito… O silvo dos pneus na auto-estrada era uma espécie de ruído branco, e ela descobriu que estava involuntariamente — também ali — atenta a um padrão sonoro. Adquirira o hábito de escutar atentamente muitas fontes de ruído branco: o motor do frigorífico, que ligava automaticamente no meio da noite; a água a correr para o seu banho; a máquina de lavar quando lavava a roupa no pequeno compartimento-lavandaria adjacente à cozinha; o rugir do oceano durante uma breve viagem para natação subaquática autônoma que fizera à ilha de Cozumel, à saída do Iucatão, viagem que encurtara devido à sua impaciência em voltar para o trabalho. Escutava essas fontes quotidianas de ruído fortuito e tentava determinar se havia nelas menos padrões aparentes do que na estática interestelar. Estivera na cidade de Nova Iorque no mês de Agosto anterior, para uma reunião da URSI (a abreviatura francesa da União de Rádio Científica Internacional). Os metropolitanos eram perigosos, tinham-lhe dito, mas o ruído branco era irresistível. No claca-claca daquela via férrea subterrânea parecera-lhe ouvir uma pista e fizera resolutamente gazeta a meio dia de reuniões, viajando da Rua 34 para Coney Island, voltando ao centro de Manhattam e seguindo depois, por uma linha diferente, para a mais remota Queens. Mudara de comboio numa estação em Jamaica e depois regressara, um pouco ruborizada e ofegante — no fim de contas, era um quente dia de agosto, recordara a si mesma — a assinatura da convenção. Às vezes, quando o comboio subterrâneo se inclinava ao descrever uma curva acentuada, as lâmpadas interiores apagavam-se e ela via uma sucessão regular de luzes, a brilhar num fundo azul-elétrico, a desfilar velozmente, como se se encontrasse nalguma impossível nave espacial interestelar hiper-relativista, lançada através de um aglomerado de jovens estrelas azuis supergigantes. Depois, quando o comboio entrava numa reta, as luzes interiores reacendiam-se e ela voltava a tomar consciência do cheiro acre, do balançar de passageiros vizinhos agarrados às alças suspensas do teto, das miniaturais câmaras de televisão de vigilância (fechadas à chave em caixas protetoras e subseqüentemente tornadas «cegas» com sprays de tinta), do estilizado mapa multicor representando o sistema completo de transporte subterrâneo da cidade de Nova Iorque e do guincho de alta freqüência dos travões quando paravam nas estações. Sabia que tudo aquilo era um pouco excêntrico. Mas ela sempre tivera uma vida de fantasia ativa. Muito bem, era um pouco compulsiva no tocante a escutar ruído. Não via que isso pudesse fazer algum mal. Ninguém parecia aperceber-se muito do fato. De qualquer modo, estava relacionado com o seu trabalho. Se tivesse propensão para tais coisas, talvez tivesse podido deduzir a despesa da sua viagem a Cozumel do seu imposto de rendimento, a pretexto do som das vagas. Enfim, talvez estivesse a tornar-se obsessiva. Apercebeu-se, com um sobressalto, que chegara à estação o Rockefeller Center. Ao passar apressadamente através de uma acumulação de jornais diários abandonados no chão da carruagem do metropolitano, um cabeçalho do News-Post prendera-lhe o olhar: GUERRILHEIROS OCUPAM KALIL JOSURC. Se gostamos deles, são combatentes da liberdade, pensou. Se não gostamos deles, são terroristas. No caso improvável de não sermos capazes de formar uma opinião, são temporariamente apenas guerrilheiros. Num outro bocado de papel próximo via-se uma grande fotografia de um homem de aspecto saudável e confiante sob o cabeçalho: COMO O MUNDO TERMINARÁ. EXCERTOS DO NOVO LIVRO DE REV. BILY JO RANKIN. EXCLUSIVO DESTA SEMANA NO NEWS-POST. Lera os títulos de raspão e tentara imediatamente esquecê-los. Ao dirigir-se, através das multidões azafamadas, para o hotel da reunião, desejava chegar a tempo de ouvir a exposição de Fujita sobre design de radiotelescópio homormófico. Sobreposto ao chiar dos pneus havia um som surdo nas costuras de remendos de pavimento, que tinham sido revestidos por diferentes brigadas de cantoneiros do Novo México em épocas diferentes. E, se uma mensagem interestelar estivesse a ser recebida pelo Projeto Argus, mas muito lentamente — um bit de informação em cada ora, digamos, ou em cada semana, ou em cada década? E se houvesse murmúrios muito antigos, muito pacientes, de alguma civilização emissora que não tinha nenhuma maneira de saber que nos cansamos de reconhecimento de padrões ao fim de segundos ou minutos? Supondo que eles viviam dezenas de milhares de anos. E faalaavaam muiiito devaaagaar. Argus nunca o saberia. Poderiam existir criaturas com uma vida tão longa? Haveria na história do universo tempo suficiente para criaturas que se reproduziam muito devagar evoluírem para um estádio de alta inteligência? A decomposição estatística de elos químicos, a deterioração dos seus corpos de acordo com a segunda lei da termodinâmica, não os forçaria a reproduzirem-se com uma freqüência mais ou menos igual à dos seres humanos? E a ter períodos de duração de vida como o nosso? Ou poderiam eles habitar nalgum mundo velho e frígido onde até as colisões moleculares ocorressem com uma lentidão extrema, talvez apenas de uma seqüência por dia? Imaginou ociosamente um radiemissor de concepção reconhecível e familiar colocado num penhasco de gelo metânico, fracamente iluminado por um distante e enfezado Sol vermelho, enquanto, cá muito em baixo, ondas de um oceano de amônia batiam implacavelmente na costa — gerando incidentalmente um ruído branco indistinguível do da rebentação de Cozumel. O oposto era igualmente possível: faladores rápidos, porventura criaturinhas maníacas, mexendo-se com movimentos rápidos e convulsivos, que transmitiam uma mensagem rádio completa — o equivalente a centenas de páginas de texto inglês — num nanossegundo. Claro que, se o nosso receptor tinha um passa-banda muito estreito, que só permitia escutar uma minúscula faixa de freqüências, éramos obrigados a aceitar a constante têmpora longa. Nunca conseguiríamos detectar uma modulação rápida. Era uma conseqüência simples do teorema integral de Fourrier e estreitamente relacionada com o princípio da incerteza de Heisenber. Assim, por exemplo, se tivéssemos um passa-banda de um kilohertz, não poderíamos compreender um sinal modulado a uma velocidade maior do que um milissegundo. Seria uma espécie de borrão sônico. Os passa-bandas de Argus eram mais estreitos do que um hertz, por isso, para serem detectados, os emissores tinham de estar a modular muito lentamente, mais lentamente do que um bit de informação por segundo. Modulações ainda mais lentas — mais longas do que horas, digamos — podiam ser detectadas facilmente, desde que estivéssemos dispostos a apontar um telescópio à fonte durante esse espaço de tempo e que fôssemos excepcionalmente pacientes. Havia tantos bocados do céu para explorar, tantas centenas de milhares de milhões de estrelas para investigar! Não era possível passar o tempo todo concentrado apenas nalgumas delas. Perturbava-a a idéia de que, na sua pressa de efetuarem uma exploração completa o céu em menos do que a duração de uma vida humana, de escutarem todo o céu em mil milhões de freqüências, tivessem abandonado tanto os faladores frenéticos como os lacônicos laboriosos. Mas certamente, pensou, eles saberiam melhor do que nós as modulações de freqüências que eram aceitáveis. Deviam ter tido experiência prévia de comunicação interestelar e civilizações recém-emergentes. Se havia uma larga faixa de prováveis ritmos de impulsos que a civilização receptora adotaria, a civilização emissora utilizaria essa faixa. Modulação a microssegundos ou modulação a horas, que lhes custaria isso? Deveriam, quase todos eles, possuir engenharia superior e recursos energéticos enormes pelos padrões da Terra. Se quisessem comunicar conosco, facilitar-nos-iam as coisas. Enviariam sinais em muitas freqüências diferentes. Utilizariam muitas escalas diferentes de tempo de modulação. Saberiam como somos atrasados e teriam compaixão. Assim sendo, por que motivo não recebêramos nenhum sinal? Seria possível que Dave tivesse razão? Nenhuma civilização extraterrestre em parte alguma? Todos aqueles milhares de milhões de mundos a deteriorar-se, sem vida, estéreis? Seres inteligentes apenas neste obscuro canto de um universo incompreensivelmente vasto? Por muito esforçadamente que tentasse, Ellie não conseguia tomar a sério semelhante possibilidade. Emalhetava-se perfeitamente com temores e pretensões humanas, com doutrinas não provadas acerca de vida depois da morte, com pseudociências como a astrologia. Era a encarnação moderna do solipsismo geocêntrico, CAPÍTULO IV Números primos Não haverá nenhuns morávios na Lua, para que nem um missionário tenha ainda visitado este nosso pobre planeta pagão para civilizar a civilização e cristianizar a cristandade?      HERMAN MELVILLE White Jucket (1850) Só o silêncio é grande; tudo o mais é fraqueza.      ALFRED DE VIGNY La Mort du Loup (1864) O vácuo preto e frio tinha ficado para trás. Os impulsos aproximavam-se agora de uma comum estrela anã amarela e já tinham começado a derramar-se pelo séquito de mundos daquele obscuro sistema. Tinham passado, palpitantes, por planetas de gás de hidrogênio, penetrado em luas de gelo, transposto as nuvens orgânicas de um mundo frígido onde os precursores da vida começavam a agitar-se e atravessado um planeta que já deixara o seu apogeu mil milhões de anos para trás. Agora, os impulsos estavam a espraiar-se contra um mundo tépido, azul e branco, que girava contra o pano de fundo das estrelas. Havia vida neste mundo, vida extravagante na sua quantidade e variedade. Havia aranhas saltadoras nos cumes gelados das montanhas mais altas e vermes comedores de enxofre nos vapores quentes que esguichavam para cima através das escarpas dos leitos dos oceanos. Havia seres que só podiam viver em ácido sulfúrico concentrado e seres que eram destruídos por ácido sulfúrico concentrado; organismos que eram envenenados pelo oxigênio e organismos que sobreviviam exclusivamente no oxigênio, que respiravam, realmente, oxigênio. Uma forma de vida particular, com um mínimo de inteligência, alastrara recentemente pelo planeta. Tinham postos avançados nos leitos dos oceanos e em órbita a baixa altitude. Tinham enxameado para todos os nichos e escaninhos do seu pequeno mundo. A fronteira que assinalava a transição da noite para o dia estava a desviar-se para ocidente e, obedecendo ao seu movimento, milhões desses seres efetuavam ritualmente as suas abluções matinais. Vestiam sobretudos e dhotis[2 - Tanga usada pelos Hindus na Índia. (N. da T.)]; bebiam infusões de café, chá ou dente-de-leão, conduziam bicicletas, automóveis ou bois; e fugidiamente pensavam em problemas escolares, perspectivas para as plantações vernais e no destino do mundo. Os primeiros impulsos da seqüência de ondas de rádio insinuaram-se através da atmosfera e das nuvens, embateram na paisagem e foram parcialmente re-refletidos para o espaço. Enquanto a Terra girava debaixo delas, chegaram impulsos sucessivos que invadiram não somente este planeta, mas também todo o sistema. Muito pouca da energia foi interceptada por qualquer dos mundos. A maior parte dela prosseguiu em frente, sem esforço — enquanto a estrela amarela e os seus mundos acompanhantes mergulhavam, numa direção completamente diferente, no negrume de tinta. Envergando um casaco de dacron com a palavra Marauders por cima de uma estilizada bola de vôlei de feltro, o funcionário de serviço, que iniciava o turno noturno, aproximou-se do edifício de controle. Um grupo de radioastrônomos ia naquele momento a sair para jantar. — Há quanto tempo andam vocês à procura de homenzinhos verdes? Há mais de cinco anos, não é, Willie? Brincaram cordialmente com ele, mas o homem detectou uma certa irritação nas suas brincadeiras. — Dêem-nos uma aberta, Willie — disse outro. — O programa de luminosidade dos quasars vai de vento em popa, mas demorará eternamente se só dispusermos de dois por cento de tempo de telescópio. — Claro, Jack, claro. — Willie, estamos a olhar para trás, para a origem do universo. Também há uma grande parada no nosso programa… e nós sabemos que existe ali um universo; vocês não sabem se existe um único homenzinho verde. — Discutam o assunto com a doutora Arroway. Estou certo de que ela gostará de ouvir a vossa opinião — respondeu com certo azedume. O funcionário de serviço entrou na área de controle. Fez uma inspeção rápida a dúzias de écrans de televisão que monitorizavam o progresso da radiopesquisa. Tinham acabado de examinar a constelação Hércules. Tinham espreitado para o coração de um grande enxame de galáxias para lá da Via Láctea, o Aglomerado de Hércules — a cem milhões de anos-luz de distância; tinham apontado, à M-13, um enxame de trezentos mil estrelas, mais estrela menos estrela, gravitacionalmente unidas e movendo-se em órbita à volta da Galáxia da Via Láctea a vinte e seis mil anos-luz de distância; tinham examinado Ras Algethi, um sistema duplo, e Zeta e Lambda Herculis algumas estrelas diferentes do Sol, algumas semelhantes, e próximas dele. A maior parte das estrelas que podemos ver a olho nu encontram-se a menos de alguns centos de anos-luz de distância. Haviam monitorizado cuidadosamente centenas de pequenos sectores do céu no interior da constelação de Hércules em mil milhões de freqüências diferentes e não tinham ouvido nada. Em anos anteriores tinham investigado as constelações imediatamente a ocidente de Hércules: Serpens, Corona Borealis, Boõtes, Canes Venatici… e também não tinham ouvido nada. O funcionário de serviço reparou que alguns dos telescópios estavam orientados para procurar em Hércules alguns dados que faltavam. Os restantes apontavam, como que de olhar enfastiado, para uma extensão adjacente de céu, a constelação seguinte a leste de Hércules. As pessoas do Mediterrâneo Oriental, havia alguns milhares de anos, parecera um instrumento musical de cordas e tinha sido relacionada com o herói da cultura grega Orfeu. Era uma constelação chamada Lira. Os computadores movimentavam os telescópios para acompanharem as estrelas de Lira desde que nasciam até que se punham, acumulavam os radiofótons, vigiavam a saúde dos telescópios e processavam os dados num formato conveniente para os seus utilizadores humanos. Até um funcionário de serviço era qualquer coisa como uma condescendência. Passando por um frasco de drops, uma máquina de café, uma frase em runas élficas retirada de Tolkien pelo Artificial Intelligence Laboratory de Stanford e um autocolante de pára-choques que dizia «buracos negros estão fora de vista», Willie aproximou-se da consola de comando. Acenou simpaticamente com a cabeça ao funcionário que estivera de serviço de tarde e estava agora a reunir os seus apontamentos e a preparar-se para sair e ir jantar. Em virtude de os dados recolhidos naquele dia estarem convenientemente sumarizados em âmbar no mostrador principal, Ellie não teve necessidade de perguntar quais tinham sido os progressos das horas precedentes. — Como vê, nada de importante. Houve um pointing glitch — pelo menos era o que parecia — em 1949 —, disse o outro, a apontar vagamente na direção da janela. — O grupo dos quasars libertou os um-dez e um-vinte há cerca de uma hora. Parece que estão a obter dados muito bons. — Sim, já ouvi dizer. Eles não compreendem… A sua voz emudeceu quando uma luz de alarme se acendeu com decoro na consola à sua frente. Num mostrador identificado «Intensidade versus Freqüência» subia um aguçado espigão vertical e, é um sinal monocromático. Outro mostrador, rotulado «intensidade versus Tempo», apresentava um conjunto de impulsos a mover-se da esquerda para a direita e depois a sair do écran. — Aquilo são números — disse Willie, baixinho. — Alguém está a emitir números. — Provavelmente, é alguma interferência da Força Aérea. Vi um Awacs, provavelmente de Kinland, cerca das dezesseis horas. Talvez estejam a enganar-nos para se divertirem. Tinham-se feito acordos solenes para salvaguardar pelo menos algumas radiofreqüências para a astronomia. Mas, precisamente porque essas freqüências constituíam um canal desimpedido, às vezes os militares achavam-nas irresistíveis. Se alguma vez rebentasse a guerra global, talvez os radioastrônomos fossem os primeiros a saber, com as suas janelas abertas para o cosmo a transbordar de ordens para satélites de condução de combate e avaliação de estranhos em órbita geossíncrona e com a transmissão de ordens e lançamento codificadas para distantes postos estratégicos avançados. Mesmo sem nenhum tráfico militar, ao escutar mil milhões de freqüências simultaneamente, os astrônomos tinham de contar com alguma interferência. Relâmpagos, ignições de automóveis e satélites de difusão direta, tudo isto constituía fontes de interferências de rádio. Mas os computadores tinham o seu número, conheciam as suas características e ignoravam-nas sistematicamente. Aos sinais mais ambíguos, o computador escutava-os com maior cuidado e certificava-se de que não correspondiam a nenhuma lista dos dados que estava programado para compreender. De vez em quando passava uma aeronave de inteligência eletrônica em missão de treino — ocasionalmente com um disco de radar recatadamente disfarçado de disco voador na sua garupa — e Argus detectava subitamente sinais inequívocos de vida inteligente. Mas verificava-se sempre tratar-se de vida de uma espécie peculiar e triste, inteligente até certo ponto e apenas muito tangencialmente extraterrestre. Alguns meses antes, um F29E, com medidas defensivas eletrônicas state-of-the-art, sobrevoou-os a dois mil e quatrocentos metros e fez soar os alarmes de todos os cento e trinta e um telescópios. Aos olhos não militares dos astrônomos, a radioassinatura tinha sido suficientemente complexa para poder ser uma plausível primeira mensagem de uma civilização extraterrestre. Verificaram, porém, que o radiotelescópio mais ocidental recebera o sinal um minuto inteiro antes do mais oriental, e depressa se tornou evidente tratar-se de um objeto que atravessava o delgado invólucro de ar que circunda a Terra, e não uma emissão de alguma civilização inimaginavelmente diferente das profundezas do espaço. Este agora era quase com certeza a mesma coisa. Os dedos da sua mão direita estavam enfiados em cinco receptáculos regularmente espaçados de uma caixa baixa colocada na sua secretária. Desde a invenção daquela engenhoca que conseguia poupar meia hora por semana. Mas, na verdade, não tivera grande coisa que fazer com essa meia hora extra. — E estava a contar tudo a Mistress Yarborough. É a da cama ao lado, agora que Mistress Wertheimer faleceu. Não pretendo gabar-me, mas acho-me com direito a muito crédito pelo que tens feito. — Sim, mãe. Observou o brilho das unhas e achou que precisavam de mais um minuto, talvez um minuto e meio. — Estive a pensar naquela vez no quarto ano… lembras-te? Chovia e tu não querias ir à escola, e pediste-me que no dia seguinte escrevesse um bilhete a dizer que faltaras por teres estado doente. E eu recusei-me. Disse: «Ellie, além de se ser bonita, a coisa mais importante do mundo é ter instrução. Não podemos fazer grande coisa quanto à boniteza, mas podemos fazer alguma quanto à instrução. Vai para a escola. nunca se sabe o que poderás aprender hoje.» Não é verdade? — Sim, mãe. — O que quero dizer é se não foi isso que te disse nessa altura. — Foi, mãe, eu lembro-me. O brilho dos quatro dedos estava perfeito, mas o polegar ainda tinha um aspecto mate-baço. — Por isso, fui buscar as tuas galochas e o teu impermeável — era um daqueles amarelos, compridos, ficavas muito engraçada com ele — e corri contigo para a escola. E foi nesse dia que não conseguiste responder a uma pergunta na aula de Matemática de Mister Weisbrod, não foi? Ficaste tão furiosa que foste direita à biblioteca do colégio e leste a respeito do assunto até ficares a saber mais do que Mister Weisbrod. Ele sentiu-se impressionado. Disse-me. — Disse-lhe? Não sabia isso. Quando falou com Mister Weisbrod? — Foi numa reunião de pais com professores. Ele disse-me: «Aquela sua pequena tem gênica.» Ou palavras com o mesmo sentido. «Ficou tão furiosa comigo que se tornou uma verdadeira especialista na matéria». «Especialista», foi o que ele disse. Eu sei que te contei isto. Tinha os pés apoiados numa gaveta da secretária e estava recostada na cadeira giratória; a única coisa que a estabilizava eram os dedos enfiados na máquina de envernizar. Sentiu o «besouro» quase antes de o ouvir e endireitou-se bruscamente. — Mãe, tenho de desligar. — Tenho a certeza de que te contei esta história antes. Tu é que nunca prestas atenção ao que eu digo. Mister Weisbrod era um homem simpático, embora tu nunca tenhas conseguido ver o seu lado bom. — Mãe, tenho mesmo de desligar. Detectamos um tipo qualquer de bogey. — Bogey? — A mãe sabe o que é, uma coisa que pode ser um sinal. Já falamos a esse respeito. — Aqui estamos nós a pensar que a outra não está a ouvir. Tal mãe, tal filha. — Adeus, mãe. — Deixo-te desligar se me prometeres que logo a seguir me telefonas. — Está bem, eu prometo. Durante toda a conversa, a carência e a solidão da mãe tinham despertado em Ellie um desejo de terminar a conversa, de fugir. Detestava-se por isso. Desembaraçadamente, entrou na área de controle e aproximou-se da consola principal. — Boas noites, Willie, Steve. Vamos lá ver os dados. Ótimo. Onde meteram o gráfico da amplitude? Muito bem. Têm a posição interferométrica? Sim, senhor. Vejamos agora se há alguma estrela próxima nesse campo de visão. Oh, estamos a olhar para Vega! É uma vizinha muito próxima. Os seus dedos iam premindo um teclado enquanto ela falava. — Vejam, está apenas a vinte e seis anos-luz de distância. Foi observada antes, sempre com resultados negativos. Eu própria a observei na minha primeira exploração em Arecibo. Qual é a intensidade absoluta? Com a breca! São centenas de janskys. Podia-se captar praticamente num rádio de FM. Muito bem. Temos, portanto, um bogey muito perto de Vega no plano do céu uma freqüência à volta de nove vírgula dois gigahertz, não muito monocromática. A largura da banda é de poucas centenas de hertz. É linearmente polarizada e está a transmitir um conjunto de impulsos móveis restritos a duas amplitudes diferentes. Em resposta às suas ordens datilografadas, o écran apresentou a disposição de todos os radiotelescópios. — Está a ser recebido por cento e dezesseis telescópios individuais. É evidente que não se trata de avaria de um ou dois deles. Bem, agora devemos ter suficiente linha dos tempos. Está a mover-se com as estrelas? Ou poderá ser algum satélite ou aeronave ELINT? — Posso confirmar o movimento sideral, doutora Arroway. — Muito bem, isso é bastante convincente. Não é cá de baixo, da Terra, e provavelmente não é de um satélite artificial numa órbita molniya, embora seja melhor verificarmos isso. Quando tiver oportunidade, Willie, ligue para NORAD e veja o que dizem acerca da possibilidade de ser um satélite. Se pudermos excluir os satélites, isso deixar-nos-á duas possibilidades: ou é uma brincadeira, ou alguém conseguiu finalmente enviar-nos uma mensagem. Steve, faça uma verificação manual. Examine alguns radiotelescópios individuais — a força do sinal é sem dúvida suficientemente grande — e veja se há alguma possibilidade de ser um truque; você percebe, uma gracinha de alguém que deseja demonstrar-nos o erro dos nossos procedimentos. Um punhado de outros cientistas e técnicos, alertados através dos seus «besouros» pelo computador Argus, tinha-se reunido à volta da consola de comando. Viam-se-lhes meios sorrisos nos rostos. Nenhum deles pensava seriamente na possibilidade de uma mensagem de outro mundo, por enquanto, mas havia uma sensação de dia sem escola, uma quebra da enfadonha rotina a que se tinham habituado e talvez um leve ar de expectativa. — Se ocorrer a algum de vocês qualquer outra explicação além da de inteligência extraterrestre, quero ser informada — disse Ellie, demonstrando-lhes que estava ao corrente da sua presença. — Não há nenhuma possibilidade de ser Vega, doutora Arroway. O sistema tem apenas poucas centenas de milhões de anos. Os seus planetas encontram-se ainda no processo de formação. Não ouve tempo para lá se desenvolver vida inteligente. Tem de ser alguma estrela de fundo. Ou galáxia. — Mas, nesse caso, a força do emissor tem de ser absurdamente grande — lembrou um membro do grupo dos quasars que voltara para trás, a fim de ver o que estava a acontecer. — Precisamos de iniciar imediatamente um estudo sensível de movimento próprio para podermos ver se a fonte de rádio se movimenta com Vega. — Claro que tem razão acerca do movimento. próprio, Jack — concordou Ellie. — Mas há outra possibilidade. Talvez eles não tenham crescido no sistema de Vega. Talvez estejam apenas de visita. — Isso também não serve. O sistema está cheio de resíduos. É um sistema solar falhado ou um sistema solar ainda nos seus estádios de desenvolvimento iniciais. Se lá se demoram muito tempo, a sua nave espacial será bombardeada. — Por conseqüência, chegaram recentemente. Ou vaporizam os meteoritos que se aproximem. Ou recorrem a ação de esquiva se há uma massa de resíduos numa trajetória de colisão. Ou não estão no plano anelar, mas sim em órbita polar, a fim de minimizarem os seus encontros com os resíduos. Há um milhão de possibilidades. Mas você está absolutamente certo: não precisamos de calcular se a fonte é no sistema Vega: Podemos descobrir, de fato. Quanto tempo demorará esse estudo de movimento próprio? A propósito, Steve, este não é o seu turno. Pelo menos, avise a Consuela de que vai chegar tarde para jantar. Willie, que estivera a telefonar numa consola adjacente, apresentava um sorriso amarelo. — Bem, consegui comunicar com um tal major Braintree, em NORAD. Ele garante a pés juntos que não têm nada que dê este sinal, principalmente a nove gigahert. Claro que nos dizem o mesmo todas as vezes que telefonamos. De qualquer modo, afirma que não detectaram nenhuma nave espacial na ascensão e declínio certos de Vega. — E a respeito de escuros? Naquela altura havia muitos satélites «escuros» com baixos cones transversais de radar, concebidos para orbitar a Terra sem serem anunciados nem detectados até uma hora de necessidade. Então serviriam como suportes de detecção de lançamentos ou de comunicações numa guerra nuclear, em caso de os satélites militares de primeira linha destinados a esses fins desaparecerem subitamente em ação. Ocasionalmente, um escuro era detectado por um dos grandes sistemas astronômicos de radar. Todas as nações negavam que o objeto lhes pertencesse e desencadeava-se uma especulação desenfreada a respeito da detecção de uma nave espacial extraterrestre a orbitar a Terra. Com a aproximação do Milênio, os cultos OVNI prosperavam de novo. — A interferometria exclui agora uma órbita tipo molnyia, doutora Arroway. — Cada vez melhor. Olhemos mais atentamente estes impulsos móveis. Presumindo que isto é aritmética binária, alguém a converteu em base dez? Sabemos qual é a seqüência de números? Muito bem, podemos calcular isso de cabeça… 59, 61, 67… 71… Não são todos números primos? Um pequeno murmúrio de excitação percorreu a sala de controle. O rosto da própria Ellie revelou momentaneamente um estremecimento de qualquer coisa profundamente sentida, mas que foi rapidamente substituído por uma sobriedade, um receio de se deixar arrebatar pelo entusiasmo, uma apreensão de poder parecer pateta, incientífica. — Bem, vejamos se consigo fazer outro resumo rápido. Tentarei fazê-lo na linguagem mais simples possível. Verifiquem, por favor, se me escapou alguma coisa. Temos um sinal extremamente forte e não muito monocromático. Imediatamente fora do passa-banda deste sinal não existem outras freqüências transmitindo alguma coisa mais do que ruído. O sinal é linearmente polarizado, como se estivesse a ser emitido por um radiotelescópio. O sinal anda nas imediações dos nove gigahertz, perto do mínimo do fundo de ruído de rádio galáctico. É o tipo certo de freqüência para alguém que queira ser ouvido de uma grande distância. Confirmamos o movimento sideral da fonte, o que significa que se está a mover como se estivesse lá em cima, entre as estrelas, e não proviesse de um transmissor local. NORAD diz-nos que não detectam nenhuns satélites — nossos ou seja de quem for — que correspondam à posição desta fonte. A interferometria exclui, aliás, uma fonte a orbitar a Terra. «Agora o Steve examinou os dados fora do modo automatado e não parece tratar-se de um programa que alguém possuidor de um sentido de humor deformado tenha introduzido no computador. A região do firmamento que estamos a examinar inclui Vega, que é uma estrela anã de seqüência principal A-zero. Não é exatamente como o Sol, mas encontra-se apenas a vinte e seis anos-luz de distância e tem o anel de detritos estelares prototípicos. Não há nenhuns planetas conhecidos, mas certamente poderia haver planetas acerca dos quais não sabemos nada à volta de Vega. Estamos a iniciar um estudo de movimento próprio para ver se a fonte está bem atrás da nossa linha de visão para Vega, e devemos ter uma resposta dentro de… — o quê? —… poucas semanas se nos restringirmos a nós próprios, ou poucas horas se fizermos alguma interferometria de linha dos tempos longa. «Finalmente, o que está a ser enviado parece uma longa seqüência de números primos, números inteiros que não são divisíveis por qualquer outro número a não ser por si mesmos e por um. Nenhum processo astrofísico é susceptível de gerar números primos. Por isso diria, devemos ser cautelosos, evidentemente…, mas eu diria que, de acordo com todos os critérios a que temos acesso, isto parece ser o artigo genuíno. «Mas existe um problema na idéia de que seja uma mensagem de tipos que evoluíram nalgum planeta das imediações de Vega, porque, sendo assim, teriam tido de evoluir muito depressa. O tempo de vida completo da estrela é apenas de cerca de quatrocentos milhões de anos. É um lugar pouco provável para a civilização mais próxima. Por conseguinte, o estudo do movimento próprio é muito importante. Mas eu gostaria, sem dúvida nenhuma, de examinar um pouco mais essa possibilidade de truque. — Olhe — disse um dos astrônomos de observação de quasars que estivera a assistir na periferia do ajuntamento, e apontou com o queixo para o horizonte ocidental, onde uma leve aura rósea indicava inequivocamente onde o Sol se pusera. — Vega vai pôr-se daqui a umas duas horas. Provavelmente já nasceu na Austrália. Não podemos comunicar com Sydney e pedir-lhes que observem ao mesmo tempo que nós ainda estamos a ver aqui? — Boa idéia. Lá a tarde vai apenas em meio. E juntos teremos linha dos tempos suficiente para o estudo do movimento próprio. Dêem-me esse printout sumário e eu telefaxo-o para a Austrália do meu gabinete. Com uma compostura forçada, Ellie deixou o grupo reunido à volta das consolas e voltou para o seu gabinete. Fechou a porta com todo o cuidado depois de entrar. — C’um raio! — murmurou. — Ian Broderick, por favor. Sim, é Eleanor Arroway, do Projeto Argus. Trata-se mais ou menos de uma emergência. Obrigada, eu espero… Olá, Ian! Provavelmente não é nada, mas temos aqui um bogey e eu gostaria de saber se pode verificar aí para nós. É à volta de nove gigahertz, com um passa-banda e algumas centenas de hertz. Vou telefaxar os parâmetros… Já têm no disco uma antena boa a nove gigahertz? Isso é um bocado de sorte… Sim, Vega está em cheio no meio do campo visível. E nós estamos a receber o que parece serem impulsos de números primos… Sério. Está bem, eu aguardo. Pensou mais uma vez quanto a comunidade astronômica mundial se encontrava atrasada. Ainda não estava on line um sistema conjunto de computador e banco de dados. A sua importância, só para reticulação assíncrona, seria… — Escute, Ian, enquanto o telescópio acaba de girar, não podia preparar-se para examinar um diagrama de amplitude-tempo? Chamemos aos impulsos de baixa amplitude pontos e aos impulsos de alta amplitude traços. Estamos a… Sim, é exatamente esse o padrão que temos estado a ver na última meia hora… Talvez. Bem, é o melhor candidato em cinco anos, mas não consigo esquecer-me como os Soviéticos foram enrolados com aquele incidente do satélite Big Bird por volta de 1974. Olhe, no meu entender, foi uma exploração norte-americana de altimetria-radar da União Soviética para orientação de mísseis de cruzeiro… Sim, um mapeador. E os Soviéticos estavam a captá-lo com antenas omnidirecionais. Não sabiam dizer de que parte do céu o sinal estava a vir. Só sabiam que todas as manhãs recebiam a mesma seqüência de impulsos do céu mais ou menos à mesma hora. O pessoal deles garantia que não era uma transmissão militar e, por isso, naturalmente, pensaram que fosse extraterrestre… Não, nós já excluímos a possibilidade de uma transmissão de satélite. «Ian, podemos pedir-lhe o favor de o acompanhar enquanto estiver no seu céu? Mais tarde falo consigo a respeito de VLBI. Vou ver se consigo que outros radiobservatórios, distribuídos muito regularmente em longitude, o acompanhem até reaparecer aqui… Sim, mas não sei se é fácil fazer um telefonema direto para a China. Estou a pensar em enviar um telegrama IAU… Ótimo. Muito obrigada, Ian. Ellie parou à porta da sala controle — chamavam-lhe assim com uma ironia consciente, pois eram os computadores que, noutra sala, faziam a maior parte do controle para admirar o pequeno grupo de cientistas que falavam com grande animação, observavam os dados que estavam a ser revelados e trocavam pequenos gracejos quanto à natureza do sinal. Não era gente de estilo, pensou. Não eram convencionalmente bem-parecidos. Mas havia neles um não sei quê de inequivocamente atraente. Eram excelentes no que faziam e, especialmente no processo de descoberta, absorviam-se por completo no seu trabalho. Quando se aproximou, calaram-se e olharam-na na expectativa. Os numerais estavam a ser convertidos automaticamente da base dois para a base dez… 881, 883, 887, 907… cada um deles confirmado como número primo. — Willie, arranje-me um mapa-múndi. E, por favor, ligue-me a Mark Auerbach, Cambridge, Mass. Provavelmente está em casa. Dê-lhe o texto para um telegrama IAU dirigido a todos os observatórios, mas em especial a todos os grandes radiobservatórios. E veja se ele arranja o nosso número de telefone para o Radiobservatório de Beijing. Depois ligue-me para o conselheiro científico da presidente. — Vai passar por cima da National Science Foundation? — Depois do Auerbach ligue-me para o conselheiro científico da presidente. Mentalmente, pareceu-lhe ouvir um grito jubiloso entre um clamor de outras vozes. De bicicleta, furgoneta, carreiro a pé ou telefone, o único parágrafo foi entregue em centros astronômicos de todo o mundo. Nalguns radiobservatórios importantes — na China, na Índia, na União Soviética e na Holanda, por exemplo —, a mensagem foi recebida por telescritor. Enquanto ia chegando, matraqueante, era observada por um funcionário de segurança ou por algum astrônomo de passagem, arrancada e levada, com uma expressão de certa curiosidade, a um gabinete adjacente. Dizia: ANÔMALA FONTE RÁDIO INTERMITENTE EM ASCENSÃO RETA 180 34M, DECLINAÇÃO MAIS 38 GRAUS 41 MINUTOS, DESCOBERTA POR EXPLORAÇÃO SISTEMÁTICA DO CÉU PELO ARGUS. FREQÜÊNCIA 9,24176684 GIGAHERTZ, PASSA-BANDA APROXIMADAMENTE 430 HERTZ. AMPLITUDES BIMODAIS APROXIMADAMENTE 174 E 179 JANSKYS. AMPLITUDES DE EVIDÊNCIA CODIFICAM SEQÜÊNCIA DE NÚMEROS PRIMOS. COBERTURA DE LONGITUDE COMPLETA URGENTEMENTE NECESSÁRIA. FAVOR COMUNICAR A COBRAR NO DESTINO PARA MAIS INFORMAÇÕES SOBRE COORDENAÇÃO DE OBSERVAÇÕES. E. ARROWAY, DIRETORA, PROJETO ARGUS, SOCORRO, NOVO MÉXICO, EUA. CAPÍTULO V Algoritmo descriptografador Oh, falai de novo, anjo luminoso!…      WILLIAM SHAKESPEARE. Romeu e Julieta As instalações dos cientistas visitantes estavam agora todas ocupadas, melhor dizendo, sobreocupadas, por luminares selecionados da comunidade SETI. Quando a delegação oficial começou a chegar de Washington, os seus membros não encontraram acomodações adequadas nas instalações de Argus e tiveram de se aboletar em motéis da vizinha Socorro. Kenneth der Heer, o conselheiro científico da presidente, foi a única exceção. Chegara no dia a seguir à descoberta, em resposta a um apelo urgente de Eleanor Arroway. Funcionários da National Science Foundation, da National Aeronautics and Space Administration, do Departamento da Defesa, do President’s Science Advisory Committee, do National Security Council e da National Security Agency foram chegando durante os dias seguintes. Havia alguns funcionários governamentais cuja filiação institucional precisa permanecia obscura. Na noite anterior, alguns deles tinham-se reunido na base do Telescópio 101 e Vega fora-lhes mostrada pela primeira vez. Cortesmente, a sua luz azul-branca tremeluzira maravilhosamente. — Quero dizer, já a tinha visto antes, mas nunca soube como se chamava — observou um deles. Vega parecia mais brilhante do que as outras estrelas do firmamento, mas não se tornava notória em nenhum outro aspecto. Era apenas uma dos poucos milhares de estrelas visíveis a olho nu. Os cientistas efetuavam um seminário de investigação contínua sobre a natureza, a origem e o possível significado dos rádio-impulsos. O gabinete de relações públicas do projeto — maior do que na maioria dos observatórios em virtude do grande interesse existente na procura de inteligência extraterrestre — recebeu o encargo de esclarecer os funcionários das categorias mais baixas. Cada recém-chegado necessitava de um extenso esclarecimento pessoal. Ellie, que tinha de informar os funcionários superiores, superintender na investigação em curso e responder à curiosidade cética, perfeitamente compreensível, demonstrada com algum vigor por colegas seus, sentia-se exausta. O luxo de uma noite inteira de sono tinha-lhe sido recusado desde a descoberta. Ao princípio haviam tentado guardar silêncio sobre o caso. No fim de contas, não tinham a certeza absoluta de que se tratava de uma mensagem extraterrestre. Um anúncio prematuro ou errado seria um desastre no capítulo de relações públicas. E, pior ainda, interferiria na análise dos dados. Se a imprensa avançasse, a ciência sofreria com certeza. Tanto Washington como Argus estavam interessados em manter a história abafada. Mas os cientistas tinham dito às suas famílias, o telegrama da União Astronômica Internacional fora enviado a todo o mundo, e sistemas ainda rudimentares de bancos de dados astronômicos da Europa, da América do Norte e do Japão estavam todos a transportar notícias da descoberta. Embora tivesse havido uma série de planos de contingência para a divulgação pública de quaisquer descobertas, as circunstâncias reais tinham-nos surpreendido em grande parte mal preparados. Redigiam uma declaração tão inócua quanto possível e só a divulgavam quando tinha de ser. O assunto causou, claro, sensação. Tinham pedido aos media que fossem pacientes, mas sabiam que dispunham apenas de um breve período antes de a imprensa atacar em força. Tinham tentado desencorajar os repórteres de visitar o local, explicando que não havia nenhuma informação real nos sinais que estavam a receber, que se tratava apenas de números primos enfadonhos e repetitivos. A imprensa sentia-se impaciente com a falta de notícias concretas. «Podemos apenas escrever algumas linhas sobre ‘Que é um número primo?’«, perguntou um repórter a Ellie pelo telefone. Equipes de filmagem de televisão, em táxis aéreos de asa fixa e helicópteros alugados, começaram a sobrevoar baixo as instalações, ocasionando por vezes uma forte radiointerferência facilmente detectada pelos telescópios. Alguns repórteres seguiam os funcionários de Washington quando eles regressavam aos motéis, à noite. Um pequeno número dos mais empreendedores tentara entrar nas instalações sem ser notado — de carro de praia, motocicleta e, num caso, a cavalo. Ellie vira-se obrigada a informar-se do preço para uma grande quantidade de cerca anticiclônica. Imediatamente após a sua chegada, Der Heer ouvira uma primeira versão do que entretanto se tornara a informação-padrão de Ellie: a surpreendente intensidade do sinal, a sua localização muito aproximadamente na parte do céu onde se encontrava a estrela Vega é a natureza dos impulsos. — Posso ser o conselheiro científico da presidente — dissera ele —, mas sou apenas um biólogo. Por isso, queira explicar-me tudo devagar. Compreendo que, se a fonte de rádio se encontra a vinte e seis anos-luz de distância, então a mensagem teve de ser enviada há vinte e seis anos. Na década de sessenta, algumas pessoas de aspecto esquisito e orelhas pontiagudas pensaram que quereríamos saber que gostam de números primos. Mas números primos não são coisa difícil. Não dá a impressão de que estão a fanfarronar. Parece mais que estão a enviar-nos aritmética corretiva. Talvez devêssemos sentir-nos insultados. — Não. Veja as coisas deste modo — pediu ela, a sorrir: — isto é um farol. É um sinal de comunicação. Destina-se a atrair a nossa atenção. Recebemos padrões estranhos de impulsos de quasars, pulsars, radiogaláxias e sabe Deus que mais. Mas números primos são muito específicos, muito artificiais. Nenhum número par é primo, por exemplo. É difícil imaginar algum plasma irradiante ou alguma galáxia em explosão a transmitir um conjunto regular de sinais matemáticos como este. Os números primos destinam-se a atrair a nossa atenção. — Mas para quê? — perguntou ele, sinceramente intrigado. — Não sei. Neste trabalho temos, porém, de ser muito pacientes. Talvez daqui a pouco tempo os números primos desapareçam e sejam substituídos por outra coisa qualquer, por qualquer coisa muito rica, a verdadeira mensagem. Temos apenas de continuar à escuta. Esta era a parte mais difícil de explicar à imprensa, que os sinais não tinham essencialmente conteúdo algum, nenhum significado: tratava-se apenas das primeiras centenas de números primos por ordem, um retrocesso ao princípio e depois novamente as simples representações binárias aritméticas: 1, 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29, 31… nove não era um número primo, explicara ela, porque era divisível por três (assim como por nove e um, claro). Dez não era um número primo porque era divisível por cinco e dois (assim como por dez e um). Onze era um número primo porque era divisível somente por um e por si mesmo. Mas para quê transmitir números primos? Aquilo recordava-lhe um sábio idiota, uma daquelas pessoas que podem ser grosseiramente deficientes em aptidões sociais ou verbais, mas são capazes de proezas espantosas de aritmética mental — como calcular, por exemplo, depois de pensar um momento, em que dia da semana calharia 1 de Junho de 1977. Não faziam isso para nada; faziam-no porque gostavam, porque eram capazes de fazê-lo. Ela sabia que a mensagem começara a chegar havia poucos dias apenas, mas sentia-se ao mesmo tempo eufórica e profundamente decepcionada. Ao fim de todos aqueles anos tinham finalmente recebido um sinal — uma espécie de sinal, enfim. Mas o seu conteúdo era superficial, oco, vazio. Imaginara que receberia a Enciclopédia Galáctica. Só alcançamos a capacidade de utilizar a radioastronomia nas últimas décadas, recordava a si mesma, numa galáxia onde a idade média das estrelas é de milhares de milhões de anos. A possibilidade de receber um sinal de uma civilização exatamente tão avançada como a nossa é, naturalmente, ínfima. Se eles estivessem um bocadinho que fosse atrás de nós, faltar-lhes-ia a capacidade tecnológica de comunicar sequer conosco. Portanto, o sinal mais provável deveria vir de uma civilização muito mais avançada. Talvez fossem capazes de compor fugas-espelho completas e melódicas: o contraponto seria o tema escrito de trás para a frente. Não, concluiu. Embora isso fosse sem dúvida uma espécie de gênio e certamente além das suas aptidões, era uma pequena extrapolação daquilo que os seres humanos eram capazes de fazer. Bach e Mozart tinham pelo menos feito tentativas respeitáveis. Tentou dar um salto maior para a mente de alguém que fosse enormemente, ordens de magnitude, mais inteligente do que ela, mais esperto do que Drumlin, digamos, ou Eda, o jovem físico nigeriano que acabara de ganhar o Prêmio Nobel. Mas era impossível. Conseguia apenas cismar com a demonstração do último teorema de Ferma ou a conjectura de Goldbach nalgumas linhas de equações. Conseguia imaginar problemas que ficavam enormemente além da nossa capacidade, mas que seriam canja para eles. Mas não conseguia meter-se na sua mente; não conseguia imaginar o que seria pensar se uma pessoa fosse muito mais apta do que um ser humano. Naturalmente. Não era surpresa nenhuma. Que esperava? Era como tentar visualizar uma nova cor primária ou um mundo no qual fosse possível reconhecer individualmente várias centenas de conhecidos apenas pelo seu cheiro… Era capaz de falar dessas coisas, mas não de as experimentar. Por definição, tem de ser tremendamente fácil compreender o comportamento de um ser muito mais inteligente do que nós. Mas mesmo assim, mesmo assim… por quê apenas números primos? Os radioastrônomos de Argus tinham feito progressos nos últimos dias. Vega tinha um movimento conhecido — uma componente conhecida da sua velocidade na direção da Terra ou afastando-se dela, uma componente conhecida lateralmente, através do céu, contra o fundo de estrelas mais distantes. Os telescópios de Argus, a trabalhar juntamente com radiobservatórios da Virgínia Ocidental e da Austrália, tinham determinado que a fonte se movia com Vega. Não só o sinal vinha, tão exatamente quanto podiam medir, do lugar onde Vega se situava no céu, como também compartilhava os movimentos peculiares e característicos de Vega. A não ser que se tratasse de uma brincadeira de proporções heróicas, a fonte dos impulsos dos números primos encontrava-se realmente no sistema de Vega. Não havia nenhum efeito Doppler adicional devido ao movimento do emissor, talvez preso a um planeta nas imediações de Vega. Os extraterrestres tinham efetuado a compensação necessária para o movimento orbital. Talvez fosse uma espécie de cortesia interestelar. — «A maldita coisa mais maravilhosa de que jamais ouvi falar. E não tem nada a ver com a nossa instituição» — disse um funcionário da Defense Advanced Research Projects Agency ao preparar-se para regressar a Washington. Assim que se fizera a descoberta, Ellie destinara um certo número dos telescópios para a observação de Vega numa faixa de outras freqüências. Inequivocamente, eles tinham encontrado o mesmo sinal, a mesma monótona sucessão de números primos, a «bipar» na linha de hidrogênio de mil quatrocentos e vinte megahertz, na linha de oxidrilo de mil seiscentos e sessenta e sete megahertz e em muitas outras freqüências. Em todo o espectro-rádio, com uma orquestra eletromagnética, Vega debitava números primos. — Não faz sentido — disse Drumlin, a tocar distraidamente na fivela do cinto. — Não nos podia ter escapado antes. Toda a gente tem observado Vega. Há anos. A Arroway observou-a de Arecibo há uma década. Subitamente, na terça-feira passada, Vega começa a transmitir números primos? Por que agora? Que há de tão especial neste momento? Como se explica que tenham começado a transmitir apenas alguns anos depois de Argus ter começado a escutar? — Talvez o seu emissor tenha estado parado para reparações durante dois séculos — sugeriu Valerian — e tenham acabado de o recolocar em linha. Talvez o seu ciclo de serviço seja transmitir para nós apenas um ano em cada milhão. Há todos os outros planetas candidatos que podem abrigar vida, bem sabe. Nós não somos provavelmente o único miúdo do quarteirão. — Mas Drumlin, visivelmente descontente, limitou-se a abanar a cabeça. Embora a sua natureza fosse o oposto da conspirativa, Valerian pensou ter captado uma insinuação disfarçada na última pergunta de Drumlin: não seria tudo aquilo uma tentativa temerária e desesperada dos cientistas de Argus para impedir um encerramento prematuro do projeto? Não era possível. Valerian abanou a cabeça. Ao passar, Der Heer viu-se confrontado com dois peritos de categoria superior do problema SETI a abanar silenciosamente a cabeça um ao outro. Entre os cientistas e os burocratas havia uma espécie de mal-estar, um desconforto mútuo, um choque de conjecturas fundamentais. Um dos engenheiros eletrotécnicos chamava-lhe uma impedância mal combinada. Os cientistas, do ponto de vista de muitos dos burocratas, eram excessivamente especulativos, excessivamente quantitativos e excessivamente vagos no modo como falavam às outras pessoas. Do ponto de vista de muitos dos cientistas, os burocratas eram excessivamente inimaginativos, excessivamente qualitativos e excessivamente incomunicativos. Ellie, e em especial Der Heer, esforçavam-se muito por construir uma ponte sobre essa brecha, mas os pontões estavam constantemente a ser arrastados pela corrente abaixo. Naquela noite havia pontas de cigarros e chávenas de café por toda a parte. Cientistas despreocupadamente vestidos, funcionários de Washington e fatos leves e um ou outro militar de alta patente enchiam a sala de controle, a sala dos seminários e o pequeno auditório e extravasavam para o exterior, onde, à luz das brasas dos cigarros e das estrelas, algumas das discussões continuavam. Mas os ânimos estavam esfrangalhados. A tensão começava a notar-se. — Doutora Arroway, este é Michael Kitz, secretário-adjunto da Defesa do C3i. Ao introduzir Kitz e colocar-se a si próprio apenas um passo atrás dele, Der Heer estava a comunicar… o quê? Alguma inverossímil mistura de emoções. A confusão nos braços da prudência? Parecia apelar para a contenção. Julgá-la-ia assim tão estouvada? «C3i» — que proferiam «cê ao cubo 3i» — queria dizer Command, Control, Communications and Intelligence[3 - Como este livro trata da inteligência humana e da inteligência extraterrestre, convém esclarecer que esta Intelligence aqui é outra e se traduz por «informação»: serviços de informação ou, menos eufemisticamente, espionagem (N. da T.)], responsabilidades importantes numa altura em que os Estados Unidos e a União Soviética estavam resolutamente a efetuar grandes reduções faseadas nos seus arsenais nucleares estratégicos. Era trabalho para um homem cauteloso. Kitz instalou-se numa das duas cadeiras do outro lado da secretária de Ellie, inclinou-se para a frente e leu a citação de Kafka. Não ficou impressionado. — Doutora Arroway, permita que vá direito ao assunto. Estamos preocupados quanto a se é no melhor interesse dos Estados Unidos que esta informação seja geralmente conhecida. Não ficamos loucos de alegria quando soubemos que enviara aquele telegrama a todo o mundo. — Refere-se à China? À União Soviética? À Índia? — A sua voz, não obstante os esforços que fazia para o evitar, tinha uma certa contundência detectável. — Queria conservar secretos os primeiros duzentos e sessenta e um números primos? Supõe, Mister Kitz, que os extraterrestres pretendiam comunicar apenas com americanos? Não acha que uma mensagem de outra civilização pertence ao mundo inteiro? — Podia ter pedido a nossa opinião. — E correr o risco de perder o sinal? Escute, por tudo quanto sabemos, algo de essencial, algo de único, pode ter sido transmitido depois de Vega se ter posto aqui, no Novo México, mas quando ainda estava alta, no céu, sobre Beijing. Estes sinais não são exatamente um telefonema pessoa a pessoa para os EUA. Não são sequer um telefonema pessoa a pessoa para a Terra. São de estação para estação de qualquer planeta do sistema solar. Sucedeu apenas que tivemos a sorte de levantar o auscultador do telefone. Der Heer estava de novo a «transmitir» qualquer coisa. Que tentava ele dizer-lhe? Que gostava daquela analogia elementar, mas que tivesse calma com Kitz? — De qualquer modo — continuou Ellie —, é tarde demais. Agora já toda a gente sabe que existe uma espécie qualquer de vida inteligente no sistema Vega. — Não tenho a certeza de que seja tarde demais, doutora Arroway. A senhora parece pensar que ainda está para chegar qualquer transmissão rica de informação, uma mensagem. Aqui, o doutor Der Heer — fez uma pausa, a escutar a assonância inesperada —, o doutor Der Heer diz que a doutora pensa que os números primos são um anúncio, qualquer coisa para nos levar a prestar atenção. Se há uma mensagem e é sutil — algo que esses outros países não detectariam imediatamente —, quero que seja mantida em segredo até podermos falar a seu respeito. — Muitos de nós temos quereres, Mister Kitz — deu consigo a dizer suavemente, ignorando as sobrancelhas arqueadas de Der Heer. Havia algo de irritante, quase de provocante, na atitude de Kitz e provavelmente também na dela. Eu, por exemplo, quero compreender qual é o significado do sinal, e o que está a acontecer em Vega, e o que isso significa para a Terra. É possível que cientistas de outras nações sejam a chave para essa compreensão. Talvez nós precisemos dos dados recolhidos por eles. Talvez precisemos dos seus cérebros. Eu fui capaz de imaginar que isto poderia ser um problema demasiado grande para ser resolvido por um só país. Der Heer parecia ligeiramente alarmado. — Bem, doutora Arroway, a sugestão do secretário Kitz não é assim tão desrazoável. É muito possível que colaboremos com outras nações. Tudo quanto ele pede é que converse primeiro conosco acerca do assunto. E isso apenas se houver uma nova mensagem. O seu tom era tranqüilizador, mas não untuoso. Ela olhou-o de novo com atenção. Der Heer não era um homem claramente bonito, mas tinha um rosto bondoso e inteligente. Vestia fato azul e camisa impecável. O calor do seu sorriso moderava a sua seriedade e o seu ar de autodomínio. Por que motivo estava ele, então, a manifestar-se a favor daquele imbecil? Fazia parte do seu trabalho? Seria possível que Kitz estivesse a falar com lógica? — De qualquer modo, trata-se de uma contingência remota. — Kitz suspirou enquanto se levantava. — O secretário da Defesa apreciaria a sua cooperação. — Estava a tentar mostrar-se cativante. — Combinado? — Deixe-me pensar no assunto — respondeu ela, e apertou-lhe a mão estendida como se fosse um peixe morto. — Eu vou já, daqui a poucos minutos, Mike — disse Der Heer, sorridente. Com a mão na ombreira da porta, Kitz deu a impressão de que lhe acudia um pensamento novo, tirou um documento da algibeira interior do peito, voltou para trás e colocou-o desajeitadamente no canto da secretária dela. — Ah, sim, já me esquecia! Está aqui uma cópia da Decisão Hadden. Provavelmente conhece-a. É acerca do direito do Governo de considerar secreto material vital para a segurança dos Estados Unidos. Mesmo que a sua origem não tenha ocorrido numa instituição secreta. — Quer tornar secretos os números primos? — perguntou ela, de olhos muito abertos, numa incredulidade irônica. — Espero por si lá fora, Ken. Ellie começou a falar logo que Kitz saiu do seu gabinete: — Que fareja ele? Raios letais de Vega? Alguma coisa que faça ir o mundo pelos ares? De que se trata, na realidade? — Ele está apenas a ser prudente, Ellie. Percebo que você não ache que seja só isso. Muito bem. Suponha que há alguma mensagem — com verdadeiro conteúdo, compreende? E nela existe alguma coisa ofensiva para muçulmanos, por exemplo, ou para metodistas. Não deveríamos divulgá-la cuidadosamente, para que os Estados Unidos não ficassem com um olho negro? — Ken, não me venha com tretas. Aquele homem é um assistente do secretário da Defesa. Se eles estivessem preocupados com muçulmanos ou metodistas, ter-me-iam enviado um assistente do secretário de Estado, ou — não sei — um desses fanáticos religiosos que presidem a pequenos-almoços presidenciais de orações. Você é o conselheiro científico da presidente. Que lhe aconselhou? — Não lhe aconselhei nada. Desde que estou aqui, só falei com ele uma vez, brevemente, pelo telefone. E serei franco consigo: ele não me deu instruções nenhumas a respeito de sigilo. Na minha opinião, o que Kitz disse não tem fundamento. Ele está a agir por sua conta. — Quem é ele? — Tanto quanto sei, é um advogado. Foi um importante executivo na indústria eletrônica antes de entrar para a administração. Conhece realmente o C3i, mas isso não o torna entendido em mais nada. — Ken, confio em si. Acredito que não me tenha exposto a esta ameaça com a Decisão Hadden. — Apontou para o documento à sua frente e fez uma pausa, a procurar os olhos dele. — Sabe que Drumlin pensa que existe outra mensagem na polarização? — Não compreendo. — Há poucas horas, o Dave concluiu uma primeira análise estatística da polarização. Representou os parâmetros de Stokes por esferas de Poincaré; há um belo movie delas com variações no tempo. Der Heer olhava-a inexpressivamente. Não usariam os biólogos luz polarizada nos seus microscópios? — perguntou Ellie a si mesma. — Quando uma onda de luz se dirige para nós — luz visível, luz-rádio, qualquer espécie de luz —, vem a vibrar em ângulo reto em relação à nossa linha de visão. Se essa vibração gira, diz-se que a onda é «elipticamente polarizada». Se gira no sentido dos ponteiros do relógio, chama-se «polarização de sentido direito»; se gira no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, chama-se «polarização de sentido esquerdo». Bem sei que é uma designação estúpida. Seja como for, variando entre as duas espécies de polarização, podemos transmitir informação. Um pouco de polarização de sentido direito, e é um zero; um pouco de sentido esquerdo, e é um um. Está a perceber? É perfeitamente possível. Temos modulação de amplitude e modulação de freqüência, mas a nossa civilização, por convenção, geralmente não faz modulação de polarização. «Bem, o sinal de Vega dá a impressão de ter modulação de polarização. Neste preciso momento estamos empenhados em verificar isso. Mas o Dave descobriu que não havia uma quantidade igual das duas espécies de polarização. Não era tão levopolarizada quanto dextropolarizada. É simplesmente possível que exista outra mensagem na polarização que até agora nos escapou. É por isso que desconfio do seu amigo. Kitz não veio apenas dar-me conselhos gratuitos generalizados. Sabe que podemos ter tropeçado em mais qualquer coisa. — Tenha calma, Ellie. Há quatro dias que quase não dorme. Tem andado a fazer malabarismos com a ciência, a administração e a imprensa. Já fez uma das grandes descobertas do século e, se bem a entendi, pode estar na iminência de algo ainda mais importante. Tem todo o direito de estar um pouco impaciente. E ameaçar militarizar o projeto foi desastroso da parte de Kitz. Não tenho dificuldade nenhuma em compreender que desconfie dele. Mas há uma certa lógica no que ele diz. — Você conhece o indivíduo? — Tenho estado nalgumas reuniões com ele. Não posso dizer verdadeiramente que o conheço. Ellie, se existe a possibilidade de chegar uma autêntica mensagem, não seria boa idéia tornar a multidão menos densa? — Com certeza. Dê-me uma ajuda no caso dos tipos inúteis de Washington. — Muito bem. E se deixar esse documento em cima da sua secretária, pode entrar aqui alguém e tirar as conclusões erradas. Por que não o guarda em qualquer lado? — Você vai ajudar? — Se a situação permanecer semelhante ao que é agora, ajudarei. Não faremos os nossos melhores esforços se esta coisa for declarada secreta. Sorrindo, Ellie ajoelhou diante do pequeno cofre do seu gabinete e carregou na combinação de seis dígitos: 314159, lançou um último olhar ao documento, que tinha por título, em grandes letras pretas, OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA VS. HADDEN CYBERNETICS, e fechou-o no cofre. Era um grupo de cerca de trinta pessoas — técnicos e cientistas ligados ao Projeto Argus e alguns funcionários governamentais superiores, incluindo o diretor-adjunto da Defence Intelligence Agency, vestido à paisana. Entre eles contavam-se Valerian, Drumlin, Kitz e Der Heer. Ellie era a única mulher. Tinham instalado um grande sistema de projeção de televisão, focado num écran de dois por dois metros, perfeitamente encostado à parede do fundo. Ellie dirigia-se simultaneamente ao grupo e ao programa descriptografador, com os dedos no teclado à sua frente. — Ao longo dos anos preparamo-nos para descriptografar por computador muitas espécies de possíveis mensagens. Acabamos de saber pela análise do doutor Drumlin que há informação na modulação de polarização. Todo aquele frenético desvio entre esquerda e direita significa qualquer coisa. Não é ruído ao acaso. É como se atirássemos uma moeda ao ar. Claro que esperamos que calhem tantas caras como cunhos, mas, em vez disso, obtemos o dobro das caras em relação aos cunhos. Concluímos por isso que a moeda está viciada ou, no nosso caso, que a modulação de polarização não é acidental; tem conteúdo… Oh, vejam isto! O que o computador acaba de nos dizer é ainda mais interessante. A seqüência exata de caras e cunhos repete-se. É uma longa seqüência e, por isso, é uma mensagem muito complexa e a civilização emissora deve querer que nos asseguremos de que a entendemos corretamente. «Estão a ver aqui? É a mensagem a repetir-se. Estamos agora na primeira repetição. Cada bit de informação, cada ponto e traço — se quiserem imaginá-los assim —, é idêntico aos do último bloco de dados. Agora analisamos o número total de bits. É um número na escala das dezenas de milhares de milhões. Muito bem, bingo! É o produto de três números primos. Embora Drumlin e Valerian estivessem ambos a sorrir, pareceu a Ellie que experimentavam emoções completamente diferentes. — E depois? Que significam mais alguns números primos? — perguntou um visitante de Washington. — Significam, talvez, que nos está a ser enviada uma imagem. Compreendem, esta mensagem é constituída por um grande número de bits de informação. Supondo que aquele número grande é o produto de três números mais pequenos: é um número vezes um número vezes um número. Portanto, a mensagem tem três dimensões. Imagino que se trata ou de uma simples imagem estática tridimensional como um holograma fixo, ou de uma imagem bidimensional que muda com o tempo — um movie. Presumamos que é um movie. Se é holograma, levar-nos-á mais tempo a desenvolver. Temos um algoritmo descriptografador ideal para esta. Distinguiram no écran um padrão móvel indistinto composto de brancos e pretos perfeitos. — Willie, introduza um programa de interpolação cinzento qualquer, sim? Qualquer coisa razoável. E tente girá-lo cerca de noventa graus no sentido contrário ao dos ponteiros de um relógio. — Doutora Arroway, parece haver um canal de banda lateral auxiliar. Talvez seja o áudio para acompanhar o movie. — Carregue. A outra única aplicação prática de números primos de que conseguia lembrar-se era a criptografia de chave pública, agora largamente utilizada em contextos de segurança comercial e nacional. Uma aplicação consistia em tornar uma mensagem clara para patetas; a outra era manter uma mensagem oculta dos toleravelmente inteligentes. Ellie observou os rostos à sua frente. Kitz parecia pouco à vontade. Talvez estivesse a prever o aparecimento de algum invasor alienígena ou, pior ainda, o desenho de uma arma demasiado secreta para ser confiada ao pessoal dela. Willie parecia muito ansioso e engolia constantemente em seco. Uma imagem é diferente de meros números. A possibilidade de uma mensagem visual estava claramente a despertar receios e fantasias não aprofundadas nos corações de muitos dos espectadores. Der Heer tinha uma expressão maravilhada no rosto; naquele momento parecia muito menos o funcionário, o burocrata, o conselheiro presidencial, e muito mais o cientista. À imagem ainda ininteligível juntou-se um estrondoso glissando de sons, deslizando primeiro para cima e depois para baixo no áudio-espectro, até gravitar e ir repousar algures à volta da oitava abaixo do dó médio. Lentamente, o grupo tomou consciência de música tênue, mas em crescendo. A imagem girou, retificou-se e focalizou-se. Ellie deu consigo a fitar uma imagem granulosa a preto e branco de… uma enorme bancada adornada com uma imensa águia art deco. Presa nos esporões de cimento armado da águia… — Brincadeira! É uma brincadeira! — Houve gritos de espanto, incredulidade, riso, leve histeria. — Não está a ver? Foi levada à certa — dizia-lhe Drumlin, em tom quase de conversa social. Sorria. — É uma partida complicada. Esteve a fazer perder tempo a toda a gente que se encontra aqui. Presa nos esporões de cimento armado da águia, via-o agora claramente, estava uma suástica. A câmara zoomou acima da cabeça da águia e foi encontrar o rosto sorridente de Adolf Hitler a acenar a uma multidão que gritava ritmadamente. O seu uniforme, despido de condecorações militares, dava uma impressão de simplicidade modesta. A profunda voz de barítono de um locutor, áspera, mas a falar inequivocamente alemão, encheu a sala. Der Heer aproximou-se de Ellie. — Sabe alemão? — perguntou-lhe ela baixinho. — Que está ele a dizer? — O Fuehrer — traduziu ele, devagar — dá as boas-vindas ao mundo que veio à pátria alemã para a abertura dos Jogos Olímpicos de 1936. CAPÍTULO VI Palimpsesto E se os Guardiões não estão felizes, quem mais pode estar?      ARISTÓTELES. A Política Livro 2, capítulo 5 Quando o avião atingiu a altitude de cruzeiro, com Albuquerque já mais de cem milhas atrás deles, Ellie olhou distraidamente para o pequeno retângulo de cartão branco com letras azuis que fora grampeado ao sobrescrito do seu bilhete de avião. Dizia, numa linguagem que não mudara desde o seu primeiro vôo comercial: «isto não é o talão de bagagem descrito pelo artigo 4. O da Convenção de Varsóvia.» Por que estavam as companhias de aviação tão preocupadas, perguntou-se, com a possibilidade de os passageiros poderem confundir aquele bocado de cartão com o talão de bagagem da Convenção de Varsóvia? Por que motivo nunca vira ela nenhum? Onde os tinham armazenados? Nalgum esquecido acontecimento-chave da história da aviação, uma desatenta companhia de aviação devia ter-se esquecido de imprimir aquele aviso em retângulos de cartão e sido processada, até à falência, por passageiros irados que haviam sido induzidos no equívoco de que aquele era o talão de bagagem de Varsóvia. Havia sem dúvida fortes razões financeiras para aquela preocupação à escala mundial — razões nunca de outro modo expressas — quanto a que bocados de cartão não são descritos pela Convenção de Varsóvia. Imaginem, pensou, todas estas linhas impressas dedicadas, em vez de a este assunto, a qualquer coisa útil — a história da exploração do mundo por exemplo, ou fatos científicos incidentais, ou mesmo o número médio de milhas-passageiro até o avião em que uma pessoa viajava se despenhar. Se tivesse aceitado a oferta de Der Heer de um avião militar, naquele momento estaria a formar outras associações casuais. Mas isso teria sido excessivamente cômodo, talvez alguma abertura que conduzisse a uma eventual militarização do projeto. Tinham preferido viajar de avião comercial. Os olhos de Valerian já estavam fechados quando ele acabou de se instalar no lugar ao lado dela. Não houvera nenhuma pressa especial, nem mesmo depois de resolvidos os pormenores de última hora sobre a análise de dados, com a sugestão de que a segunda pele da cebola estava prestes a soltar-se. Tinham conseguido lugar num avião comercial que chegaria a Washington muito antes da reunião do dia seguinte, na realidade com tempo suficiente para uma boa noite de sono. Ellie olhou para o sistema telefax, bem acondicionado numa maleta de cabedal com fecho de correr colocada debaixo do lugar à sua frente. Era várias centenas de kilobits por segundo mais rápido do que o antigo modelo de Peter e produzia gráficos muito melhores. Bem, talvez no dia seguinte tivesse de o utilizar para explicar à presidente dos Estados Unidos da América o que Adolf Hitler estava a fazer em Vega. Sentia-se, teve de admitir intimamente, um pouco nervosa quanto ao encontro. Nunca se encontrara antes com um presidente, e, pelos padrões dos fins do século XX, esta não era muito má. Não tivera tempo para arranjar o cabelo e muito menos para um tratamento especial. Ora, não ia à Casa Branca para olharem para ela. Que pensaria o seu padrasto? Ainda estaria convencido de que ela não tinha condições para ser cientista? Ou a sua mãe, agora confinada a uma cadeira de rodas numa casa de saúde? Conseguira apenas fazer um telefonema breve à mãe desde a descoberta, havia uma semana, e prometeu a si mesma voltar a telefonar no dia seguinte. Como já fizera cem vezes antes, espreitou pela janela do avião e imaginou que impressão causaria a Terra a um observador extraterrestre, àquela altitude de cruzeiro de doze ou catorze quilômetros, e presumindo que o alienígena tinha olhos mais ou menos como os nossos. Havia vastas áreas do Médio Oeste complicadamente geometrizadas com quadrados, retângulos e círculos por aqueles que tinham predileções agrárias ou urbanas; e, como ali, vastas áreas do Sudoeste nas quais o único sinal de vida inteligente era uma linha reta ocasional avançando entre montanhas e através de desertos. Seriam os mundos de civilizações mais avançadas totalmente geometrizados, inteiramente reconstruídos pelos seus habitantes? Ou a assinatura de uma civilização realmente avançada seria não deixar absolutamente nenhum sinal? Seriam capazes de dizer, com um olhar rápido, precisamente em que estádio nos encontrávamos numa grande seqüência evolutiva cósmica do desenvolvimento de seres inteligentes? Que mais poderiam dizer? Pelo azul do céu podiam fazer um cálculo aproximado do número de Loschmidt, quantas moléculas havia em um centímetro cúbico ao nível do mar. Cerca de três vezes dez elevado a dezenove. Podiam calcular facilmente as altitudes das nuvens pelo comprimento das suas sombras no céu. Se sabiam que as nuvens eram água condensada, podiam calcular aproximadamente a proporção de declínio da atmosfera, porque a temperatura tinha de descer para cerca de -40ºC nas altitudes das nuvens mais altas que ela conseguia ver. A erosão de formas de terra, os padrões dendróides e em paus de canga de rios, a presença de lagos e desgastados tampões vulcânicos, tudo falava de uma antiga batalha entre processos de terra-formação e erosivos. Na realidade, percebia-se com uma vista de olhos que este era um planeta antigo com uma civilização novinha em folha. Na sua maioria, os planetas da galáxia deviam ser veneráveis e pré-técnicos, talvez até sem vida. Uns poucos abrigariam civilizações muito mais antigas do que as nossas. Mundos com civilizações técnicas a começar apenas a emergir deviam ser espetacularmente raros. Era talvez a única qualidade fundamentalmente ímpar a respeito da Terra. Durante o almoço, a paisagem tornou-se lentamente verdejante, à medida que se aproximavam do vale do Mississipi. Não havia quase nenhuma sensação de movimento na vida aérea moderna, pensou Ellie. Olhou para o corpo ainda adormecido de Peter, que recusara com alguma indignação a perspectiva de um almoço de companhia de aviação. A seguir a ele, do outro lado da coxia, encontrava-se um ser humano muito jovem, talvez com três meses de idade, confortavelmente aninhado nos braços do pai. Qual seria a visão de um bebê de uma viagem aérea? Vamos a um lugar especial, entramos numa sala muito grande e sentamo-nos. A sala faz um barulho surdo e contínuo e estremece durante quatro horas. Depois levantamo-nos e saímos. Magicamente, estamos noutro lugar qualquer. O meio de transporte parece obscuro, mas a idéia básica é fácil de apreender e não é necessário o domínio precoce das equações Navier-Stokes. Ao fim da tarde sobrevoaram Washington a aguardar autorização para aterrar. Ela conseguiu distinguir, entre o Monumento a Washington e o Memorial a Lincoln, uma grande multidão de gente. Era, segundo lera havia apenas uma hora no telefax do Times, uma concentração maciça de negros americanos protestando contra disparidades econômicas e injustiças educacionais. Considerando a justiça das suas reclamações, pensou Ellie, tinham sido muito pacientes. Perguntou a si mesma como reagiria a presidente à concentração e à transmissão de Vega, acerca de ambas as quais teriam de ser feitos no dia seguinte alguns comentários públicos oficiais. — Que quer dizer, Ken, com «eles saem»? — Quero dizer, senhora Presidente, que os nossos sinais de televisão deixam este planeta e saem para o espaço. — Exatamente até onde vão? — Com todo o devido respeito, senhora Presidente, as coisas não funcionam desse modo. — Bem, então como funcionam? — Os sinais irradiam da Terra em ondas esféricas, um pouco como a ondulação numa lagoa. Viajam à velocidade da luz — cento e oitenta e seis mil milhas por segundo — e essencialmente propagam-se infinitamente. Quanto melhores forem os receptores de qualquer outra civilização, tanto mais distantes podem estar e mesmo assim captar os nossos sinais TV. Até nós podíamos captar uma forte transmissão TV de um planeta a deslocar-se à volta da estrela mais próxima. Durante um momento, a presidente ficou ereta e rígida, a olhar, pelas portas-janelas, para o Jardim das Rosas. Depois voltou-se para Der Heer: — Quer dizer… tudo? — Sim, tudo. — Pretende mesmo dizer toda aquela bagunça da televisão? Os choques de automóveis? A luta? Os canais pornô? O telejornal a noite? — Tudo, senhora Presidente. — Der Heer abanou a cabeça, numa consternação compassiva. — Der Heer, estou a compreendê-lo corretamente? Quer dizer que todas as minhas conferências de imprensa, os meus debates, o meu discurso de tomada de posse, está tudo lá fora? — Essa é a boa notícia, senhora Presidente. A má notícia é que também estão todas as aparições na televisão do seu antecessor. E Dick Nixon. E os dirigentes soviéticos. Assim como uma quantidade de coisas desagradáveis que o seu adversário disse a seu respeito. É uma bênção mista. — Meu Deus! Está bem, prossiga. — A presidente afastara-se das portas-janelas e estava agora aparentemente ocupada a examinar um busto de mármore de Tom Paine, recentemente recuperado da cave do Smithsonian Institution, para onde fora relegado pelo presidente anterior. — Encare o assunto deste modo: aqueles poucos minutos de televisão vindos de Vega foram primitivamente emitidos em 1936, na inauguração dos Jogos Olímpicos em Berlim. Embora tivessem sido apenas mostrados na Alemanha, foi a primeira transmissão televisiva efetuada na Terra com potência moderada. Ao contrário da radiotransmissão corrente dos anos trinta, aqueles sinais TV atravessaram a nossa ionosfera e alastraram para o espaço. Estamos a tentar descobrir exatamente o que foi então retransmitido, mas isso levará provavelmente algum tempo. Talvez aquelas boas-vindas de Hitler sejam o único fragmento de transmissão que eles foram capazes de captar em Vega. «Assim, do ponto de vista deles, Hitler é o primeiro sinal de vida inteligente na Terra. Não estou a tentar ser sarcástico. Eles não sabem o que a transmissão significa e, por isso, gravam-na e retransmitem-na para nós. É uma maneira de dizer «Olá, ouvimo-los». Parece-me um gesto muito amigável. — Quer então dizer que não houve nenhuma transmissão de televisão anterior ao pós-Segunda Guerra Mundial? — Nada significativo. Houve uma transmissão local em Inglaterra, na coroação de Jorge VI, algumas coisas desse gênero. A transmissão de televisão em grande começou no fim dos anos quarenta. Todos esses programas estão a deixar a Terra à velocidade da luz. Imagine que a Terra é aqui — Der Heer fez um gesto no ar — e há uma pequena onda esférica a afastar-se dela à velocidade da luz a partir de 1936. Mantém-se a expandir-se e a afastar-se da Terra. Mais cedo ou mais tarde chega à civilização mais próxima. Esta parece estar surpreendentemente perto, apenas a vinte e seis anos-luz de distância, nalgum planeta da estrela Vega. Eles gravam-na e retransmitem-na para nós. Mas são precisos outros vinte e seis anos para os Jogos Olímpicos de Berlim regressarem à Terra. Conseqüentemente, os Veganianos não precisaram de décadas para compreender o que se passava. Deviam estar muito bem sintonizados, todos a postos, prontos para avançar, à espera dos nossos primeiros sinais de televisão. Detectaram-nos, gravaram-nos e, passado algum tempo, devolveram-no-los. Mas, a não ser que já cá tivessem estado — alguma missão de exploração há cem anos, compreende? — , não podiam ter sabido que estávamos prestes a inventar a televisão. Por isso, a doutora Arroway pensa que esta civilização está a monitorizar todos os sistemas planetários próximos, para ver se alguns dos seus vizinhos desenvolve alta tecnologia. — Ken, há aqui uma quantidade de coisas em que é preciso pensar. Tem a certeza de que esses… — como lhes chamou, Veganianos? — … tem a certeza de que eles não compreendem a respeito do que era esse programa de televisão? — Senhora Presidente, não há dúvida nenhuma de que são inteligentes. Aquele sinal de 1936 era muito fraco. Os seus detectores têm de ser fantasticamente sensíveis para terem conseguido captá-lo. Mas não vejo como poderiam ter compreendido o que significa. Provavelmente têm um aspecto muito diferente do nosso. Devem ter história diferente e diferentes costumes. Não existe nenhuma maneira possível de saberem o que é uma suástica ou quem foi Adolf Hitler. — Adolf Hitler! Ken, isso deixa-me furiosa! Morrem quarenta milhões de pessoas para derrotar esse megalomaníaco, e ele é a estrela da primeira transmissão para outra civilização? Ele está a representar-nos. E a eles. o sonho mais desvairado desse louco tornado realidade. Fez uma pausa e continuou em voz mais calma: — Sabe, nunca achei que Hitler soubesse fazer aquela saudação hitleriana. Nunca saía direita, desviava-se sempre para algum ângulo excêntrico. E depois havia aquela saudação maluca de cotovelo dobrado. Se alguém tivesse feito os seus heil hitlers tão incompetentemente, teria sido mandado para a frente russa. — Mas não há uma diferença? Ele estava apenas a retribuir as saudações dos outros. Não estava a saudar Hitler. — Oh, estava, sim! — replicou a presidente, que, com um gesto, dirigiu Der Heer para fora da Sala Rosa e por um corredor fora. De súbito parou e olhou para o seu conselheiro científico. — E se os nazis não tivessem tido televisão em 1936? Que teria acontecido? — Bem, nesse caso suponho que poderia ter sido a coroação de Jorge VI, ou uma das transmissões acerca da Feira Mundial de Nova Iorque de 1939, se alguma delas tivesse sido suficientemente potente para ser recebida em Vega. Ou alguns programas dos fins dos anos quarenta, princípios dos cinqüenta. Sabe a que me refiro, Howdy Doody, Milton Berle e as audiências Exército-McCarchy… todos esses maravilhosos sinais de vida inteligente na Terra. — Esses malditos programas são os nossos embaixadores no espaço… o emissário da Terra. — Fez uma pausa, a saborear a frase. — Com um embaixador devemos apresentar a nossa melhor faceta, e há quarenta anos que nós estamos a enviar principalmente porcaria para o espaço. Gostaria de ver os executivos das cadeias de televisão desenrascarem-se com esta. E quanto àquele maluco do Hitler, foi essa a primeira notícia que receberam da Terra? Que vão pensar de nós? Quando Der Heer e a presidente entraram na sala do Gabinete, os que tinham estado de pé em pequenos grupos calaram-se e alguns que estavam sentados fizeram menção de se levantar. Com um gesto natural, a presidente manifestou a sua preferência pela informalidade e, despreocupadamente, cumprimentou o secretário de Estado e um secretário da Defesa adjunto. Percorreu o grupo com uma volta lenta e deliberada da cabeça. Alguns retribuíram-lhe o olhar, na expectativa. Outros, detectando uma expressão de pequena irritação no rosto da presidente, desviaram os olhos. — Ken, essa sua astrônoma não está aqui? Arrowsmith? Arrowroot? — Arroway, senhora Presidente. Ela e o doutor Valerian chegaram a noite passada. Talvez o trânsito os tenha atrasado. — A doutora Arroway telefonou do seu hotel, senhora Presidente — informou um homem novo, meticulosamente vestido. — Disse que estavam a chegar alguns dados novos através do seu telefax e que queria trazê-los para esta reunião. Devemos começar sem ela. Michael Kitz inclinou-se para a frente e perguntou, num tom de voz e com uma expressão de incredulidade: — Estão a transmitir dados novos sobre este assunto através de um telefone normal, inseguro, num quarto de hotel de Washington? Der Heer respondeu tão suavemente que Kitz teve de se inclinar ainda mais para a frente para o ouvir: — Mike, acho que há pelo menos codificação comercial no telefax dela. Lembre-se, no entanto, de que não estão estabelecidas nenhumas linhas de orientação para este assunto. Tenho a certeza de que a doutora Arroway se mostrará cooperante se tais linhas forem estabelecidas. — Muito bem, comecemos — disse a presidente. — Esta é uma reunião informal conjunta do National Security Council e do que, por enquanto, chamamos Grupo de Trabalho de Contingência Especial. Desejo frisar a todos que nada do que for dito nesta sala — repito, nada — deverá ser discutido seja com quem for que não esteja aqui, excetuando o secretário da Defesa e o vice-presidente, que se encontram no estrangeiro. Ontem, o doutor Der Heer pôs a maior parte dos senhores ao corrente deste incrível programa de televisão da estrela Vega. É opinião do doutor Der Heer e de outros — olhou à volta da mesa — que foi apenas uma casualidade o fato de o primeiro programa de televisão a chegar a Vega ter tido como estrela Adolf Hitler. Mas é… um embaraço. Pedi ao diretor da Central Intelligence que preparasse uma avaliação de quaisquer implicações de segurança nacional em tudo isto. Há alguma ameaça direta de quem diabo está a enviar isto? Vamos ficar em apuros se houver alguma nova mensagem e algum outro país a decifrar primeiro? Mas, antes de mais nada, deixe-me perguntar-lhe, Marvin, se isto tem alguma coisa a ver com discos voadores. O diretor da Central Intelligence, um homem autoritário no fim da meia-idade, de óculos de aros de aço, resumiu: objetos voadores não identificados, conhecidos por OVNis, tinham sido uma preocupação intermitente para a CIA e a Força Aérea, especialmente nos anos cinqüenta e sessenta, em parte por boatos a respeito deles poderem constituir um meio e uma potência hostil espalhar a confusão ou sobrecarregar os canais de comunicação. Verificou-se que alguns dos incidentes representados por meios mais dignos de crédito foram, na realidade, penetrações do espaço aéreo dos EUA ou sobrevôos de bases norte-americanas no estrangeiro por aeronaves de alta performance da União Soviética ou de Cuba. Tais sobrevôos são um meio comum de testar o estado de prontidão de um adversário potencial, e os Estados Unidos da América tinham efetuado mais do que o seu justo quinhão de penetrações, e simulações de penetração, do espaço aéreo soviético. Um Mig cubano que penetrasse duzentos milhas acima da baía do Mississipi antes de ser detectado era considerado publicidade indesejável pelo NORAD. O procedimento rotineiro da Força Aérea tinha sido negar que alguns dos seus aparelhos tivessem estado nas imediações do lugar onde o OVNI fora avistado e não dizer nada acerca de penetrações não autorizadas, solidificando assim a mistificação do público. Ao ouvir estas explicações, o chefe do Estado-Maior da Força Aérea pareceu marginalmente embaraçado, mas não disse nada. A grande maioria dos OVNis reportados, continuou o D.C.I, era constituída por objetos naturais mal identificados pelo observador. Aeronaves não convencionais ou experimentais, faróis de automóveis refletidos de céu nublado, balões, aves, insetos luminescentes e até planetas e estrelas vistos em condições atmosféricas fora do vulgar, todas essas coisas tinham sido reportadas como OVNIs. Verificou-se que um número significativo de informações se devia a brincadeiras ou a genuínas ilusões psiquiátricas. Tinham sido comunicados mais de um milhão de avistamentos de OVNIs em todo o mundo desde que a expressão «disco voador» fora inventada, no fim dos anos quarenta, e nenhum deles parecia revestir-se de boas provas que permitissem relacioná-lo com uma visita extraterrestre. Mas a idéia engendrava emoções fortes e havia grupos e publicações marginais, e até alguns cientistas acadêmicos, que mantinham viva a suposta relação entre OVNIs e vida noutros mundos. Recente doutrina quiliasta incluía a sua parte de redentores extraterrestres que viriam em discos voadores. A investigação oficial da Força Aérea, chamada, numa das suas últimas encarnações, Projeto Livro Azul, tinha sido encerrada nos anos sessenta por falta de progresso, embora tivesse sido mantido um interesse continuado, a um nível menos elevado, conjuntamente pela Força Aérea e pela CIA. A comunidade científica estava tão convencida de que não havia nada no caso que, quando Jimmy Carter pedira à National Aeronautics and Space Administration que procedesse a um estudo amplo dos OVNIs, a NASA, contra o que era habitual, recusara um pedido presidencial. — Na verdade — interveio um dos cientistas sentados à mesa, desconhecedor do protocolo em reuniões daquela natureza —, a história dos OVNIs tornou mais difícil fazer um trabalho sério na SETI. — Muito bem — suspirou a presidente. — Há alguém à volta desta mesa que pense que os OVNIs e este sinal de Vega têm alguma coisa a ver entre si? Der Heer olhou atentamente para as unhas. Ninguém falou. — De qualquer maneira, vai haver uma enorme quantidade de eu-bem-lhes-disse da parte dos taradinhos dos OVNIs. Marvin, porque não continua? — Em 1936, senhora Presidente, um sinal de televisão muito fraco transmite as cerimônias de inauguração dos Jogos Olímpicos a um punhado de receptores de televisão na área de Berlim. É uma tentativa para um golpe de relações públicas. Demonstra o progresso e a superioridade da tecnologia alemã. Houvera anteriormente algumas transmissões de televisão, mas todas em níveis de potência muito baixos. Na realidade, nós fizemo-lo antes dos Alemães. O secretário do Comércio, Herben Hoover, fez um breve aparecimento na televisão em… 27 de Abril de 1929. Seja como for, o sinal alemão deixa a Terra à velocidade da luz e vinte e seis anos depois chega a Vega. Eles — quem quer que «eles» sejam — conservam o sinal durante alguns anos e por fim reenviam-no-lo imensamente amplificado. A sua capacidade de receber o sinal inicial muito fraco é impressionante, como o é a sua capacidade de o devolver a níveis de potência tão elevados. Aqui há, com certeza, implicações de segurança. A comunidade de inteligência eletrônica, por exemplo, gostaria de saber como podem ser detectados sinais tão fracos. Essa gente de Vega, ou o que quer que sejam, está sem dúvida mais avançada do que nós — talvez apenas algumas décadas à nossa frente, mas também é possível que seja muito mais do que isso. «Não nos deram nenhuma outra informação a seu respeito — a não ser o fato de, em algumas freqüências, o sinal transmitido não apresentar o efeito de Doppler resultante do movimento do seu planeta à volta da sua estrela. Simplificaram para nós esse passo de redução de dados. São… prestáveis. Até agora não foi recebido nada de interesse militar ou qualquer outro. Tudo quanto têm estado a dizer é que são bons em radioastronomia, gostam de números primos e são capazes de nos devolver as nossas primeiras transmissões de TV. Não faria mal nenhum qualquer outra nação saber isso. E lembrem-se: todos aqueles outros países estão a receber repetidamente aquela passagem de três minutos de Hitler. Simplesmente, ainda não conseguiram descobrir como lê-la. Os Russos, ou os Alemães, ou quaisquer outros, são capazes de chegar a essa modulação de polarização mais cedo ou mais tarde. A minha impressão pessoal, senhora Presidente — não sei se o secretário de Estado concorda —, é que seria melhor se a comunicássemos ao mundo antes de sermos acusados de estar a encobrir alguma coisa. Se a situação permanecer estática — sem nenhuma grande mudança no ponto em que estamos agora —, podemos pensar em fazer uma comunicação pública ou mesmo em distribuir o clip de filme de três minutos. «Diga-se, a propósito, que não conseguimos encontrar nenhum registro dos arquivos alemães do que estava naquela transmissão primitiva. Não podemos ter a certeza absoluta de que a gente de Vega não efetuou alguma modificação no conteúdo antes de no-la reenviar. Podemos reconhecer Hitler, sem dúvida, e a parte do estádio olímpico que vemos corresponde exatamente a Berlim em 1936. Mas não temos nenhuma maneira de saber se, naquele momento, Hitler estava realmente a coçar o bigode ou a sorrir, como mostram na transmissão. Ellie chegou ligeiramente ofegante, seguida por Valerian. Tentaram ocupar cadeiras afastadas, encostadas à parede, mas Der Heer reparou e chamou a atenção da presidente para eles. — Doutora Arow… Arroway? Apraz-me que tenha chegado sem problemas. Primeiro deixe-me felicitá-la pela sua esplêndida descoberta. Esplêndida. Hum, Marvin… — Cheguei a um ponto final, senhora Presidente. — Ótimo. Doutora Arroway, sabemos que tem uma novidade qualquer. Importa-se de nos falar a esse respeito? — Peço desculpa de chegar atrasada, senhora Presidente, mas creio que acabamos de ganhar o jackpot cósmico. Nós… É… Permita que tente explicar deste modo: em tempos clássicos, há milhares de anos, quando o pergaminho escasseava, as pessoas voltavam a escrever sobre um antigo pergaminho, dizendo aquilo que se chama um «palimpsesto». Havia escrita sob escrita sob escrita. Este sinal de Vega é, evidentemente, muito forte. Como sabe, há os números primos e, «debaixo» deles, naquilo que se chama «modulação de polarização», essa fantástica história do Hitler. Mas debaixo da seqüência dos números primos e debaixo da transmissão olímpica retransmitida acabamos de descobrir uma mensagem incrivelmente rica — pelo menos estamos muito convencidos de que é uma mensagem. Tanto quanto podemos dizer, esteve lá sempre. Nós acabamos de a detectar. É mais fraca do que o sinal de anúncio, mas sinto-me embaraçada por não a ter descoberto mais cedo. — Que diz? — perguntou a presidente. — De que trata? — Não fazemos a mais vaga idéia, senhora Presidente. Algumas das pessoas do Projeto Argus descobriram-na inesperadamente esta manhã, hora de Washington. Estivemos a trabalhar no assunto toda a noite. — Através de um telefone vulgar? — perguntou Kitz. — Com codificação comercial-padrão. Ellie estava um pouco afogueada. Abriu a caixa do telefax, preparou rapidamente um printout de transparência e, com um projetor de teto, projetou a sua imagem num écran. — Está aqui tudo quanto sabemos até agora. Obteremos um bloco de informação contendo cerca de mil bits. Haverá uma pausa e depois o mesmo bloco será repetido, bit por bit. Em seguida haverá outra pausa e passaremos ao bloco seguinte. Também é repetido. A repetição de todos os blocos pretende provavelmente minimizar a possibilidade de erros de transmissão. Eles devem pensar que é muito importante recebermos com toda a precisão seja o que for que estão a transmitir. Chamemos a cada um destes blocos de informação uma página. Argus está a captar algumas dúzias destas páginas por dia. Mas não sabemos de que tratam. Não são um simples código pictográfico como a mensagem olímpica. Isto é algo muito mais profundo e muito mais rico. Parece ser, pela primeira vez, informação que eles criaram. A única pista que temos até agora é a de que as páginas parecem estar numeradas. Ao princípio de cada página há um número em aritmética binária. Estão a ver este aqui? E, todas as vezes que aparece outro par de páginas idênticas, está rotulado com o número seguinte mais alto. Neste momento estamos na página… dez mil quatrocentos e treze. É um grande livro. Por cálculo retroativo, parece que a mensagem começou há cerca de três meses. Tivemos sorte em captá-la assim tão ao princípio. — Eu tinha razão, não tinha? — Kitz inclinou-se por cima da mesa para Der Heer. — Não se trata do gênero de mensagem que queiramos entregar aos Japoneses, ou aos Chineses, ou aos Russos, pois não? — Vai ser fácil decifrá-la? — perguntou a presidente falando acima do murmúrio de Kitz. — Claro que faremos os nossos melhores esforços nesse sentido. E provavelmente será útil se a National Security Agency também trabalhar nela. Mas, sem uma explicação de Vega, sem um livro de instruções, digamos, acho que não vamos progredir muito. Não parece, a esse respeito não restam dúvidas, estar escrito em inglês, alemão ou qualquer outra língua da Terra. A nossa esperança é que a mensagem chegue ao fim, talvez na página vinte mil ou na trinta mil, e depois recomece do princípio, para que possamos colmatar as brechas, as partes que faltam. Talvez antes de a Mensagem integral se repetir haja um livro de instruções, uma espécie de McGuffey’s Reader, que nos permita compreendê-la. — Se me permite, senhora Presidente… — Senhora Presidente, este é o doutor Peter Valerian, do California Institute of Technology, um dos pioneiros neste campo. — Queira dizer, doutor Valerian. — Esta é uma transmissão intencional para nós. Eles sabem que estamos aqui. Fazem alguma idéia, em virtude de terem interceptado a nossa transmissão de 1936, do alcance da nossa tecnologia, da nossa inteligência. Não se dariam a todo este trabalho se não quisessem que compreendêssemos a mensagem. Algures, nesta, encontra-se a chave para nos ajudar a compreendê-la. É apenas uma questão de acumular todos os dados e analisá-los muito cuidadosamente. — Bem, de que lhe parece que a Mensagem trata? — Não encontro maneira nenhuma de o dizer, senhora Presidente. Posso apenas repetir o que a doutora Arroway disse. «É uma Mensagem intrincada e complexa. A civilização emissora está ansiosa por que a recebamos. Talvez tudo isto seja um pequeno volume da Encyclopaedia Galactica. A estrela Vega tem cerca de três vezes mais massa do que o Sol e é cerca de cinqüenta vezes mais luminosa. Em virtude de queimar o seu combustível nuclear tão depressa, tem uma duração de vida muito mais curta do que o Sol… — Sim, talvez algo esteja prestes a correr mal em Vega — interrompeu o diretor da Central Intelligence. — Talvez o seu planeta vá ser destruído. Talvez eles queiram que quaisquer outros saibam da sua civilização antes de desaparecerem. — Ou — opinou Kitz — talvez andem à procura de um novo lugar para se mudarem, e a Terra convir-lhes-ia perfeitamente. Talvez não tenha sido por acaso que optaram por enviar-nos uma imagem de Adolph Hitler. — Calma — pediu Ellie —, há uma quantidade de possibilidades, mas nem tudo é possível. Não existe nenhuma maneira de a civilização emissora saber se estamos a receber a Mensagem, e muito menos se estamos a fazer algum progresso na sua decifração. Se considerarmos a Mensagem ofensiva, não somos obrigados a responder. E, mesmo que respondêssemos, eles só receberiam a resposta ao fim de vinte e seis anos, e passariam mais vinte e seis anos antes de poderem responder-lhe. A velocidade da luz é grande, mas não é infinitamente grande. Estamos muito bem isolados de Vega. E, se houver alguma coisa que nos preocupe a respeito desta nova Mensagem, dispomos de décadas para decidir o que fazer a seu respeito. Não entremos já em pânico. Pronunciou as últimas palavras ao mesmo tempo que dirigia um sorriso agradável a Kitz. — Aprecio essas palavras, doutora Arroway — declarou a presidente. — Mas as coisas estão a acontecer depressa. Demasiado depressa. E há demasiados «talvez». Ainda não fiz sequer uma comunicação pública a respeito de tudo isto. Nem sequer dos números primos, quanto mais da baralhada do Hitler. Agora temos de pensar nesse «livro» que diz estarem eles a enviar. E, em virtude de vocês, cientistas, não se coibirem nada de falar uns com os outros, os boatos voam. Phyllis, onde está aquela pasta? Cá está, olhe para estes cabeçalhos. Brandidos sucessivamente de braço estendido, todos eles transmitiam a mesma mensagem com pequenas variações de arte jornalística: «Doutora espacial fala de radiespetáculo de monstros com olhos de insetos», «Telegrama astronômico aponta para existência de inteligência extraterrestre», «Voz do céu?» «Vêm aí os alienígenas! Vêm aí os alienígenas!». A presidente deixou os recortes cair para a mesa. — Pelo menos a história do Hitler ainda não transpirou. Estou à espera desses cabeçalhos: «Hitler vivo e bem no espaço, dizem EUA.» E pior. Muito pior. Acho que seria conveniente interromper esta reunião e voltarmos a reunir-nos mais tarde. — Se me permite, senhora Presidente — interveio Der Heer hesitantemente, com evidente relutância. — Peço que me desculpe, mas há algumas implicações internacionais que creio deverem ser debatidas agora. A presidente limitou-se a suspirar, aquiescente. Der Heer continuou: — Diga-me se o que vou dizer está certo, doutora Arroway. Todos os dias a estrela Vega nasce sobre o deserto do Novo México e depois vocês recebem seja qual for a página desta complexa transmissão — seja ela o que for — que suceda eles estarem a enviar para a Terra nesse momento. Oito horas mais tarde, ou coisa parecida, a estrela põe-se. Certo até agora? Muito bem. No dia seguinte, a estrela volta a nascer a oriente, mas vocês perderam algumas páginas durante o tempo em que foi impossível observá-la, depois de ela se ter posto na noite anterior. Certo? Portanto, é como se estivessem a receber páginas que passam de trinta para cinqüenta e depois de oitenta para cem, etc. Por muito pacientemente que observemos, vão-nos faltar enormes quantidades de informação. Lacunas. Mesmo que eventualmente a mensagem se repita, vamos ter lacunas. — É inteiramente certo. — Ellie levantou-se e aproximou-se de um enorme globo do mundo. Era evidente que a Casa Branca se opunha à obliqüidade da Terra; o eixo daquele globo era desafiadoramente vertical. Hesitante, ela fê-lo girar. — A Terra gira. Precisamos de radiotelescópios regularmente distribuídos por muitas longitudes, se não queremos lacunas. Qualquer outra nação que observe apenas o seu próprio território vai imergir na mensagem e emergir da mensagem — talvez até nas partes mais interessantes. Este é um problema do mesmo tipo que uma nave espacial interplanetária americana enfrenta. Transmite as suas descobertas para a Terra quando passa por algum planeta, mas os EUA podem estar voltados para o outro lado nessa altura. Por isso, a NASA tratou do necessário para que três estações radiorrastreadoras fossem regularmente distribuídas em longitude à volta da Terra. Ao longo das décadas têm desempenhado soberbamente o seu papel. Mas a sua voz emudeceu timidamente e ela olhou de frente para P. L. Garrison, o administrador da NASA. Homem magro, macilento e de ar amigável, ele pestanejou. — Obrigado. Sim. Chama-se Deep Space Network e orgulhamo-nos muito dela. Temos estações no deserto do Mojave, em Espanha e na Austrália. Claro que os fundos não chegam, mas, com uma pequena ajuda, creio que conseguiríamos acelerar. — Espanha e Austrália? — perguntou a presidente. — Para trabalho puramente científico — disse o secretário de Estado. — Estou certo de que não há nenhum problema. No entanto, se este programa de investigação tivesse implicações políticas, poderia tornar-se um pouco arriscado. As relações americanas com ambos os países tinham arrefecido ultimamente. — Não existe dúvida nenhuma de que isto tem implicações políticas — declarou a presidente, um pouco agastada. — Mas nós não temos de ficar presos à superfície da Terra — interveio um general da Força Aérea. — Podemos vencer o período de rotação. Precisamos apenas de um grande radiotelescópio em órbita terrestre. — Muito bem — disse a presidente, a olhar em redor da mesa. — Temos um radiotelescópio espacial? Quanto tempo levaria a pôr um no ar? Quem percebe disso? Doutor Garrison? — Hum… não, senhora Presidente. Nós na NASA apresentamos uma proposta para o Maxwell Observatory em cada um dos últimos três anos fiscais, mas o OMB retirou-a todas as vezes do orçamento. Temos um estudo de concepção pormenorizado, evidentemente, mas seriam precisos anos em, pelo menos três anos — para podermos pô-lo no ar. E acho que devo recordar a toda a gente que, até ao último Outono, os Russos tiveram a funcionar em órbita terrestre um telescópio de onda milimétrica a submilimétrica. Não sabemos por que motivo falhou, mas eles estariam em melhor situação para enviar uns cosmonautas lá acima, arranjá-lo, do que nós para construir e lançar um a partir do zero. — É assim? — perguntou a presidente. — A NASA tem um telescópio vulgar no espaço, mas não tem nenhum grande radiotelescópio. Não há já lá em cima alguma coisa apropriada? A respeito da comunidade da informação? A National Security Agency? Ninguém? — Portanto, para acompanhar esta linha de raciocínio — interveio Der Heer —, temos de convir que se trata de um sinal forte e numa quantidade de freqüências. Depois de Vega se pôr nos Estados Unidos da América, há radiotelescópios em meia dúzia de países que estão a detectar e a registrar o sinal. Não são tão sofisticados como o Projeto Argus, e provavelmente ainda não se deram conta da modulação de polarização. Se aguardarmos até prepararmos e lançarmos um radiotelescópio, a mensagem pode acabar entretanto, desaparecer para sempre. Não parece, então, que a única solução é a cooperação imediata com um certo número de outras nações, doutora Arroway? — Não creio que qualquer nação seja capaz de realizar este projeto sozinha. Serão necessárias muitas nações, dispostas em longitude, a toda a volta da Terra. Envolverá a utilização de todas as grandes instalações de radioastronomia agora em funcionamento — os grandes radiotelescópios da Austrália, da China, da Índia, da União Soviética, do Médio Oriente e da Europa Ocidental. Seria irresponsável se acabássemos por ficar com lacunas na cobertura porque alguma parte crítica da Mensagem tivesse chegado quando não se encontrava nenhum telescópio apontado a Vega. Teremos de fazer alguma coisa a respeito do Pacífico oriental entre o Havaí e a Austrália, e talvez alguma coisa a respeito do Médio Atlântico. — Bem — observou a contragosto o diretor da Central Intelligence —, os Soviéticos têm diversos navios rastreadores de satélites que são bons em banda S para banda X, o Akademik Keldysh, por exemplo. Ou o Marshal Nedelin. Se chegarmos a algum acordo com eles, talvez possam estacionar navios no Atlântico ou no Pacífico e preencher as lacunas. Ellie franziu os lábios para responder, mas a presidente já estava a falar: — Está bem, Ken, talvez tenha razão. Mas eu repito que esta coisa está a andar demasiado depressa. Há alguns outros assuntos que tenho de resolver neste momento. Gostaria que o diretor da Central Intelligence e o pessoal da National Security trabalhassem durante a noite para se saber se temos quaisquer opções além da cooperação com outros países especialmente com países que não são nossos aliados. Gostaria que o secretário de Estado preparasse, em cooperação com os cientistas, uma lista contingencial de nações e indivíduos a serem abordados se tivermos de cooperar e uma certa avaliação das conseqüências. Haverá alguma nação susceptível de ficar furiosa conosco se a não convidarmos para ficar à escuta? Poderemos ser vítimas de chantagem da parte de alguém que prometa os dados e depois os sonegue? Devemos tentar ter mais de um país em cada longitude? Analisem as implicações. E, pelo amor de Deus — os seus olhos passaram de rosto em rosto à volta da comprida mesa polida —, não abram a boca a este respeito. Você também, Arroway. Já temos problemas suficientes. CAPÍTULO VII O etanol em W-3 Não se deve dar nenhum crédito à opinião… de que os demônios atuam como mensageiros e intérpretes entre os deuses e os homens para levarem todas as nossas petições aos deuses e para nos trazerem de volta a ajuda dos deuses. Pelo contrário, devemos acreditar que são espíritos muito ávidos de infligir mal, absolutamente alienados da retidão, inchados de orgulho, pálidos de inveja, sutis na falsidade…      AGOSTINHO. A Cidade de Deus, vl, 22 De que surgirão heresias novas, temos a profecia de Cristo; mas de que antigas serão destruídas, não temos nenhuma predição.      THOMAS BROWNE. Religio Media, I, 8 (1642) Ela planejara esperar o avião de Vaygay em Albuquerque e conduzi-lo às instalações Argus no Thunderbird. O resto da delegação soviética viajaria nos carros do Observatório. Teria gostado de guiar a toda a velocidade para o aeroporto no ar fresco do alvorecer, passando talvez, de novo, por uma guarda de honra de numerosos coelhos. E imaginara com interesse uma longa e importante conversa particular com Vaygay, no regresso. Mas a nova gente da segurança da General Services Administration vetara a idéia. A atenção dos media e a comunicação sóbria da presidente no fim da sua conferência de imprensa de duas semanas atrás atraíra enormes multidões às isoladas instalações no deserto. Havia uma violência potencial, tinham dito a Ellie. De futuro, ela só deveria viajar em carros governamentais, e mesmo assim com escoltas discretamente armadas. O pequeno comboio ia seguindo o seu caminho sinuoso na direção de Albuquerque a uma velocidade tão respeitável e responsável que ela deu com o seu pé direito a carregar, por vontade própria, num acelerador imaginário no tapete de borracha à sua frente. Seria bom passar de novo algum tempo com Vaygay. Vira-o pela última vez em Moscovo três anos antes, num daqueles períodos em que ele estava proibido de visitar o Ocidente. A autorização para viajar ao estrangeiro subira e descera como as marés ao longo das décadas, consoante as mutáveis modas políticas e o próprio comportamento imprevisível de Vaygay. Era-lhe negada permissão após alguma pequena provocação política da qual ele parecera incapaz de se conter e em seguida voltava a ser-lhe concedida quando não se conseguia encontrar mais ninguém de competência comparável para completar uma ou outra delegação científica. Ele recebia convites de todo o mundo para preleções, seminários, colóquios, conferências, grupos de estudo conjunto e comissões internacionais. Como laureado Nobel da Física e membro de pleno direito da Academia de Ciências Soviética, podia dar-se ao luxo de ser um pouco mais independente do que a maioria. Parecia Freqüentemente em equilíbrio precário nos limites extremos da paciência e da contenção da ortodoxia governamental. O seu nome completo era Vasily Gregorovich Lunacharsky, conhecido em toda a comunidade global dos físicos como Vaygay, de acordo com as iniciais do seu primeiro nome e o seu patronímico. As suas relações flutuantes e ambíguas com o regime soviético intrigavam-na, a ela e a outros no Ocidente. Ele era um parente afastado de Anatoly Vasilyevich Lunacharsky, um antigo bolchevique colega de Górki, Lenine e Trotsky; o Lunacharsky mais idoso servira posteriormente como comissário do povo da Educação e embaixador soviético em Espanha até à sua morte, em 1933. A mãe de Vaygay fora judia. Ele tinha, constava, trabalhado em armas nucleares soviéticas, embora tivesse certamente sido demasiado jovem para ter desempenhado qualquer papel importante na realização da primeira explosão termonuclear soviética. O seu instituto estava bem servido de pessoal e bem equipado e a sua produtividade científica era prodigiosa, o que indicava que as intromissões do Comitê de Segurança do estado eram, no máximo, infreqüentes. Não obstante o fluxo e refluxo da autorização para viajar no estrangeiro, ele fora um assistente freqüente de importantes conferências internacionais, incluindo os simpósios Rochester sobre física de alta energia, os encontros Texas sobre astrofísica relativista e as informais, mas ocasionalmente influentes, reuniões científicas políticas, sobre maneiras de reduzir a tensão internacional. Tinham dito a Ellie que, na década de sessenta, Vaygay visitara a Universidade da Califórnia, em Berkeley, e ficara encantado com a proliferação de slogans irreverentes, escatológicos e politicamente escandalosos impressos em «botões» baratos. Podia-se, recordava ela com certa nostalgia, avaliar as preocupações sociais mais prementes de uma pessoa com um simples olhar. Os botões também eram populares e ferozmente comercializados na União Soviética, mas geralmente enalteciam a equipe de futebol do Dínamo ou uma das bem sucedidas naves espaciais da série Luna, que tinham sido as primeiras astronaves a pousar na Lua. Os botões de Berckeley eram diferentes. Vaygay comprara dúzias deles, mas deliciava-o usar um em particular. Era do tamanho da palma da sua mão e dizia: «Rezem pelo sexo.» Até o exibia em reuniões científicas. Quando o interrogavam acerca da atração que sentia pelo objeto, respondia: «No vosso país é ofensivo apenas num aspecto. No meu país é ofensivo em dois aspectos independentes.» Se insistiam mais com ele, limitava-se a comentar que o seu famoso parente bolchevique escrevera um livro sobre o lugar da religião numa sociedade socialista. Desde então, o seu inglês melhorara enormemente — muito mais do que o russo de Ellie —, mas a sua propensão para usar botões de lapela ofensivos diminuíra tristemente. Uma vez, durante uma discussão acalorada sobre os méritos relativos dos dois sistemas políticos, Ellie vangloriara-se de que fora livre de marchar defronte da Casa Branca a protestar contra o envolvimento americano na guerra do Vietnam. Vaygay respondera que, no mesmo período, ele fora igualmente livre de marchar defronte do Kremlin a protestar contra o envolvimento americano na guerra do Vietnam. Ele nunca se mostrara inclinado, por exemplo, a fotografar as barcaças de lixo carregadas de resíduos malcheirosos e barulhentas gaivotas que passavam ronceiramente defronte da Estátua da Liberdade, como fizera outro cientista soviético quando, para o distrair, ela o acompanhara no ferry de Staten Island durante um intervalo de uma reunião na cidade de Nova Iorque. Tão-pouco, ao contrário de alguns dos seus colegas, fotografara sofregamente os tugúrios em ruínas e as barracas de chapa ondulada dos porto-Riquenhos pobres durante uma excursão de autocarro de um luxuoso hotel da praia ao Observatório de Arecibo. Ellie perguntava a si mesma a quem mostravam eles essas fotografias. Invocou mentalmente uma imensa biblioteca do KGB dedicada às infelicidades, injustiças e contradições da sociedade capitalista. Animá-los-ia, quando desconsolados com alguns dos malogros da sociedade soviética, dar uma vista de olhos aos instantâneos evanescentes dos seus imperfeitos primos americanos? Havia na União Soviética muitos cientistas brilhantes que, por delitos desconhecidos, não eram autorizados a sair da Europa do Leste havia décadas. Konstantinov, por exemplo, nunca estivera no Ocidente até meados da década de sessenta. Quando, numa reunião internacional em Varsóvia — a uma mesa cheia de copos vazios de brande do Azerbaijão, depois de concluídas as respectivas missões —, tinham perguntado a Konstantinov por quê, ele respondera: «Porque os pulhas sabem: deixam-me sair, eu nunca mais volto.» No entanto, eles tinham-no deixado realmente sair durante o degelo das relações científicas entre os dois países nos fins da década de sessenta e nos princípios da de setenta e ele voltara todas as vezes. Mas agora já não o deixavam sair mais e ele estava reduzido a enviar aos seus colegas ocidentais cartões de Ano Novo em que se representava tristemente sentado de pernas cruzadas e cabeça inclinada numa esfera debaixo da qual estava a equação de Schwarzchild referente ao raio de um buraco negro. Encontrava-se num profundo poço potencial, costumava dizer a visitantes de Moscovo nas metáforas da física. Eles nunca mais voltariam a deixá-lo sair. Em resposta a perguntas, Vaygay dizia que a posição oficial soviética era que a revolução húngara de 1956 fora organizada por criptofascistas e que a Primavera de Praga de 1968 tinha sido ocasionada por um grupo anti-socialista não representativo então na liderança. Mas, acrescentava, se o que lhe tinham dito não estava certo, se se tratara de levantamentos populares genuínos, então o seu país procedera mal ao suprimi-los. Sobre o Afeganistão, não se incomodava sequer a citar as justificações oficiais. Uma vez, no seu gabinete no Instituto, insistira em mostrar a Ellie o seu rádio pessoal de ondas curtas, no qual estavam colados rótulos, muito bem escritos em caracteres cirílicos, com freqüências de Londres, Paris e Washington. Era livre, dissera-lhe, de ouvir a propaganda de todas as nações. Houvera uma altura em que muitos dos seus colegas se tinham rendido à retórica nacional acerca do perigo amarelo. «Imagine toda a fronteira entre a China e a União Soviética ocupada por soldados chineses, ombro a ombro, um exército invasor», pedira um deles, desafiando a capacidade de imaginação de Ellie. Estavam de pé à volta do samovar no gabinete do diretor, no Instituto. «Quanto tempo levaria, com a presente taxa de nascimentos chinesa, para todos eles atravessarem a fronteira?» E a resposta fora pronunciada, num misto incrível de negro presságio e deleite aritmético: «nunca.» William Randolph Hearst ter-se-ia sentido à vontade. Mas Lunacharsky, não. Destacar tantos soldados chineses para a fronteira reduziria automaticamente a taxa de nascimento, argumentava; os cálculos deles estavam, portanto, errados. Compusera a frase como se o mau uso de modelos matemáticos fosse o objeto da sua desaprovação, mas poucos tinham interpretado mal o seu significado. Na fase pior das tensões sino-soviéticas, ele nunca se permitira, que Ellie soubesse, deixar-se avassalar pela paranóia e pelo racismo endêmicos. Ellie gostava de samovares e compreendia o afeto russo por eles. O seu Lunakhod, o bem-sucedido rover lunar não tripulado que parecia uma banheira com rodas de arame, dava-lhe a impressão de ter, algures na sua ancestralidade, um pouco de tecnologia do samovar. Uma vez, Vaygay levara-a a ver um modelo do Lunakhod num extenso parque de exposições fora de Moscovo, numa esplêndida manhã de Junho. Aí, ao lado de um edifício onde estavam expostas as mercadorias e os encantos da República Autônoma do Tadisquistão, havia um grande salão cheio até às traves do teto com modelos em escala natural de veículos espaciais civis soviéticos: Sputnik 1, a primeira astronave orbital; Sputnik 2, a primeira astronave a levar um animal, a cadela Laika, que morreu no espaço; Luna 2, a primeira astronave a chegar a outro corpo celeste; Luna 3, a primeira astronave a fotografar o lado oculto da Lua; Venera 7, a primeira astronave a pousar em segurança noutro planeta; e Vostok 1, a primeira astronave tripulada, que transportou o herói da União Soviética, o cosmonauta Iuri A. Gagarine, numa única órbita da Terra. Cá fora, crianças serviam-se das barbatanas do foguetão de lançamento da Vostok como escorregas, com os bonitos caracóis louros e os lenços de pescoço vermelhos do Komsomol a esvoaçar quando, no meio de grande hilariedade, escorregavam para terra. Zemlya, como se chamava em russo. A grande ilha soviética no mar Ártico chamava-se Novaya Zemlya, «Terra Nova». Fora aí, em 1961, que tinham detonado uma arma termonuclear de cinqüenta e oito megatoneladas, a maior explosão individual jamais conseguida pela espécie humana. Mas naquele dia de Primavera, com os vendedores a apregoar os sorvetes de que os Moscovitas tanto se orgulham, com famílias a passear e um velho desdentado a sorrir a Ellie e a Lunacharsky como se eles fossem namorados, a velha terra tinha parecido muito simpática. Nas pouco freqüentes visitas de Ellie a Moscovo ou Leninegrado, Vaygay organizava muitas vezes os serões. Um grupo de seis ou oito ia ao Bolshoi ou ao ballet de Kirov. Não se sabia como Lunacharsky conseguia arranjar os bilhetes. Ela agradecia o serão aos seus anfitriões e eles — explicando que, pessoalmente, só na companhia de visitantes estrangeiros conseguiam assistir a tais espetáculos agradeciam-lhe a ela. Vaygay limitava-se a sorrir. Nunca levava a mulher, e Ellie não a conhecia. Ela era, dizia ele, uma médica dedicada aos seus doentes. Ellie perguntara-lhe qual era o seu maior desgosto, em virtude dos seus pais não terem emigrado para a América, como em tempos tinham pretendido. «Só tenho um desgosto», respondera ele na sua voz áspera. «A minha filha casou com um búlgaro.» Uma vez organizou um jantar num restaurante caucasiano em Moscovo. Um mestre de brindes profissional, ou tamada, chamado Khaladze, fora contratado para a função. O homem era de fato um mestre naquela forma de arte, mas o russo de Ellie era mau e ela via-se obrigada a pedir a tradução da maioria dos brindes. Ele voltou-se para ela e, agourando o resto da noite, observou: «Chamamos alcoólico ao homem que bebe sem um brinde.» Um dos primeiros e relativamente medíocres brindes terminara com as palavras «À paz em todos os planetas», e Vaygay explicara-lhe que a palavra mir significava «mundo», «paz» e «uma comunidade autônoma de casas de camponeses que remontava a tempos antigos». Tinham discutido se o mundo havia sido mais pacífico quando as suas mais importantes unidades políticas não tinham sido maiores do que aldeias. «Cada aldeia é um planeta», dissera Lunacharsky, com o copo levantado. «E cada planeta é uma aldeia», volvera ela. Tais reuniões tendiam a ser um pouco barulhentas. Bebiam-se enormes quantidades de brande e vodca, mas nunca ninguém parecia seriamente embriagado. Saíam ruidosamente do restaurante à uma ou duas horas da manhã e tentavam, muitas vezes em vão, arranjar um táxi. Nalgumas ocasiões, ele acompanhara-a a pé numa distância de cinco ou seis quilômetros, do restaurante ao hotel onde estava instalada. Era atencioso, um pouco avuncular, tolerante nas suas opiniões políticas e veemente nas suas afirmações científicas. Embora as suas escapadas sexuais fossem lendárias entre os seus colegas, nunca se atrevera sequer a um beijo de boas-noites com Ellie. Isto magoara-a sempre um bocadinho, embora o seu afeto por ela fosse evidente. Havia muitas mulheres na comunidade científica soviética, proporcionalmente mais do que na dos Estados Unidos. Mas a tendência era para ocuparem lugares de nível baixo a médio, e os cientistas soviéticos do sexo masculino, como os seus homólogos americanos, sentiam-se intrigados com uma mulher bonita, com evidente competência científica, que exprimia energicamente as suas opiniões. Alguns interrompiam-na ou fingiam não a ouvir. Então Lunacharsky inclinava-se sempre para a frente e perguntava, em voz mais alta do que a habitual: «Que disse, doutora Arroway? Não consegui ouvi-la bem.» Os outros ficavam silenciosos e ela continuava a dissertar acerca de detectores de arsenieto de gálio indutado ou do conteúdo de etanol da nuvem galáctica W-3. A quantidade de álcool de teor duzentos naquela única nuvem interestelar era mais do que suficiente para manter a ressente população da Terra, se cada adulto fosse um alcoólico inveterado, durante a idade do sistema solar. O tamada apreciara a observação. Nos seus brindes subseqüentes tinham especulado sobre se outras formas de vida se embriagariam com o etanol, se a embriaguez pública era um problema à escala da Galáxia e se um mestre de brindes de qualquer outro mundo poderia ser tão perfeito como o nosso Trofim Sergeivich Khaladze. Quando chegaram ao aeroporto de Albuquerque, verificaram que, miraculosamente, o vôo comercial de Nova Iorque com a delegação soviética aterrara meia hora antes. Ellie encontrou Vaygay numa loja de recordações do aeroporto a regatear o preço de uma bugiganga qualquer. Ele devia tê-la visto pelo canto do olho. Sem se voltar para ela, levantou um dedo: «Um segundo Arroway. 19,95?» continuou, a dirigir-se ao caixeiro de ar cuidadosamente desinteressado. «Ontem vi um conjunto idêntico em Nova Iorque por 17,50.» Ela aproximou-se mais e viu Vaygay a espalmar um jogo de cartas de jogar holográficas representando nus de ambos os sexos em poses agora consideradas meramente indecorosas, mas que teriam escandalizado a geração anterior. O empregado fazia tentativas meio hesitantes para reunir as cartas, enquanto Lunacharsky fazia esforços vigorosos e bem sucedidos para cobrir o balcão com elas. Vaygay estava a ganhar. «Lamento, senhor, não sou eu que estipulo os preços. Só trabalho aqui», protestou o empregado. — Está a ver as deficiências de uma economia planificada — disse Vaygay a Ellie, enquanto estendia uma nota de vinte dólares ao homem. — Num verdadeiro sistema de livre empreendimento, eu provavelmente poderia comprar isto por quinze dólares. Talvez até por doze e noventa e cinco. Não olhe para mim dessa maneira, Ellie. Isto não é para mim. Com os jokers, estão aqui cinqüenta e quatro cartas. Cada uma delas constituirá uma prenda simpática para algum trabalhador do meu instituto. Ela sorriu e deu-lhe o braço. — É bom voltar a vê-lo, Vaygay. — Um raro prazer, minha querida. Na viagem de automóvel para Socorro, por consentimento mútuo, mas não mencionado, falaram principalmente de coisas divertidas. Valerian e o motorista, um dos homens da nova segurança, ocupavam os lugares da frente. Peter, que nem mesmo em circunstâncias normais era um indivíduo falador, contentava-se com recostar-se no lugar e ouvir a conversa deles, que só tangencialmente tocava no problema que os Soviéticos tinham vindo discutir: o terceiro nível do palimpsesto, a minuciosa, complexa e ainda indecifrada Mensagem que estavam a receber coletivamente. O Governo dos Estados Unidos da América concluíra, mais ou menos relutantemente, que a participação soviética era essencial. Assim era de fato, em especial porque o sinal de Vega era tão intenso que até radiotelescópios modestos podiam detectá-lo. Anos atrás, os Soviéticos tinham disposto prudentemente um certo número de pequenos telescópios através de toda a massa terrestre eurasiática, distribuindo-se numa extensão de nove mil quilômetros sobre a superfície da Terra, e recentemente tinham concluído um importante radiobservatório perto de Samarcanda. Além disso, navios oceânicos soviéticos rastreadores de satélites patrulhavam tanto o Atlântico como o Pacífico. Alguns dos dados soviéticos eram redundantes, em virtude de observatórios no Japão, na China, na Índia e no Iraque estarem igualmente a registrar esses sinais. Na realidade, todo o radiotelescópio importante do mundo que tinha Vega no seu céu estava à escuta. Astrônomos na Grã-Bretanha, na França, na Holanda, na Suécia, na Alemanha, na Checoslováquia, no Canadá, na Venezuela e na Austrália registravam pequenas partes da Mensagem, acompanhando Vega do nascer ao pôr da estrela. Nalguns observatórios, o equipamento de detecção não era sequer suficientemente sensível para distinguir os impulsos individuais, mas, mesmo assim, escutavam uma espécie de mancha áudio. Cada uma destas nações tinha uma peça do quebra-cabeças, porque, como Ellie recordara a Kitz, a Terra gira. Cada nação tentava encontrar um sentido qualquer nos impulsos. Mas era difícil. Ninguém sabia sequer dizer se a Mensagem estava escrita em símbolos ou em imagens. Era perfeitamente concebível que não decifrassem a Mensagem enquanto ela não retornasse à página um — se alguma vez o fizesse — e recomeçasse com a introdução, o livro de instruções, a chave de decodificação. Talvez fosse uma mensagem muito grande, pensava Ellie enquanto Vaygay comparava despreocupadamente taiga com deserto restolhoso; talvez não regressasse ao princípio durante um século. Ou talvez não houvesse nenhum livro de instruções. Talvez a Mensagem (em todo o planeta a palavra começava a ser escrita com maiúscula) fosse um teste de inteligência, para que os mundos tão estúpidos que não conseguiam decifrá-la ficassem impossibilitados de utilizar mal o seu conteúdo. Imaginou de súbito a humilhação que sentiria a espécie humana se no fim não conseguissem compreender a Mensagem. No momento em que os Americanos e os Soviéticos decidiram colaborar e o Memorando de Acordo foi solenemente assinado, todas as outras nações com um radiotelescópio tinham concordado em cooperar. Havia uma espécie de Consórcio Mundial da Mensagem e as pessoas falavam realmente nesses termos. Precisavam dos dados e da capacidade cerebral umas das outras se queriam que a Mensagem fosse decifrada. Os jornais de pouco mais falavam. O tristemente pequeno conjunto de fatos conhecidos — os números primos, a transmissão olímpica e a existência de uma mensagem complexa — era interminavelmente comentado. Seria difícil encontrar alguém no planeta que não tivesse, de uma maneira ou de outra, ouvido falar da Mensagem de Vega. Seitas religiosas, firmadas e marginais e algumas recém-inventadas para aquele propósito dissecavam as implicações teológicas da Mensagem. Algumas pensavam que era de Deus; outras, do Diabo. Surpreendentemente, algumas mostravam-se até hesitantes. Verificava-se uma desagradável ressurgência de interesse por Hitler e pelo regime nazi e Vaygay disse-lhe que encontrara um total de oito suásticas nos anúncios do Nezer York Times Book Review daquele domingo. Ellie respondeu-lhe que oito era mais ou menos a média, mas sabia que estava a exagerar; a algumas semanas havia apenas duas ou três. Um grupo que se auto-intitulava «Espaçarianos» apresentava provas definitivas de que os discos voadores tinham sido inventados na Alemanha de Hitler. Uma nova raça «não híbrida» de nazis desenvolvera-se em Vega e estava agora pronta para pôr as coisas em ordem na Terra. Havia quem considerasse escutar o sinal uma abominação e instigasse os observatórios a encerrarem; havia quem o considerasse um sinal do Advento e instigasse a construção de radiotelescópios ainda maiores, parte deles no espaço. Alguns desaconselhavam que se trabalhasse com os dados soviéticos, a pretexto de que podiam estar falsificados ou ser fraudulentos, embora nas longitudes de sobreposição coincidissem com os dados iraquianos, indianos, chineses e japoneses. E havia outros que tinham a percepção de uma mudança no clima político mundial e alegavam que a simples existência da Mensagem, mesmo que nunca fosse decifrada, estava a exercer uma influência estabilizadora nos estados das nações conflituosas. Como a civilização emissora era claramente mais avançada do que a nossa, e visto — pelo menos até há vinte e seis anos — ser claro que não se auto-destruíra, daí se depreendia, argumentavam alguns, que as civilizações tecnológicas não se auto-destruíam inevitavelmente. Com um mundo a experimentar hesitantemente importantes despojamentos de armas nucleares e dos seus sistemas de lançamento, a Mensagem era considerada por populações inteiras uma razão de esperança. Muitos consideravam-na a melhor notícia que houvera em muito tempo. Durante décadas, gente jovem tentara não pensar demasiado profundamente no amanhã. Agora talvez houvesse, no fim de contas, um futuro agradável. Os que tinham predisposições para concordar com estes prognósticos animadores descobriam-se por vezes a resvalar desconfortavelmente para um terreno que fora ocupado durante uma década pelo movimento quiliasta. Alguns quiliastas afirmavam que a chegada iminente do Terceiro Milênio seria acompanhada pelo regresso de Jesus, ou de Buda, ou de Krishna, ou do Profeta, que estabeleceriam na Terra uma teocracia benévola, severa no seu julgamento dos mortais. Talvez isto pressagiasse a ascensão celeste dos eleitos. Mas havia outros quiliastas, e estes muito mais numerosos, que argumentavam que a destruição física do mundo era condição prévia indispensável do Advento, como fora infalivelmente predito em várias obras proféticas antigas, contraditórias noutros aspectos. Os Quiliastas do Juízo Final sentiam-se inquietos com o cheirinho de comunidade mundial que andava no ar e perturbados com o sistemático declínio anual dos arsenais globais de armas estratégicas. O meio mais prontamente disponível para o cumprimento da doutrina fulcral da sua fé estava a ser desmantelado dia a dia. Outras catástrofes candidatas — excesso populacional, poluição industrial, terremotos, explosões vulcânicas, aquecimento de estufa, eras glaciárias ou colisão cometária com a Terra — eram demasiado lentas, demasiado improváveis, ou insuficientemente apocalípticas para o fim em vista. Alguns dirigentes quiliastas tinham garantido em comícios maciços de adeptos devotados que, a não ser para o caso de acidentes, o seguro de vida era um sinal de fé instável; que, a não ser para os muito idosos, a aquisição de um lugar para sepultamento ou a tomada de disposições para o funeral, em casos que não fossem de necessidade urgente, eram uma impiedade flagrante. Todos os que acreditavam subiriam corporeamente ao Céu e encontrar-se-iam perante o trono de Deus dentro de poucos anos apenas. Ellie sabia que o famoso parente de Lunacharsky fora o mais raro dos seres, um revolucionário bolchevique com um interesse erudito pelas religiões mundiais. Mas a atenção de Vaygay, dirigida para o crescente fermento teológico à escala mundial, estava aparentemente emudecida. «A principal questão religiosa no meu país», disse, «será saber se os Veganianos denunciaram convenientemente Leão Trotsky.» Ao aproximarem-se, das instalações Argus, a berma da estrada pareceu coalhada de automóveis estacionados, veículos de recreação, gente acampada, tendas e grandes multidões de pessoas. À noite, as outrora sossegadas planícies de San Augustin eram iluminadas por fogueiras. As pessoas que se encontravam ao longo da auto-estrada não eram de modo nenhum todas gente próspera. Ellie reparou em dois jovens casais. Os homens vestiam T-shirts e jeans desbotadas, com cinto à volta dos quadris, gingavam um pouco, como tinham sido ensinados pelos colegas mais velhos quando tinham entrado para o liceu, e falavam animadamente. Um deles empurrava um escaqueirado carrinho de bebê no qual estava sentado um miúdo despreocupado dos seus dois anos de idade. As mulheres seguiam atrás dos maridos, uma delas a dar a mão a uma criança recém-iniciada na arte humana de andar e a outra empinada para a frente, pelo que, dentro de um mês ou dois, seria mais uma vida nascida neste obscuro planeta. Havia místicos de comunidades isoladas no exterior de Taos que usavam psilocibina como sacramento e freiras de um convento próximo de Albuquerque que utilizavam etanol para o mesmo fim. Havia homens de pele coriácea e olhos enrugados que tinham passado toda a sua vida ao ar livre e estudantes amarelentos, ratos de biblioteca da Universidade do Arizona, em Tucson. Havia gravatas de seda e cordões de prata polida vendidos por empresários navajos por preços exorbitantes, no que constituía uma pequena inversão das relações comerciais históricas entre americanos brancos e nativos. Tabaco de mascar e pastilha elástica de fazer balão eram vigorosamente exibidos por soldados da Base da Força Aérea de Davis-Monthan em gozo de licença. Um homem de cabelo branco elegantemente vestido, ostentando um fato de novecentos dólares e um chapéu de aba larga de cor condizente, era, provavelmente, um rancheiro. Havia gente que vivia em barracas e arranha-céus, tugúrios de adobe, dormitórios e parques de caravanas. Uns estavam ali porque não tinham nada melhor que fazer; outros, porque queriam dizer aos netos que ali unham estado. Uns chegavam a desejar o fracasso; outros confiavam em que iam ser testemunhas de um milagre. Sons de serena devoção, ruidosa hilaridade, êxtase místico e expectativa contida erguiam-se da multidão para a brilhante luz da tarde. Algumas cabeças viravam-se para olhar sem curiosidade a caravana de automóveis que passavam, cada um deles identificado com as palavras PARQUE AUTOMÓVEL DO GOVERNO DOS EUA. Algumas pessoas almoçavam no taipal da retaguarda de camionetas; outras provavam as especialidades de vendedores cujos empórios sobre rodas ostentavam grandes letreiros: SNACKMOBILE ou RECORDAÇÕES ESPACIAIS. Havia longas bichas defronte de pequenas e toscas estruturas com capacidade de ocupação máxima de uma pessoa e que o Projeto tivera a boa idéia de fornecer. Crianças cirandavam entre veículos, sacos de dormir, cobertores e mesas de piquenique articuladas, quase nunca repreendidas pelos adultos — a não ser quando se aproximavam demasiado da auto-estrada ou da cerca mais próxima do Telescópio 61, onde um grupo de jovens adultos de cabeça rapada, vestes cor de açafrão, ajoelhados e a tocar no solo com a cabeça, entoavam a sílaba sagrada «Om». Havia cartazes com representações imaginárias de seres extraterrestres, algumas delas popularizadas pelas histórias aos quadradinhos ou pelo cinema. Um dizia: «Há alienígenas entre nós.» Um homem de brincos de ouro fazia a barba, servindo-se do espelho lateral da furgoneta de qualquer pessoa, e uma mulher de cabelo preto e poncho ergueu uma chávena de café numa saudação à passagem veloz do cortejo de automóveis. Quando seguiam na direção do novo portão principal, Perto do Telescópio 101, Ellie viu um jovem num estrado improvisado a arengar a uma multidão razoável. O homem usava uma T-shirt com uma imagem da Terra a ser atingida por um raio celestial. Ela reparou que várias outras pessoas da multidão usavam o mesmo adorno enigmático. A insistência sua, depois de transposto o portão, afastaram-se do lado da estrada, desceram a janela e escutaram. O orador estava de costas para eles e podiam ver os rostos da multidão. Esta gente está profundamente emocionada, pensou Ellie. Ele estava no meio de uma frase: «… e outros dizem que houve um pacto com o Demônio, que os cientistas venderam as suas almas. Há pedras preciosas em cada um daqueles telescópios.» Voltou a mão na direção do Telescópio 101. «Até os cientistas admitem isso. Há quem diga que é a parte do Demônio no negócio.» — Rufianismo religioso — resmungou Lunacharsky, carrancudo, com os olhos ansiosos pela estrada livre diante deles. — Não, não. Fiquemos — pediu ela, com um meio sorriso maravilhado a brincar nos lábios. — Há algumas pessoas — pessoas religiosas, pessoas tementes a Deus — que acreditam que esta Mensagem vem de seres do espaço, entes, criaturas hostis, alienígenas que querem fazer-nos mal, inimigos do homem. — O orador gritou praticamente a última frase e depois fez uma pausa, a aguardar o efeito. — Mas todos vós estais cansados e desgostosos com a corrupção, a podridão desta sociedade, uma podridão resultante de uma tecnologia insensata, desenfreada, ímpia. Não sei qual de vós tem razão. Não sei dizer-vos o que a Mensagem significa ou de quem vem. Tenho as minhas suspeitas. Em breve o saberemos. Mas sei que os cientistas, e os políticos, e os burocratas estão a esconder-nos coisas. Não nos disseram tudo quanto sabem. Estão a enganar-nos, como sempre fazem. Durante demasiado tempo, ó Deus! engolimos as mentiras que nos impingem, a corrupção que provocam. Para espanto de Ellie, ergueu-se da multidão um coro profundo e estrondoso de concordância. Ele acertara em qualquer poço de ressentimento que ela só apreendia vagamente. — Estes cientistas não acreditam que nós somos os filhos de Deus. Pensam que somos os rebentos dos macacos. Há comunistas conhecidos entre eles. Quereis que gente dessa decida o destino do mundo? A multidão respondeu com um tonitruante «Não!» — Quereis que seja uma corja de incrédulos a falar com Deus? — Não! — gritaram de novo. — Ou com o Demônio? Eles estão a vender o nosso futuro por uma tuta-e-meia a monstros de um mundo alienígena. Meus irmãos e minhas irmãs, há um mal neste lugar. Ellie tinha pensado que o orador estava alheio à sua presença. Mas ele voltou-se parcialmente e apontou através da vedação para o comboio imobilizado. — Eles não falam por nós! Eles não nos representam! Eles não têm direito nenhum de negociar em nosso nome! Alguns dos componentes da multidão mais próximos da vedação começaram aos encontrões e a empurrar ritmicamente. Tanto Valerian como o motorista se sentiram alarmados. Os motores tinham continuado a trabalhar e num momento aceleraram e afastaram-se do portão na direção do edifício da administração de Argus, ainda a muitos quilômetros de distância através do deserto restolhoso. Quando se afastavam, Ellie ouviu, sobrepondo-se ao chiar dos pneus e ao murmúrio da multidão, o orador dizer, com uma voz que vibrava claramente: — O mal que há neste lugar será detido. Juro-o! CAPÍTULO VIII Acesso ao acaso O teólogo abandona-se à tarefa agradável de descrever a Religião como ela desceu do Céu, revestida da sua pureza inata. Um dever mais melancólico é imposto ao historiador. Ele tem a obrigação de descobrir a mistura inevitável de erro e corrupção que ela contraiu numa longa residência na Terra, entre uma fraca e degenerada raça de seres.      EDUARD GIBBON. Declínio e Queda do Império Romano, XV Ellie ignorou o acesso ao acaso e avançou seqüencialmente através dos canais de televisão. Lifestyles of the Mass Nlurderers e You Bet Your Ass estavam em canais adjacentes. Um olhar bastou para tornar evidente que a promessa do médium continuava por cumprir. Havia um aguerrido jogo de basquetebol entre os Widcats, de Johnson City, e os Tigers, de Union-Endicott; os jovens jogadores e jogadoras davam tudo por tudo. No canal seguinte podia assistir-se a uma exortação em parte sobre próprias versus impróprias observâncias do Ramadão. Mais adiante havia um dos canais fechados, este aparentemente dedicado a práticas sexuais universalmente repugnantes. Encontrou em seguida um dos primeiros canais de computadores destinados a jogos de desempenho de papéis de fantasia e agora a atravessarem tempos difíceis. Ligado ao computador doméstico de uma pessoa, oferecia uma única entrada numa nova aventura, naquele dia aparentemente chamada Gilgamesh Galáctico, na esperança de que a pessoa a achasse suficientemente interessante para encomendar o correspondente floppy disk num dos canais destinados a vendas. Eram tomadas precauções eletrônicas adequadas para que não se pudesse gravar o programa durante a única participação da pessoa. Ellie pensava que a maior parte daqueles jogos vídeo eram tentativas desesperadamente erradas para preparar adolescentes para um futuro desconhecido. A sua atenção foi atraída por um apresentador muito sério de uma das antigas cadeias de televisão a discutir com inequívoca preocupação o que era descrito como um ataque não provocado de torpedeiros norte-vietnamitas a dois contratorpedeiros da Esquadra dos EUA no golfo de Tonquim e o pedido do presidente dos EUA de autorização para «tomar todas as providências necessárias» em resposta ao ataque. O programa era um dos seus favoritos: Yesterday’s News, retransmissões de programas noticiosos de anos anteriores. A segunda metade do programa consistia numa dissecação, ponto por ponto, da desinformação da primeira metade e da obstinada credulidade das novas organizações perante quaisquer afirmações de qualquer administração, por muito injustificadas e em proveito próprio que fossem, era uma das várias séries de televisão produzidas por uma organização chamada REALI-TV, incluindo Promises, destinada a efetuar análises de promessas eleitorais não cumpridas aos níveis local, estadual e nacional, e Bamboozes and Baloney, um bota-abaixo semanal do que era considerado preconceitos muito espalhados, propaganda e mitos. A data ao fundo do écran era 5 de Agosto de 1964, e avassalou-a uma onda de recordações — nostalgia não era a palavra apropriada — dos seus tempos de liceu. Prosseguiu. Enquanto os canais se sucediam, passou por uma série de cozinha oriental dedicada naquela semana ao hibachi, um anúncio demorado da primeira geração de robots domésticos para fins gerais da Hadden Cybernetics, o noticiário e o programa de comentários da Embaixada Soviética em língua russa, diversas freqüências de noticiários e programas infantis, o programa de Matemática, exibindo os estonteantes gráficos de computador do novo curso de Geometria Analítica da Cornell, o canal de apartamentos locais e bens imobiliários e uma molhada de execráveis séries diurnas, até chegar às cadeias religiosas, onde, com excitação continuada e geral, a Mensagem estava a ser discutida. O número de freqüentadores das igrejas subira em flecha em toda a América. Ellie estava convencida de que a Mensagem era uma espécie de espelho no qual cada pessoa via as suas próprias crenças desejadas ou confirmadas. Era considerada uma defesa coletiva de doutrinas apocalípticas e escatológicas mutuamente exclusivas. No Peru, na Argélia, no México, no Zimbabwe, no Equador e entre os índios Hopi realizavam-se sérios debates públicos sobre se as suas civilizações progenitoras tinham vindo do espaço; as opiniões apoiantes eram atacadas como colonialistas. Católicos debatiam o estado de graça extraterrestre. Protestantes discutiam possíveis missões anteriores de Jesus a planetas próximos e, claro, um regresso à Terra. Muçulmanos preocupavam-se com a possibilidade de a Mensagem violar o mandamento contra imagens gravadas. No Kuwait, um homem auto-proclamou-se o imã oculto dos Xiitas. Despertara um fervor messiânico entre os Sossafer Chasids. Noutras congregações de judeus ortodoxos houve uma súbita renovação de interesse por Astruc, um fanático receoso de que o saber minasse a fé e que em 1305 induzira o rabino de Barcelona, o principal clérigo judaico do tempo, a proibir o estudo da Ciência ou da Filosofia àqueles que tivessem menos de vinte e cinco anos, sob pena de excomunhão. Correntes similares eram crescentemente discerníveis no Islã. Um filósofo tessalônico, auspiciosamente chamado Nicholas Polydemos, estava a atrair as atenções com um conjunto de argumentos apaixonados a favor daquilo a que chamava a «reunificação» das religiões, dos governos e dos povos do mundo. Críticos começavam por questionar o KreN. Grupos interessados em OVNIs tinham organizado vigílias ininterruptas na Base da Força Aérea de Brooks, perto de San Antonio, onde constava que os corpos perfeitamente conservados de quatro ocupantes de um disco voador que aterrara de emergência em 1947 iam definhando em congeladores. Dizia-se que os extraterrestres em questão tinham um metro de altura e dentes minúsculos e impecáveis. Tinham sido reportadas aparições de Vishnu na Índia e de Amida Buda no Japão e anunciadas curas miraculosas, às centenas, em Lurdes; proclamara-se uma nova Bodisatva no Tibete. Um novo culto de carga foi importado da Nova Guiné para a Austrália; pregava a construção de réplicas grosseiras de radiotelescópios para atraírem a generosidade extraterrestre. A União Mundial de Livres Pensadores chamava à Mensagem uma refutação da existência de Deus. A igreja mórmon declarava-a uma segunda revelação pelo anjo Moroni. A Mensagem era considerada por grupos diferentes como uma prova da existência de muitos deuses, ou um deus, ou nenhum deus. O quiliasmo proliferava. Havia os que prediziam o Milênio em 1999 — como uma inversão cabalística de 1666, o ano que Sabbatai Zevi adotara para o seu milênio; outros optavam por 1996 ou 2033, os presumíveis dois milésimos aniversários do nascimento ou da morte de Jesus. O Grande Ciclo dos antigos Maias seria completado no ano 2011, quando — de acordo com esta tradição cultural independente — o cosmo acabaria. A convolução da predição maia com o milenarismo cristão estava a produzir uma espécie de frenesi apocalíptico no México e na América Central. Alguns quiliastas que acreditavam nas primeiras datas tinham começado a dar a sua riqueza aos pobres, em parte porque, de qualquer maneira, em breve não valeria nada, e em parte como arras para Deus, um suborno para o Advento. O sectarismo, o fanatismo, o medo, a esperança, o debate fervoroso, a prece silenciosa, a reavaliação angustiante, a abnegação exemplar, a intolerância tacanha e um gosto por idéias dramaticamente novas constituíam uma epidemia, corriam febrilmente pela superfície do minúsculo planeta Terra. Emergindo lentamente deste poderoso fermento, Ellie julgava ver o alvorecer do reconhecimento do mundo como um fio de uma imensa tapeçaria cósmica. Entretanto, a Mensagem propriamente dita continuava a resistir às tentativas de decifração. Nos canais de difamação, protegidos pela Primeira Emenda, ela, Vaygay, Der Heer e, em menor grau, Peter Valerian estavam a ser severamente acusados de uma variedade de delitos, incluindo ateísmo, comunismo e sonegação da Mensagem para eles próprios. Na sua opinião, Vaygay não era grande comunista e Valerian tinha uma fé cristã profunda e serena, mas sofisticada. Se tivessem a sorte de se aproximar, ao menos, da decifração da Mensagem, estava disposta a entregá-la pessoalmente àquele comentador de televisão pateta e santimonial. David Drumlin, no entanto, estava a ser apresentado como o herói, o homem que decifrara realmente as emissões de números primos e as olimpíadas; ele era o tipo de cientista de que mais precisávamos. Ellie suspirou e mudou novamente de canal. Chegara ao TABS, o Turner-American Broadcasting System, único sobrevivente das grandes cadeias comerciais que tinham dominado a emissão televisiva nos Estados Unidos da América até ao advento da disseminada transmissão direta por satélite e do cabo de cento e oitenta canais. Naquele posto, Palmer Joss efetuava um dos seus raros aparecimentos na Televisão. Como a maioria dos Americanos, Ellie reconheceu imediatamente a sua voz ressoante, a sua beleza ligeiramente descuidada e a descoloração sob os olhos, que fazia pensar que ele nunca dormia, de tanto se preocupar com o resto das pessoas. — Que fez a ciência realmente por nós? — declamou. Somos realmente mais felizes? Não me refiro apenas a receptores holográficos e uvas sem grainha. Somos fundamentalmente mais felizes? Ou subornam-nos os cientistas com brinquedos, como prendas tecnológicas, enquanto minam a nossa fé? Aqui está um homem, pensou ela, que anela por uma era mais simples, um homem que consagrou a sua vida a tentar conciliar o inconciliável. Condenou os excessos mais flagrantes da religião pop e pensa que isso justifica ataques à evolução e à relatividade. Por que não atacar a existência do elétron? Palmer Joss nunca viu nenhum e a Bíblia está inocente no tocante ao eletromagnetismo. Por quê acreditar em elétrons? Embora anteriormente nunca o tivesse ouvido falar, teve a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, ele aludiria à Mensagem. E assim foi. — Os cientistas guardam as suas descobertas para eles mesmos, atiram-nos migalhas, o suficiente para nos manterem calados. Pensam que somos demasiado estúpidos para compreender o que eles compreendem. Dão-nos conclusões sem provas, descobertas como se fossem escritos sagrados, e não especulações, teorias, hipóteses — aquilo a que as pessoas comuns chamariam «conjecturas». Nunca perguntam se uma nova teoria é tão boa para as pessoas como a crença que tenta substituir. Sobreestimam o que sabem e subestimam o que nós sabemos. Quando pedimos explicações, respondem que são precisos anos para compreender. Eu sei isso, porque em religião também há coisas que levam anos a compreender. Podemos gastar uma vida inteira sem nunca chegarmos perto da compreensão da natureza de Deus Todo-Poderoso. Mas não vemos os cientistas procurarem os líderes religiosos para os interrogarem acerca dos seus anos de estudo, e introspecção, e oração. Eles nunca pensam em nós duas vezes, a não ser quando nos induzem em erro e enganam. «E agora dizem que têm uma mensagem da estrela Vega. Mas uma estrela não pode enviar uma mensagem. Alguém a está a enviar. Quem? O propósito da Mensagem é divino ou satânico? Quando eles decifrarem a Mensagem, ela terminará com as palavras «Vosso dedicado, Deus»… ou «Sinceramente, o Diabo?» Quando os cientistas resolverem dizer-nos o que está na Mensagem, dir-nos-ão a inteira verdade? Ou ocultarão alguma coisa por pensarem que a não saberemos compreender ou porque não condiz com aquilo em que eles acreditam? Não foram estas as pessoas que nos ensinaram a aniquilar-nos a nós próprios? «Digo-vos, meus amigos, a ciência é demasiado importante para ser deixada a cargo dos cientistas. Representantes das fés principais devem participar no processo de decifração. Devemos ver os dados puros. É assim que os cientistas lhes chamam, «puros». Caso contrário… caso contrário aonde iremos parar? Eles dir-nos-ão qualquer coisa a respeito da Mensagem. Talvez aquilo em que realmente acreditam. Talvez não. E nós teremos de aceitar seja o que for que nos disserem. Há algumas coisas de que os cientistas percebem. Há outras coisas — acreditem na minha palavra — de que não percebem nada. Talvez tenham recebido uma mensagem de outro ser do firmamento. Talvez não. Podem ter a certeza de que a Mensagem não é um bezerro de ouro? Não creio que o reconhecessem se vissem algum. Estes são aqueles que nos deram a bomba de hidrogênio. Perdoai-me, Senhor, não ser mais grato a essas bondosas almas. «Vi Deus cara a cara. Adoro-O, confio n’Ele, amo-O com toda a minha alma, com todo o meu ser. Penso que ninguém pode acreditar mais do que eu acredito. Não consigo imaginar como poderiam os cientistas acreditar em ciência mais do que eu acredito em Deus. «Eles estão preparados para atirar fora as suas «verdades» quando aparece uma idéia nova. Orgulham-se disso. Não vêem um fim para o saber. Imaginam que estamos encerrados em ignorância até ao fim dos tempos, que não existe nenhuma certeza em parte alguma da natureza. Newton destronou Aristóteles. Einstein destronou Newton. Amanhã alguém destronará Einstein. Assim que conseguimos compreender uma teoria, surge outra no seu lugar. Eu não me importaria tanto se nos tivessem avisado e que as idéias velhas eram experimentais. A lei da gravitação de Newton, chamaram-lhe. Ainda lhe chamam isso. Mas, se era uma lei da natureza, como podia estar errada? Como podia ser derrubada? Só Deus pode revogar as leis da natureza, não os cientistas. Eles apenas perceberam as coisas mal. Se Albert Einstein teve razão, Isaac Newton foi um amador, um trapalhão. «Lembrai-vos, os cientistas não acenam sempre. Querem tirar-nos a nossa fé, as nossas crenças, e não nos oferecem em troca nada de valor espiritual. Não tenciono abandonar Deus porque os cientistas escrevem um livro e dizem que é uma mensagem de Vega. Não adorarei a ciência. Não desafiarei o Primeiro Mandamento. Não me inclinarei perante um bezerro de ouro.» Quando era muito novo, antes de se tornar largamente conhecido e admirado, Palmer Joss fora um animador de festivais. Vinha mencionado no seu perfil, na Timesweek; não era segredo nenhum. Para o ajudar a fazer fortuna mandara tatuar penosamente no tronco um mapa da Terra em projeção cilíndrica. Exibia-se em feiras de condado e espetáculos de segunda categoria de Oklahoma ao Mississipi, um dos vagabundos e restos de uma época de entretenimento rural itinerante mais vigoroso. Na expansão de oceano azul estavam os quatro deuses dos ventos, de bochechas distendidas a soprar ventos prevalecentes ocidentais e do nordeste. Fletindo os peitorais, conseguia fazer Boreas seguir juntamente com o Atlântico Médio. Depois declamava, para os espantados espectadores, do livro 6 das Metamorfoses, de Ovídio: Monarca da Violência, rolando nas nuvens, Agito vastas águas e derrubo enormes árvores… Possesso de raiva demoníaca, penetro Completamente nas maiores cavernas da velha Terra; E num esforço, subindo desses insondáveis abismos, Disperso as sombras aterrorizadas do Inferno; E arremesso mundo fora mortíferos terremotos! Fogo e enxofre da velha Roma. Com alguma ajuda das mãos, demonstrava a deriva continental, empurrando a África Ocidental contra a América do Sul, de modo a juntarem-se, como as peças de um quebra-cabeças, quase perfeitamente na longitude do seu umbigo. Anunciavam-no como «Geos, o Homem-Terra». Joss era um grande leitor e, sem o estorvo de uma educação formal para além da escola média, não sabia, porque ninguém lho dissera, que a ciência e os clássicos eram dieta inadequada para gente comum. Ajudado pelo seu aspecto atraente, mas natural e descuidado, insinuava-se nas graças das bibliotecárias das cidades ao longo do trajeto do espetáculo e perguntava que livros sérios deveria ler. Queria, dizia-lhes, cultivar-se. Obedientemente, leu livros a respeito de conquistar amigos, investir em bens imobiliários e intimidar os conhecidos sem eles darem por isso, mas achava esses livros de certo modo superficiais. Em contraste, parecia-lhe detectar qualidade na literatura antiga e na ciência moderna. Quando havia paragens temporárias, revolvia a biblioteca municipal ou do condado. Aprendeu assim alguma geografia e história. Estavam relacionadas com o seu trabalho, dizia a Elvira, a Rapariga-Elefante, que o interrogava a fundo sobre as suas ausências. Suspeitava que ele tinha namoros compulsivos — uma bibliotecária em cada porto, disse-lhe uma vez —, mas tinha de admitir que o seu trinta-e-um de boca profissional estava a melhorar. O conteúdo era demasiado intelectual, mas a apresentação estava à altura da assistência. Surpreendentemente, a pequena barraca de Joss começou a render dinheiro ao espetáculo. Um dia, de costas para a assistência, estava a demonstrar a colisão da Índia com a Ásia e o resultante surgimento dos Himalaias, quando, de um céu cinzento, mas sem chuva, desceu um raio que o atingiu e matou. Houvera ciclones no Sudeste de Oklahoma e o tempo estava instável em todo o Sul. Teve a noção perfeitamente lúcida de deixar o corpo — tristemente estatelado nas tábuas cobertas de serradura e a ser olhado com cautela e algo parecido com temor pela pequena multidão — e subir, subir como que por um comprido túnel escuro, a aproximar-se lentamente de uma luz brilhante. E na radiância distinguiu gradualmente uma figura de proporções heróicas, na verdade, de proporções divinas. Quando acordou, descobriu que uma parte de si mesmo se sentia decepcionada por estar vivo. Encontrava-se deitado num divã, num quarto modestamente mobiliado. Debruçado para ele estava o reverendo Billy Jo Rankin, não o presente portador do nome, mas o seu pai, um venerando pregador substituto do terceiro quartel do século XX. Ao fundo, Joss julgou ver uma dúzia de vultos encapuzados a cantar o Kyrie Eleison. Mas não teve a certeza. — Vou viver ou morrer? — murmurou o jovem. — Meu rapaz, vais fazer as duas coisas — respondeu-lhe o reverendo Rankin. Joss não tardou a ser avassalado por um pungente sentimento de descoberta da existência do mundo. Mas, de uma maneira que lhe era difícil expressar, esse sentimento estava em conflito com a imagem beatífica que vira e com a infinita alegria que essa visão pressagiava. Sentia as duas sensações em conflito dentro do seu peito. Em várias circunstâncias, às vezes no meio de uma frase, tomava consciência de que um ou o outro desses sentimentos fazia qualquer reivindicação de falar ou agir. Passado algum tempo sentiu-se bem a viver com ambos. Estivera realmente morto, disseram-lhe depois. Um médico declarara-o morto. Mas tinham rezado por ele, haviam cantado hinos e tinham até tentado fazê-lo reviver por massagem corporal (principalmente nas vizinhanças da Mauritânia). Tinham-no devolvido à vida. Ele renascera, verdadeira e literalmente. Como isto correspondia tão bem à sua própria percepção da experiência, aceitou o que lhe diziam, e de bom grado. Embora quase nunca falasse disso, convenceu-se da importância do acontecimento. Não tinha sido morto por um raio para nada. Não tinha sido devolvido à vida sem nenhuma razão. Sob a tutela do seu protetor, começou a estudar as Escrituras a sério. Sentiu-se profundamente emocionado com a idéia da Ressurreição e a doutrina da Salvação. Ao princípio ajudou o reverendo Rankin em pequenas coisas, substituindo-o eventualmente nos compromissos de pregação mais onerosos ou mais distantes — especialmente depois de o jovem Billy Jo Rankin partir para Odessa, no Texas, em resposta a um chamamento de Deus. Em breve Joss encontrou um estilo de pregação próprio, não tanto exortativo como explanativo. Numa linguagem simples e com metáforas de igual simplicidade, explicava o batismo e a vida depois da morte, a ligação da Revelação Cristã com os mitos da Grécia e Roma clássicas, a idéia do plano de Deus para o mundo e a conformidade da ciência e da religião quando ambas eram apropriadamente compreendidas. Esta não era uma maneira de pregação convencional e era excessivamente ecumênica para muitos gostos. Mas revelou-se inesperadamente popular. — Tu renasceste, Joss — disse-lhe o Rankin pai. — Por isso devias mudar de nome. Mas Palmer Joss é um nome tão excelente para um pregador que serias um idiota se o não conservasses. Como os médicos e os advogados, os vendedores de religião raramente criticam as mercadorias uns dos outros, como Joss já tivera ocasião de verificar. Mas uma noite assistiu a serviços na nova Igreja de Deus, Cruzado, para ouvir o jovem Billy Jo Rankin, triunfalmente regressado de Odessa, pregar à multidão. Billy Jo enunciou uma severa doutrina de Recompensa, Castigo e Êxtase. Mas aquela noite era uma noite para sarar. O instrumento curativo, foi dito à congregação, era a mais santa das relíquias — mais santa ainda do que uma lasca da Verdadeira Cruz, mais santa mesmo do que o osso da coxa de Santa Teresa de Ávila que o generalíssimo Francisco Franco tivera no seu gabinete para intimidar os crentes. O que Billy Jo Rankin brandia era o genuíno líquido amniótico que rodeara e protegera Nosso Senhor. O líquido tinha sido cuidadosamente conservado numa antiga vasilha de barro que pertencera, dizia-se, a Santa Ana. A mais pequenina gotinha dele curaria o que quer que apoquentasse uma pessoa, prometeu, através de um ato especial de Graça Divina. Aquelas águas, mais sagradas do que todas as águas sagradas, estavam com eles naquela noite. Joss ficou aterrado, não tanto por Rankin se atrever a uma intrujice tão transparente, como pelo fato de alguns dos paroquianos serem crédulos ao ponto de a aceitarem. Na sua vida anterior assistira a muitas tentativas para ludibriar o público. Mas isso era espetáculo. Isto era diferente. Isto era religião. A religião era demasiado importante para dourar a verdade, quanto mais para fabricar milagres. Começou a denunciar semelhante impostura do púlpito. À medida que o seu fervor aumentava, passou a manifestar-se contra outras formas divergentes de fundamentalismo cristão, incluindo os aspirantes a herpetologistas que punham à prova a sua fé acariciando serpentes, de acordo com a afirmação bíblica de que os puros de coração não devem temer o veneno delas. Num sermão largamente citado parafraseou Voltaire. Nunca pensara, disse, que conheceria homens do clero tão venais ao ponto de constituírem apoio aos blasfemos que ensinavam que o primeiro sacerdote tinha sido o primeiro embusteiro que encontrara o primeiro parvo. Estas religiões estavam a prejudicar a religião. Brandiu graciosamente o dedo no ar. Joss afirmou que em todas as religiões havia uma linha doutrinária que, ultrapassada, insultava a inteligência dos seus praticantes. Pessoas razoáveis podiam discordar quanto ao ponto em que essa linha devia ser traçada, mas as religiões ultrapassavam-na muito, para prejuízo seu. As pessoas não eram idiotas, disse. No dia anterior à sua morte, quando estava a pôr os seus assuntos em ordem, Rankin pai mandou informar Joss de que nunca mais lhe queria pôr os olhos em cima. Ao mesmo tempo, Joss começou a pregar que a ciência também não possuía todas as soluções. Encontrava incoerências na teoria da evolução. Os cientistas limitavam-se a varrer para debaixo do tapete as descobertas embaraçosas, os fatos que não se ajustavam, dizia. Eles sabem tanto que a Terra tem 4,6 mil milhões de anos como o arcebispo Ussher sabia que ela tinha seis mil anos. Ninguém vira a evolução acontecer, ninguém estivera a registrar o tempo desde a Criação. («Duzentos milhões de trilhões de Mississipis…», imaginou uma vez o paciente verificador do tempo a entoar, enquanto contava os segundos desde a origem do mundo.) E a teoria da relatividade de Einstein também não estava provada. Não se podia viajar mais depressa do que a luz, fosse de que maneira fosse, dissera Einstein. Como podia ele saber? Até que ponto se aproximara ele da velocidade da luz? A relatividade era apenas uma maneira de compreender o mundo. Einstein não podia restringir o que a espécie humana seria capaz de fazer no futuro longínquo. E Einstein não podia, com certeza, estabelecer limites ao que Deus era capaz de fazer. Deus não poderia viajar mais rapidamente do que a luz, se Ele quisesse? Deus não poderia fazer-nos viajar mais rapidamente do que a luz, se Ele quisesse? Havia excessos na ciência e havia excessos na religião. Um homem razoável não podia ser coagido por qualquer delas. Havia muitas interpretações das Escrituras e muitas interpretações do mundo natural. Ambas as coisas tinham sido criadas por Deus; logo, ambas deviam ser mutuamente coerentes. Onde quer que parece existir uma discrepância, isso significa que ou um cientista ou um teólogo — talvez ambos — não fizeram o seu trabalho bem feito: Palmer Joss combinava a sua crítica imparcial da ciência e da religião com um apelo fervoroso à retidão moral e um respeito pela inteligência do seu rebanho. Por fases lentas, foi conquistando reputação nacional. Em debates sobre o ensino e «criacionismo científico» nas escolas, sobre o status ético do aborto e de embriões congelados, sobre a admissibilidade da engenharia genética, tentava à sua maneira seguir uma rota média, conciliar caricaturas da ciência e da religião. Ambos os campos contendores ficavam indignados com as suas intervenções e a sua popularidade aumentava. Tornou-se confidente de presidentes. Excertos dos seus sermões apareciam nas páginas de «Op Ed.» de importantes jornais seculares. Mas ele resistia a muitos convites e a algumas ofertas blandiciosas para fundar uma igreja eletrônica. Continuou a viver simplesmente e raramente — a não ser para aceitar convites presidenciais ou comparecer a congressos ecumênicos — saía do Sul rural. Tirando um patriotismo convencional, tinha por norma não se intrometer na política. Num campo cheio de candidatos competidores entre si, muitos de duvidosa probidade, Palmer Joss tornou-se, em erudição e autoridade moral, o pregador fundamentalista cristão preeminente do seu tempo. Der Heer perguntara se podiam jantar tranqüilamente em qualquer lado. Chegaria de avião para a sessão sumária com Vaygay e a delegação soviética sobre os mais recentes progressos na interpretação da Mensagem. Mas o Novo México meridional-central estava a rebentar pelas costuras com a imprensa mundial e num raio de mais de cem quilômetros não havia nenhum restaurante onde pudessem falar sem serem observados nem escutados. Por isso, ela própria fez o jantar no seu modesto apartamento, próximo das instalações dos cientistas visitantes na instalação Argus. Havia muito de que falar. Às vezes, parecia que a sorte de todo o projeto estava suspensa de um fio presidencial. Mas o pequeno estremecimento de antecipação que sentiu mesmo antes da chegada de Ken foi ocasionado, como vagamente se apercebeu, por mais do que isso. Joss não era exatamente «serviço» e, assim, acabaram por falar dele enquanto metiam os pratos na máquina de lavar louça. — O homem está varado de medo — disse Ellie. A sua perspectiva é estreita. Imagina que a Mensagem vai ser exegese bíblica inaceitável ou qualquer coisa que abale a sua fé. Não faz idéia nenhuma do modo como um novo paradigma científico subordina o anterior. Quer saber o que a ciência fez por ele ultimamente. E é considerado a voz da razão. — Comparado com os Quiliastas do Juízo Final e os Earth-Firsters, Palmer Joss é a alma da moderação — respondeu Der Heer. — Talvez nós não tenhamos explicado os métodos da ciência tão bem como deveríamos. Hoje em dia preocupo-me muito com isso. E, Ellie, pode ter realmente a certeza de que não se trata de uma mensagem de… — De Deus ou do Demônio? Ken, não está a falar a sério. — Bem, e quanto a seres avançados empenhados naquilo a que nós poderíamos chamar bem ou mal, que alguém como Joss consideraria indistinguível de Deus ou do Demônio? — Ken, quem quer que estes seres do sistema Vega sejam, garanto-lhe que não criaram o universo. E não são nada como o Deus do Antigo Testamento. Não se esqueça de que Vega, o Sol e todas as outras estrelas da vizinhança solar se encontram nalgum lugar atrasado de uma galáxia absolutamente enfadonha. Por que haveria Eu Sou Aquele Que Sou de se fixar por aqui? Deve ter coisas mais prementes que fazer. — Ellie, estamos numa alhada. Sabe que Joss é muito influente. Tem sido íntimo de três presidentes, incluindo a atual. Esta está inclinada a fazer uma certa concessão a Joss, embora eu não pense que queira colocá-lo e a um grupo de outros pregadores na Comissão Preliminar de Decifração, consigo, Valerian e Drumlin — para não falar de Vaygay e dos seus colegas. É difícil imaginar os Russos a concordarem com sacerdotes fundamentalistas na Comissão. Podia ser o suficiente para estragar tudo. Por isso, por que não vamos falar com ele? A presidente diz que Joss se sente verdadeiramente fascinado pela ciência. E se conseguíssemos conquistá-lo para o nosso lado, hem? — Nós vamos converter Palmer Joss? — Não estou a pensar em fazê-lo mudar a sua religião. Façamo-lo apenas compreender o que Argus é, que não teremos de responder à Mensagem se não gostarmos do que disser, que as distâncias interestelares nos isolam de Vega. — Ken, ele não acredita sequer que a velocidade da luz é uma velocidade cósmica limite. Será uma conversa de surdos. Além disso, tenho uma longa história de desaires no tocante a acomodar-me com as religiões convencionais. Tenho tendência para perder a tramontana com as suas incoerências e hipocrisias. Não tenho a certeza de que um encontro entre Joss e mim seja o que você queira. Ou a presidente. — Ellie, eu sei em quem colocaria o meu dinheiro. Não vejo como encontrar-se com Joss possa tornar as coisas muito piores. Ela dignou-se retribuir o seu sorriso. Com os navios rastreadores agora nos sítios devidos e alguns pequenos, mas adequados, radiotelescópios instalados em lugares como Reykjavik e Jacarta, havia uma cobertura redundante do sinal de Vega em todas as faixas de longitude. Estava marcada para Paris uma conferência importante de todo o Consórcio Mundial da Mensagem. A fim de a preparar, era natural que as nações com a maior fração de dados efetuassem uma discussão científica preliminar. Tinham estado reunidos durante a maior parte de quatro dias, e aquela sessão sumária destinava-se principalmente a pôr em dia aqueles que, como Der Heer, serviam como intermediários entre os cientistas e os políticos. A delegação soviética, embora nominalmente chefiada por Lunacharsky, incluía diversos cientistas e técnicos de igual distinção. Entre eles encontravam-se Genrikh Arkhangelsky, recentemente nomeado chefe do consórcio espacial internacional dirigido pelos Soviéticos e chamado Intercosmo, e Timofei Gotsridze, inscrito como ministro da Indústria Meio Pesada e membro do Comitê Central. Era evidente que Vaygay se sentia sob pressões fora do comum; recomeçara a fumar em cadeia. Segurava o cigarro entre o polegar e o indicador, com a palma da mão virada para cima, enquanto falava: — Concordo que há sobreposição adequada em longitude, mas continuo preocupado quanto a redundância. Uma falha no liquefator de hélio a bordo do Marshal Nedelin ou uma falta de corrente em Reykjavik, e a continuidade da Mensagem fica em risco. Suponham que a Mensagem demora dois anos a regressar ao princípio. Se nos escapar um bocado, teremos de esperar mais dois anos para preencher a lacuna. E, lembrem-se, não sabemos se a Mensagem será repetida. Se não houver repetição, as lacunas nunca serão preenchidas. Acho que precisamos de planejar até para possibilidades improváveis. — Em que está a pensar? — perguntou Der Heer. — Alguma coisa como geradores de emergência para todos os observatórios do Consórcio? — Sim, e amplificadores, espectrômetros, autocorreladores, impulsionadores de discos, etc., independentes para cada observatório. E quaisquer previdências para o transporte aéreo rápido de hélio líquido para observatórios distantes, se necessário. — Concorda, Ellie? — Absolutamente. — Mais alguma coisa? — Acho que devíamos continuar a observar Vega numa faixa muito larga de freqüências — respondeu Vaygay. — Talvez amanhã chegue uma mensagem diferente através de apenas uma das freqüências da Mensagem. Devíamos também monitorizar outras regiões do céu. Talvez a chave da Mensagem não venha de Vega, mas de qualquer outro lado… — Deixem-me explicar porque motivo penso que a questão posta por Vaygay é importante — interveio Valerian. — Este é um momento único, uma ocasião em que estamos a receber uma mensagem, mas não fizemos progresso absolutamente nenhum na sua decifração. Não temos qualquer experiência prévia de casos desta natureza. Precisamos de cobrir todas as bases. Não queremos acabar, daqui a um ano ou dois, aos pontapés a nós próprios porque nos esquecemos de tomar qualquer precaução simples ou deixamos escapar qualquer simples medição. A idéia de que a Mensagem reciclará, voltará atrás por si mesma, é a mais mera das suposições. Tanto quanto possamos ver, não há na própria Mensagem nada que prometa uma reciclagem. Quaisquer oportunidades perdidas agora podem ser perdidas para sempre. Também concordo que é necessário fazer mais desenvolvimento instrumental. Por tudo quanto sabemos, o palimpsesto pode ter uma quarta camada. — Há também a questão do pessoal — continuou Vaygay. — Suponham que esta mensagem continua não durante um ano ou dois, mas sim durante décadas. Ou então que esta é apenas a primeira de uma longa série de mensagens de todos os pontos do céu. Em todo o mundo há, no máximo, uns poucos centos de radioastrônomos verdadeiramente competentes. É um número muito pequeno quando as paradas são tão altas. Os países industrializados devem começar a produzir muitos mais radioastrônomos e radioengenheiros com treino de primeira classe. Ellie reparou que Gotsridze, que falara pouco, estava a tomar apontamentos pormenorizados. Ficou mais uma vez surpreendida com o fato de os Soviéticos serem muito mais conhecedores do inglês do que os Americanos do russo. Nos inícios do século, cientistas de todo o mundo falavam — ou pelo menos liam — alemão. Antes disso fora francês e antes latim. Dentro de outro século, talvez houvesse outra língua científica obrigatória: o chinês, porventura. De momento era o inglês, e cientistas de todo o planeta esforçavam-se para aprender as suas ambigüidades e irregularidades. Acendendo um novo cigarro na ponta incandescente do anterior, Vaygay continuou: — Há alguma coisa mais a dizer. Trata-se apenas de especulação. Nem sequer é tão plausível como a idéia de que a Mensagem reciclará por si mesma — o que, como o professor Valerian sublinhou muito apropriadamente, é apenas uma suposição. Em circunstâncias normais, eu não mencionaria uma idéia tão especulativa numa fase tão inicial. Mas, se a especulação é acertada, há certas outras ações em que temos de começar a pensar imediatamente. Eu não teria a coragem de levantar esta possibilidade se o acadêmico Arkhangelsky não tivesse chegado hesitantemente à mesma conclusão. Ele e eu temos discordado a respeito da quantização dos desvios para vermelho de quasars, da explicação das fontes de luz superluminais, da massa em repouso dos neutrinos, da física quark em estrelas de nêutrons… Temos tido muitas discordâncias. Devo admitir que algumas vezes ele tem tido razão e outras tenho tido eu. Parece-me que quase nunca concordamos no estádio especulativo inicial de um assunto. Mas neste estamos de acordo. «Genrikh Dmitch, quer explicar?» Arkhangelsky pareceu tolerante, até mesmo divertido. Ele e Lunacharsky andavam havia anos empenhados numa rivalidade pessoal, em calorosas disputas científicas e numa famosa controvérsia sobre o nível prudente de apoio a dar à investigação soviética da fusão. — Supomos — declarou — que a Mensagem são as instruções para a construção de uma máquina. Claro que não possuímos nenhum conhecimento quanto à maneira de decifrar a Mensagem. A evidência está em referências internas. Dou-lhes um exemplo. Aqui na página quinze mil quatrocentos e quarenta e um está uma referência clara a uma página anterior, a treze mil e noventa e sete, que, por sorte, também temos. A última página foi recebida aqui no Novo México; a primeira, no nosso observatório perto de Tashkent. Na página treze mil e noventa e sete há outra referência, esta a um período em que não estávamos a cobrir todas as longitudes. Há muitos casos deste tipo de retrorreferência. Em geral, e este é o ponto importante, há instruções complicadas numa página recente, mas instruções mais simples numa página anterior. Num caso há oito citações a material anterior numa única página. — Isso não é um argumento muitíssimo convincente, rapazes — respondeu Ellie. — Talvez seja um conjunto de exercícios matemáticos em que os recentes se baseiam nos anteriores. Talvez seja um comprido romance — eles podem ter períodos de vida muito extensos comparados com os nossos — em que certos acontecimentos são relacionados com experiências da infância, ou seja lá o que for que têm em Vega quando são novos. Talvez seja um manual religioso cheio de contra-referências herméticas. — Os Dez Milhares de Milhões de Mandamentos — comentou Der Heer, risonho. — Talvez — admitiu Lunacharsky, a olhar fixamente pela janela para os telescópios, através de uma nuvem de fumo. Os engenhos pareciam fitar anelantemente o céu. — Mas, quando observar os padrões das contra-referências, creio que concordará que parecem mais o manual de instruções para a construção de uma máquina. Sabe Deus o que ela estará destinada a fazer. CAPÍTULO IX O numinoso O maravilhoso é a base da adoração.      THOMAS CARLYLE. Sartor Resartus (1833-34) Sustento que o sentimento religioso cósmico é o mais forte e o mais nobre motivo para a investigação científica.      ALBERT EINSTEIN. Ideas and Opinions (1954) Lembrava-se do momento exato em que, numa das muitas viagens a Washington, descobrira que se estava a apaixonar por Ken Der Heer. As negociações para o encontro com Palmer Joss pareciam nunca mais acabar. Aparentemente, Joss mostrava-se relutante em visitar as instalações Argus; era a impiedade dos cientistas, e não a sua interpretação da Mensagem, que o interessava, dizia agora. E para sondar o caráter deles era necessário um terreno mais neutro. Ellie estava disposta a ir a qualquer lado e um assistente especial da presidente estava a negociar esse aspecto do problema. Não iriam outros radioastrônomos; a presidente queria que fosse só Ellie. Ela aguardava também o dia, ainda a algumas semanas de distância, em que voaria para Paris, para a primeira reunião plenária do Consórcio Mundial da Mensagem. Ela e Vaygay estavam a coordenar o programa de recolha global de dados. A aquisição de sinais tornara-se entretanto relativamente rotineira e em meses recentes não houvera nem uma lacuna na cobertura. Assim, verificou com certa surpresa que dispunha de algum tempo livre. Jurou que teria uma longa conversa com a mãe e que se mostraria cortês e amigável fossem quais fossem as provocações. Havia uma quantidade absurda de papelada atrasada e correio eletrônico para passar em revista, não apenas felicitações e críticas de colegas, mas também admoestações religiosas, especulações pseudocientíficas sugeridas com grande confiança e correio de fãs de todo o mundo. Havia meses que não lia The Astrophysical Journal, embora fosse a primeira autora de um ensaio muito recente que era, com certeza, o artigo mais extraordinário jamais aparecido naquela augusta publicação. O sinal de Vega era tão forte que muitos amadores — cansados de radioamadorismo — tinham começado a construir os seus próprios pequenos radiotelescópios e analisadores de sinais. Nas primeiras fases da recepção da Mensagem tinham fornecido alguns dados úteis e Ellie ainda se via assediada por amadores que julgavam ter recebido qualquer coisa desconhecida dos profissionais da SETI. Sentia-se na obrigação de escrever cartas encorajadoras. Havia nas instalações outros meritórios programas de radioastronomia — a observação de quasars, por exemplo — que precisavam de atenção. Mas, em vez de fazer todas essas coisas, dava consigo a passar quase todo o seu tempo com Ken. Era, claro, sua obrigação esclarecer o conselheiro científico da presidente a respeito do Projeto Argus, tão profundamente quanto ele desejasse. Era importante que a presidente fosse completa e competentemente informada. Desejava que os dirigentes de outras nações fossem tão minuciosamente informados das descobertas de Vega quanto a presidente dos Estados Unidos da América. Esta, embora sem treino científico, gostava sinceramente da matéria e estava disposta a apoiar a ciência não só pelos seus benefícios práticos, mas também, pelo menos um bocadinho, pela alegria de saber. Isto acontecera com poucos presidentes americanos depois de James Madison e John Quincy Adams. No entanto, era extraordinária a quantidade de tempo que Der Heer conseguia passar em Argus. Todos os dias dedicava uma hora ou mais a comunicações empasteladas em alta passa-banda com o seu Gabinete de Política Científica e tecnológica no Old Executive Office Building, em Washington. Mas o resto do tempo, tanto quanto ela conseguia entender, andava simplesmente… por ali. Bisbilhotava nas entranhas do sistema de computadores ou visitava telescópios individuais. Às vezes, acompanhava-o um assistente de Washington; mais freqüentemente, estava sozinho. Ela via-o através da porta aberta do gabinete disponível que lhe tinham destinado, com os pés apoiados na secretária, a ler algum relatório ou a telefonar. Ele acenava-lhe alegremente com a mão e voltava ao seu trabalho. Às vezes, casualmente, encontrava-o com Drumlin ou Valerian; mas também o encontrava com técnicos de nível inferior e com o pessoal do secretariado, que mais de uma vez o classificara, dentro do alcance auditivo de Ellie, de encantador. Der Heer também tinha muitas perguntas para fazer a ela. Ao princípio, eram puramente técnicas e programáticas, mas não tardaram alargar-se a planos de uma grande variedade de concebíveis eventos futuros e depois a especulação desenfreada. Presentemente, quase parecia que a discussão do projeto era apenas um pretexto para passarem um pouco de tempo juntos. Numa bela tarde, em Washington, a presidente teve de adiar uma reunião do Grupo de Trabalho de Contingência Especial por causa da crise Tyrone Free. Após um vôo noturno do Novo México para ali, Ellie e Der Heer tinham ficado com algumas horas livres e decidido visitar o Memorial do Vietnam, concebido por Maya Ying Lin quando ainda era estudante subgraduada de Arquitetura em Yale. Entre as lembranças dolorosas e tristes de uma guerra estúpida, Der Heer parecia despropositadamente bem-disposto e Ellie recomeçou a especular quanto à existência de defeitos no seu caráter. Um par de funcionários da segurança da Central Service Administration, à paisana e com auscultadores cor de carne, feitos por encomenda, seguia-os discretamente. Der Heer convencera uma bonita lagarta azul a trepar para um galho fino e ela ia avançando desembaraçadamente, com o corpo iridescente ondulando ao ritmo do movimento de catorze pares de patas. Chegada ao fim do galho, segurou-se com os cinco últimos segmentos e fustigou o ar numa corajosa tentativa para encontrar um novo poleiro. Não o conseguindo, virou-se para trás sem se atrapalhar e voltou a percorrer em sentido inverso os muitos passos dados. Então, Der Heer modificou a maneira como segurava o galho, de modo que, quando a lagarta voltou ao ponto de partida, não havia de novo nenhum lado para onde ir. Como um mamífero carnívoro enjaulado, a lagarta andou muitas vezes para trás e para diante, mas, pareceu a Ellie, com crescente resignação nas últimas idas e vindas. Começava a sentir pena da pobre criatura, apesar de ela poder ser, por exemplo, a larva causadora da ferrugem da cevada. — Que programa maravilhoso existe na cabeça deste bichinho! — exclamou ele. — Funciona todas as vezes: software de fuga ótimo. E sabe como proceder para não cair. Quero dizer, o galho está efetivamente suspenso no ar. A lagarta nunca experimenta isso na natureza, porque os galhos por onde anda estão sempre presos a qualquer coisa. Ellie, alguma vez pensou que sensação lhe causaria se esse programa estivesse na sua cabeça? Isto é, parecer-lhe-ia simplesmente óbvio o que tinha de fazer quando chegava ao fim de um galho? Teria a impressão de que estava a pensar na maneira de resolver o assunto? Sentiria admiração por saber agitar as dez patas da frente no ar, mas agarrar-se com força com as outras dezoito? Ela inclinou a cabeça para a frente e observou-o, a ele, e não à lagarta. Der Heer parecia ter pouca dificuldade em imaginá-la como um inseto. Tentou responder-lhe desapaixonadamente, recordando a si mesma que, para ele, aquilo devia ser uma questão de interesse profissional. — Que lhe vai fazer agora? — Voltar a colocá-la na relva, acho. Que outra coisa lhe faria você? — Algumas pessoas poderiam matá-la. — É difícil matar uma criatura depois de ela nos deixar ver a sua percepção — respondeu, enquanto continuava a transportar o galho e a larva. Caminharam um bocado em silêncio, passando por quase cinqüenta e cinco mil nomes gravados em granito preto-brilhante. — Todo o Governo que se prepara para a guerra pinta os seus adversários como monstros — observou Ellie. — Não quer que pensemos no outro lado como humano. Se o inimigo é capaz de sentir e pensar, nós podemos hesitar em matá-lo. E matar é muito importante. É melhor vê-los como monstros. — Olhe para esta beleza — pediu ele, passado um momento. — Olhe bem, com atenção. Ela assim fez. Contendo um pequeno estremecimento de repugnância, tentou ver o bicho através dos olhos dele. — Repare no que faz — continuou Der Heer. — Se fosse tão grande como você ou eu, assustaria mortalmente toda a gente. Seria um monstro genuíno, não é verdade? Mas é pequenino. Come folhas, mete-se na sua vida e acrescenta um pouco de beleza ao mundo. Ela pegou na mão que não estava ocupada com a lagarta e caminharam em silêncio pelas séries de nomes, inscritos por ordem cronológica da morte. Eram, evidentemente, apenas as baixas americanas. A não ser nos corações das suas famílias e dos seus amigos, não havia em parte alguma do mundo nenhum memorial comparável em honra dos dois milhões de pessoas do Sudeste asiático que também tinham morrido no conflito. Na América, o comentário público mais comum acerca daquela guerra referia-se a mutilação política do poder militar, psicologicamente coincidente pensava ela, com a explicação da «punhalada nas costas» dada pelos militaristas alemães para justificar a sua derrota na primeira Guerra Mundial. A guerra do Vietnam era uma pústula na consciência nacional, um abscesso que até agora nenhum presidente tivera a coragem de lancetar. (A política subseqüente da República Democrática do Vietnam não facilitara essa tarefa.) Lembrou-se de como era comum os soldados americanos chamarem aos seus adversários vietnamitas gooks[4 - Além de termo de calão para significar uma substância suja, viscosa, repugnante, gook passou a ser uma maneira pejorativa de dizer «oriental», principalmente depois das guerras da Coreia e do Vietname. (N. da T.)], «cabeças de funil», «olhos em bico» e pior. Conseguiríamos avir-nos com a fase seguinte da história humana sem primeiro perdermos aquele pendor de desumanizar o adversário? Nas conversas do dia-a-dia, Der Heer não falava como um acadêmico. Quem o encontrasse no quiosque de jornais da esquina a comprar um jornal nunca imaginaria que ele era um cientista. Não perdera o seu sotaque das ruas de Nova Iorque. Ao princípio, a aparente incongruência entre a sua linguagem e a qualidade do seu trabalho científico pareceu divertida aos seus colegas. Mas, à medida que o seu trabalho de investigação e o próprio homem se tornaram melhor conhecidos, o seu sotaque tornou-se meramente idiossincrático. No entanto, a sua maneira de pronunciar, por exemplo, «trifosfato de guanosina» parecia dar a esta benigna molécula propriedades explosivas. Tinham levado tempo a perceber que estavam a apaixonar-se, embora isso devesse ter sido aparente para muitos outros. Poucas semanas antes, quando Lunacharsky ainda estava em Argus, lançara-se numa das suas tiradas ocasionais sobre a irracionalidade da língua. Desta vez calhou ao inglês americano. — Ellie, por que dizem vocês make the same mistake again[5 - Cometer o mesmo erro outra vez. (N. da T.)]? Que acrescenta again à frase? E tenho razão ao supor que burn up e burn down significam a mesma coisa[6 - As duas formas significam «queimar», embora o burn down tenha talvez um pouco mais de força, signifique «destruir», «arrasar pelo fogo» (N. da T.)]? Sendo assim, se screze up é aceitável, por que não screze down[7 - To screze, simplesmente, é «aparafusar», «atarraxar», etc. Com a partícula up passa a ser um termo de calão: «lixar» ou, pior, «copular» etc. Não se emprega, de fato, a partícula down (N. da T.)]? Ellie acenou, fatigada. Ouvira-o mais de uma vez queixar-se aos seus colegas soviéticos das incoerências da língua russa e tinha a certeza de que ouviria uma versão francesa de tudo aquilo na conferência de Paris. Agradava-lhe admitir que as línguas possuíam impropriedades, mas tinham tantas origens e evoluíam como reação a tantas pequenas pressões que seria de surpreender se fossem perfeitamente coerentes e internamente consistentes. Vaygay divertia-se tanto a reclamar, porém, que ela não tinha, de um modo geral, coragem de discutir com ele. — E reparem nesta frase: head over heels in love[8 - Traduzido literalmente, é estar de «cabeça sobre os pés de amor», mas significa «loucamente apaixonado», «perdido de amor», «doido de amor», etc. Head over heels, somente, também significa «rolar às cambalhotas».. (N. da T.)] continuou. — É uma expressão corrente, não é? Mas está absolutamente às avessas. Ou, melhor, de cima para baixo. Nós estamos geralmente com a cabeça sobre os pés. Quando estamos apaixonados, devemos estar com os pés sobre a cabeça. Não tenho razão? Você deve ser entendida em apaixonar-se. Mas quem inventou esta frase não percebia nada de amor. Imaginou que uma pessoa anda da maneira habitual, em vez de flutuar de cabeça para baixo no ar, como a obra daquele pintor francês… como se chama ele? — Era russo — respondeu ela. Marc Chaal proporcionara uma estreita vereda para sair de um matagal conversacional um tanto ou quanto constrangedor. Depois Ellie perguntara-se se Vaygay estivera a arreliá-la ou a sondá-la, em busca de uma resposta. Talvez ele tivesse apenas pressentido inconscientemente o laço crescente entre ela e Der Heer. Pelo menos parte da relutância de Der Heer era evidente. Ali estava ele, conselheiro científico da presidente, a dedicar uma enorme quantidade de tempo a uma matéria sem precedentes, delicada e volátil. Envolver-se emocionalmente com uma das principais pessoas do projeto era arriscado. A presidente queria com certeza a sua opinião íntegra, sem nada que a prejudicasse. Ele precisava de ser capaz de recomendar vias de ação de que Ellie discordava e de aconselhar a rejeição de opções que ela apoiava. Apaixonar-se por Ellie comprometeria de certo modo a eficiência de Der Heer. Para Ellie era mais complicado. Antes de ter adquirido a respeitabilidade, de certo modo sóbria, da diretoria de um importante observatório de rádio, tivera muitos parceiros. Embora se tivesse sentido apaixonada e tal se declarasse, o casamento nunca a tentara seriamente. Recordou vagamente a quadra — era de William Butler Yeats? — com a qual tentara tranqüilizar os seus antigos enamorados de coração despedaçado porque, como sempre, ela decidira que o romance acabara: Dizes que não há amor, meu amor, A não ser que dure eternamente. Que tolice, há episódios Muito melhores do que a peça! Lembrou como John Staughton fora encantador para ela enquanto lhe cortejava a mãe e com que facilidade abandonara essa pose depois de se tornar seu padrasto. Depois de casarmos com eles, podia revelar-se nos homens uma nova e monstruosa persona, até então escassamente vislumbrada. As suas predisposições românticas tornavam-na vulnerável, pensava. Não ia repetir o erro da mãe. Um pouco mais fundo existia um medo de se apaixonar sem reservas, de se devotar a alguém que pudesse depois ser-lhe arrancado. Ou simplesmente deixá-la. Mas, se nunca nos apaixonamos verdadeiramente, nunca podemos sentir verdadeiramente a falta disso. (Não perdeu tempo a aprofundar este sentimento, com a vaga consciência de que não soava completamente genuíno.) Aliás, se nunca se apaixonasse verdadeiramente por alguém, também nunca poderia atraiçoá-lo verdadeiramente, como no âmago do seu ser sentia que a mãe atraiçoara o pai, havia tanto tempo morto. Ainda tinha terríveis saudades dele. Com Ken parecia ser diferente. Ou teriam as suas esperanças ficado gradualmente comprometidas ao longo dos anos? Ao contrário de muitos outros homens de que se lembrava, quando provocado ou sob tensão, Ken revelava uma faceta mais branda, mais compassiva. A sua tendência para o compromisso e a sua perícia em política científica faziam parte das aptidões exigidas pelas suas funções; mas ela sentia que por baixo vislumbrara algo sólido. Respeitava-o pelo modo como integrara a ciência no todo da sua vida e pelo corajoso apoio à ciência que tentara inculcar em duas administrações. Tinham, o mais discretamente possível, estado mais ou menos juntos no pequeno apartamento dela em Argus. As suas conversas eram uma alegria, com idéias a voar de um lado para o outro como volantes. Às vezes, respondiam aos pensamentos incompletos um do outro com uma presciência quase perfeita. Ele era um amante atencioso e inventivo. E, de qualquer maneira, ela gostava dos seus feronones. Às vezes, ficava estupefata com o que era capaz de fazer e dizer na presença dele, por causa do seu amor. Chegou a admirá-lo tanto que o seu amor por ela afetava a própria estima que sentia por si mesma: gostava melhor de si por causa dele. E, como Ken sentia claramente o mesmo, havia uma espécie de retorno infinito de amor e respeito subjacente ao seu relacionamento. Pelo menos, era assim que ela o descrevia a si própria. Na presença de muitos dos seus amigos sentira uma subcorrente de solidão. Com Ken desaparecera. Sentia-se bem a descrever-lhe os seus devaneios, fragmentos de recordações, constrangimentos da infância. E ele não se mostrava simplesmente interessado, mas sim fascinado. Interrogava-a horas a fio acerca da sua infância. As suas perguntas eram sempre francas, algumas vezes exploratórias, mas sem exceção, bondosas. Ela começou a compreender por que motivo os namorados falam como bebês um com o outro. Não havia nenhuma outra maneira socialmente aceitável de as crianças existentes dentro dela poderem sair cá para fora. Se a pessoa de um ano, a de cinco anos, a de doze anos e a de vinte e um anos encontram, todas, personalidades compatíveis no amado, existe uma genuína possibilidade de manter felizes todas essas subpersonas. O amor põe fim à sua prolongada solidão. Talvez a profundidade do amor possa ser avaliada pelo número de diferentes «eus» ativamente envolvidos num dado relacionamento. Parecia que, com os seus anteriores parceiros, no máximo um desses «eus» conseguia encontrar um número oposto compatível; as outras personas eram parasitas amuados. No fim-de-semana antes do encontro marcado com Joss estavam deitados na cama, com o sol do fim da tarde, que as fendas das gelosias deixavam entrar, a desenhar padrões nos seus corpos enlaçados. — Numa conversa normal — dizia ela — posso falar do meu pai sem sentir mais do que… uma leve punhalada de perda. Mas, se me permito lembrar-me realmente dele — do seu sentido do humor, por exemplo, ou daquela… apaixonada lealdade —, então a fachada desmorona-se e apetece-me chorar porque ele partiu. — Não admira; a linguagem pode libertar-nos de sentir, ou quase — respondeu Der Heer, a afagar-lhe o ombro. — Talvez essa seja uma das suas funções, para que possamos compreender o mundo sem sermos totalmente avassalados por ele. — Sendo assim, então a invenção da linguagem não é apenas uma bênção. Sabes, Ken, daria tudo — refiro-me realmente a tudo quanto tenho — se pudesse passar apenas alguns minutos com o meu Paizinho. Imaginou um céu com todas aquelas boas mãezinhas e todos aqueles bons paizinhos a flutuar ou a voar para uma nuvem próxima. Teria de ser um lugar espaçoso para acomodar todas as dezenas de milhares de milhões de pessoas que tinham vivido e morrido desde a emergência da espécie humana. Era capaz de estar muito cheio, pensou, a não ser que o Céu religioso fosse construído numa escala mais ou menos parecida com a do céu astronômico. Assim, haveria espaço de sobra. — Deve haver um número qualquer — disse — capaz de medir a população total de seres inteligentes da Via Láctea. Quantos calculas que sejam? Se há um milhão de civilizações, cada uma com cerca de mil milhões de indivíduos, isso é… hum… dez à décima quinta potência de seres inteligentes. Mas se a maioria deles é mais avançada do que nós, talvez a idéia de indivíduos se torne inapropriada; talvez isso seja apenas outro chauvinismo da Terra. — Decerto. E então podes calcular a taxa de produção galáctica de Gauloises, Twinkies, sedans Volga e comunicadores Sony de bolso. Assim poderíamos calcular o produto galáctico bruto. Uma vez possuidores desse dado, poderíamos dedicar-nos ao cálculo do produto cósmico… — Estás a troçar de mim — interrompeu ela, com um sorriso meigo, nada aborrecida. — Mas pensa em tais números. Quero dizer, pensa realmente neles. Todos esses planetas com todos esses seres mais avançados do que nós. Não sentes uma espécie de excitação ao pensar nisso? Adivinhou o que ele estava a pensar, mas apressou-se a prosseguir: — Olha, vê isto. Tenho estado a ler, para o encontro com Joss. Estendeu a mão para a mesa-de-cabeceira, onde estava o volume dezesseis de uma antiga Encyclopaedia Britannica Macropaedia, com o título de «rubens a Somália», e abriu-o numa página marcada com um printout de computador. Apontou para um artigo chamado «Sagrado ou Santo». — Os teólogos parecem ter reconhecido um aspecto especial, não-racional — não lhe chamaria irracional — do sentimento de sagrado ou santo. Chamam-lhe «numinoso». O termo foi utilizado pela primeira vez por… deixa ver… alguém chamado Rudolph Otto num livro de 1923, A Idéia do Sagrado. Ele acreditava que os humanos tinham predisposição para detectar e reverenciar o numinoso. Chama-lhe o misterium tremendum. Até o meu latim é suficiente para compreender o significado da expressão. «Na presença do misterium tremendum, as pessoas sentem-se absolutamente insignificantes, mas, se bem interpreto, não pessoalmente alienadas. O autor pensava no numinoso como uma coisa «inteiramente outra» e na reação humana a ele como «espanto absoluto». Ora, se é disso que as pessoas religiosas falam quando utilizam palavras como «sagrado» ou «santo», estou com elas. Senti algo parecido só por esperar escutar um sinal, quanto mais por recebê-lo de fato. Penso que toda a ciência elicia esse sentimento de temor. «Agora escuta isto — e leu o texto: Ao longo das últimas centenas de anos, um número de filósofos e cientistas sociais afirmaram o desaparecimento do sagrado e predisseram a morte da religião. Um escudo da história das religiões mostra que as formas religiosas mudam e que nunca existiu unanimidade sobre a natureza e a expressão da religião. Se ou não o homem… «Os sexistas também escrevem e compilam artigos religiosos, claro. — Voltou ao texto: Se ou não o homem se encontra agora numa situação nova para desenvolver estruturas de valores supremos radicalmente diferentes daqueles dados na percepção tradicionalmente afirmada do sagrado é uma questão vital. — E então? — Então penso que as religiões burocráticas tentam institucionalizar a nossa percepção do numinoso em vez de fornecerem os meios para que possamos apreender o numinoso diretamente — como se se olhasse através de um telescópio de seis polegadas. Se pressentir o numinoso está no cerne da religião, quem dirias que é mais religioso: as pessoas que seguem as religiões burocráticas ou as que ensinam ciência a si próprias? — Vejamos se percebi bem — redargüiu ele, utilizando uma frase dela, de que se apropriara. — Está uma indolente tarde de sábado e este casal está deitado nu na cama a ler a Encyclopaedia Brittanica um ao outro e a discutir se a Galáxia da Andrômeda é mais «numinosa», do que a Ressurreição. Sabem ou não passar um bom bocado? PARTE II A MÁQUINA O Preletor Todo-Poderoso, ao dispor os princípios da ciência na estrutura do universo, convidou o homem a estudar e a imitar. É como se ele tivesse dito aos habitantes deste globo a que chamamos nosso: «Fiz uma terra para o homem habitar nela e tornei visível o firmamento estrelado para lhe ensinar ciência e as artes. Ele pode agora prover ao seu próprio conforto e aprender com a minha munificência para todos a ser generoso com os outros.»      THOMAS PAINE. The Age of Reason (1791) CAPÍTULO X Precessão dos equinócios Estaremos nós, ao defender que os deuses existem, a enganar-nos com sonhos e mentiras insubstanciais, enquanto somente a sorte e a mudança descuidadas e ocasionais controlam o mundo?      EURÍPIDES. Hecuba Foi estranha a maneira como as coisas aconteceram. Ela imaginara que Palmer Joss iria às instalações Argus, observaria o sinal a ser recebido pelos radiotelescópios e prestaria atenção à imensa sala cheia de fitas magnéticas e discos em que estavam armazenados os dados de muitos meses passados. Faria algumas perguntas científicas e depois examinaria, na sua multiplicidade de zeros e uns, algumas das resmas de printouts de computadores contendo a Mensagem ainda incompreensível. Não imaginara que iria passar horas a discutir filosofia ou teologia. Mas Joss recusara-se a ir a Argus. Não eram fitas magnéticas que queria examinar, disse, era o caráter humano. Peter Valerian teria sido ideal para essa discussão: despretensioso, capaz de comunicar claramente e escorado por uma genuína fé cristã, em que diariamente se empenhava. Mas, aparentemente, a presidente vetara essa idéia, quisera uma pequena reunião e pedira explicitamente que Ellie assistisse. Joss insistira em que a discussão fosse travada ali, no Bib e Science Research Institute and Museum, em Modesto, Califórnia. Ela olhou para além de Der Heer e através da divisória de vidro que separava a biblioteca da área de exposição. Logo à entrada havia um molde em gesso de uma pedra de arenito do mar Vermelho com pegadas de dinossauro intercaladas com outras de um pedestre de sandálias, provando, segundo dizia a legenda, que homem e dinossauro foram contemporâneos, pelo menos no Texas. Pareciam estar também implicados sapateiros mesozóicos. A conclusão tirada na legenda era que a evolução não passava de uma mentira. A opinião de muitos paleontólogos, segundo a qual a mentira era a pedra de arenito, continuava, conforme Ellie notara duas horas antes, a não ser mencionada. A mistura de pegadas fazia parte de uma vasta exposição chamada «A Derrota de Darwin». À sua esquerda ficava um pêndulo de Foucault demonstrando a afirmação científica, esta aparentemente incontestada, de que a Terra gira. À sua direita, Ellie distinguiu parte de uma profunda unidade de holografia Matsushita no pódio de um pequeno auditório, do qual imagens tridimensionais dos mais eminentes clérigos podiam comunicar diretamente com os fiéis. A comunicar ainda mais diretamente com ela estava, naquele momento, o reverendo Billy Jo Rankin. Ellie só soubera no último instante que Joss convidara Rankin, e o fato surpreendeu-a. Houvera contínua discordância teológica entre eles, sobre se estava eminente um advento, se o Juízo Final era um acompanhamento inevitável do Advento e sobre o papel dos milagres no ministério clerical, entre outras matérias. Mas recentemente tinham efetuado uma reconciliação largamente publicitada, feita, dizia-se, para o bem comum da comunidade fundamentalista da América. Os sinais de reaproximação entre os Estados Unidos e a União Soviética estavam a ter ramificações à escala mundial no arbítrio de disputas. Realizar o encontro ali era talvez parte do preço que Palmer Joss tinha de pagar pela reconciliação. Provavelmente, Rankin achava que o material exposto proporcionaria apoio factual à sua posição, caso fossem debatidos alguns pontos científicos. Agora, duas horas após o início da discussão, Rankin criticava e implorava alternadamente. O seu fato, de corte impecável, as unhas recém-manicuradas e o seu sorriso luminoso contrastavam com o aspecto amarrotado, distraído e mais marcado pelo tempo de Joss. Este,com o mais leve dos sorrisos no rosto, tinha os olhos semicerrados e a cabeça inclinada no que se parecia muito com uma atitude de prece. Ainda não falara muito. Até ali, as observações de Rankin — excetuando, parecia-lhe, no tocante à conversa sobre o Êxtase — eram doutrinariamente indistinguíveis das palavras de Joss na Televisão. — Vocês, cientistas, são muito tímidos — dizia Rankin. — Gostam de esconder a vossa luz debaixo de um cesto de alqueire. Uma pessoa nunca imaginaria, pelos títulos, o que contêm aqueles artigos. O primeiro trabalho de Einstein sobre a teoria da relatividade chamava-se «A eletrodinâmica dos corpos móveis». Nada de E=mc2 à frente. Não senhor. «A eletromecânica dos corpos móveis». Creio que, se Deus aparecesse a todo um bando grasnador de cientistas, talvez numa dessas grandes reuniões da Associação, eles escreveriam alguma coisa a esse respeito e chamar-lhe-iam, por ventura, «Da combustão dendritoforme espontânea no ar». Apresentariam montes de equações, falariam de «economia de hipóteses», mas não diriam uma palavra a respeito de Deus. «Compreendem, vocês, cientistas, são excessivamente céticos. — Pelo movimento lateral da sua mão, Ellie deduziu que Der Heer também estava incluído naquela classificação. — Põem tudo em causa, ou tentam pôr. Nunca ouviram dizer «Deixem em paz o que está bem», nem «Se não está partido, não o consertem». Querem sempre verificar se uma coisa é aquilo a que chamam «verdade». E «verdade» significa apenas dados empíricos, resultantes de estimulações sensoriais não analisadas, coisas que podem ver e tocar. No vosso mundo não há lugar para inspiração ou revelação. Logo, desde o princípio, excluem do julgamento quase tudo a que a religião respeita. Desconfio dos cientistas porque os cientistas desconfiam de tudo. Mal-grado seu, Ellie pensou que Rankin expusera bem a sua causa. E ele era considerado o estúpido entre os modernos vídeo-evangelistas. Não, estúpido, não, corrigiu-se: ele era aquele que considerava os seus paroquianos estúpidos. Por tudo quanto ela sabia, podia até ser muito esperto. Deveria responder-lhe? Tanto Der Heer como o pessoal local do museu estavam a gravar a discussão e, embora ambos os grupos tivessem concordado em que as gravações não seriam para utilização pública, ela preocupava-se com a possibilidade de causar embaraços ao Projeto ou à presidente se dissesse o que pensava. Mas os comentários de Rankin tinham-se tornado gradualmente mais ofensivos e não se verificavam quaisquer intervenções da parte de Der Heer ou Joss. — Suponho que quer uma resposta — deu consigo a dizer. — Não há uma posição científica «oficial» sobre qualquer destas questões e eu não posso ter a pretensão de falar por todos os cientistas ou sequer pelo Projeto Argus. Mas posso fazer alguns comentários, se quiser. Rankin acenou veementemente com a cabeça, a sorrir, encorajador. Languidamente, Joss limitava-se a esperar. — Quero que compreenda que não estou a atacar o sistema de crença de ninguém. Pela parte que me toca, tem o direito a qualquer doutrina que lhe agrade, mesmo que ela seja demonstravelmente errada. E muitas das coisas que tem estado a dizer e que o reverendo Joss disse — vi-o falar na Televisão há algumas semanas — não podem ser imediatamente postas de lado. Exigem um pouco de trabalho. Mas permita-me que tente explicar porque motivo penso que são improváveis. Até agora, pensou, fui o verdadeiro espírito do comedimento. — Não se sente à vontade com o ceticismo científico. Mas ele desenvolveu-se porque o mundo é complicado. É sutil. A primeira idéia de qualquer pessoa não é necessariamente correta. Além disso, as pessoas são capazes de se auto-iludirem. Os cientistas também. Todas as espécies de doutrinas socialmente detestáveis foram, numa ou noutra ocasião, apoiadas por cientistas, por cientistas conhecidos, por cientistas famosos, de nomeada. E, claro, por políticos. E dirigentes religiosos respeitados. A escravatura, por exemplo, ou a marca de racismo nazi. Os cientistas cometem erros, os teólogos cometem erros, toda a gente comete erros. Faz parte do ser humano. Vocês mesmos o dizem: «Errar é humano.» «Por conseguinte, a maneira de evitar erros, ou, pelo menos, de reduzir a possibilidade de cometer algum, é ser cético. Pomos as idéias à prova. Verificamo-las mediante rigorosos padrões de evidência. Não creio que exista uma coisa que possa considerar-se uma verdade reconhecida. Mas, quando deixamos debater as diferentes opiniões, quando qualquer cético pode efetuar a sua própria experiência para conferir determinada contenção, então a verdade tende a emergir. É essa a experiência de toda a história científica. Não é uma abordagem perfeita, mas é a única que parece funcionar. «Ora, quando olho para a religião, vejo uma quantidade de opiniões opostas. Por exemplo, os cristãos pensam que o universo tem um número finito de anos de idade. A julgar pelos testemunhos ali expostos, é evidente que alguns cristãos (e judeus e muçulmanos) pensam que o universo tem apenas seis mil anos. Os Hindus, por outro lado — e há muitos hindus no mundo —, pensam que o universo é infinitamente velho, com um número infinito de criações e destruições subsidiárias ao longo do caminho. Não podem ter razão uns e outros. Ou o universo tem um certo número de anos de idade, ou é infinitamente velho. Os vossos amigos dali — fez um gesto para fora da porta de vidro, na direção de diversos trabalhadores do museu que passavam pela «Derrota de Darwin» — deviam discutir com os Hindus pois Deus parece ter-lhes dito algo diferente do que disse a vocês. Mas vocês têm tendência para falar só uns com os outros. — Talvez um pouco forte de mais? — perguntou a si própria. — As principais religiões da Terra contradizem-se umas às outras, a torto e a direito. Não podem ter todos razão. E se todos estiverem enganados? É uma possibilidade, como sabem. Devem importar-se com a verdade, certo? Bem, a maneira de joeirar, de escolher entre todas as afirmações divergentes, é ser cético. Não sou mais cética acerca das vossas crenças religiosas do que a respeito de todas as novas idéias científicas de que tomo conhecimento. Mas, no meu gênero de trabalho, essas coisas chamam-se hipóteses, e não inspiração nem revelação. Joss mexeu-se um pouco, mas foi Rankin quem respondeu: — As revelações, as predições confirmadas de Deus no Velho e no Novo Testamento, são inúmeras. A vinda do Salvador é profetizada em Isaías 53, em Zacarias 14 e nas Primeiras Crônicas 17. Que Ele nasceria em Belém foi profetizado em Miguel 5. Que Ele viria da linhagem de David foi profetizado em Mateus 1 e… — Em Lucas. Mas isso deveria constituir um embaraço para vocês, e não uma profecia cumprida. Mateus e Lucas atribuem a Jesus genealogias totalmente diferentes. Pior do que isso, traçam a linhagem de David para José, e não de David para Marta. Ou não acreditam em Deus Pai? Rankin continuou a falar suavemente. Talvez não a tivesse compreendido. — O Ministério e o Sofrimento de Jesus são preditos em Isaías 22 e 53 e no 22º Salmo. Que Ele seria traído por trinta moedas de prata está explícito em Zacarias 11. Se é honesta, não pode ignorar a evidência da profecia cumprida. «E a Bíblia fala ao nosso próprio tempo. Israel e os Árabes, Gog e Mago, América e Rússia, guerra nuclear… está tudo lá, na Bíblia. Qualquer pessoa com um mínimo de senso pode vê-lo. Não é preciso ser um ilustre professor de universidade. — O seu mal — respondeu ela — é uma incapacidade de imaginação. Essas profecias são — quase todas — vagas, ambíguas, imprecisas, susceptíveis de fraude. Admitem uma enorme quantidade de interpretações possíveis. Das profecias claras, vindas diretamente do topo, tenta esquivar-se — como a promessa de Jesus de que o Reino de Deus chegaria durante a vida de algumas pessoas da sua audiência. E não me diga que o Reino de Deus está dentro de mim. A sua audiência interpretou-o literalmente. Você só cita as passagens que lhe parecem cumpridas e ignora o resto. E não se esqueça de que havia uma fome de ver profecias cumpridas. «Mas imagine que a sua espécie de deus — onipotente, onisciente, clemente — queria deveras deixar um registro para futuras gerações, tornar a sua existência inequívoca, clara, digamos, aos remotos descendentes de Moisés. É fácil, basta apenas algumas frases enigmáticas e alguma ordem imperiosa para que fossem transmitidas imutáveis… Joss inclinou-se quase imperceptivelmente para a frente. — Como, por exemplo?… — Como: «O Sol é uma estrela.» Ou: «Marte é um lugar inóspito com desertos e vulcões, como o Sinai.» Ou: «Um corpo em movimento tende a permanecer em movimento.» Ou… vejamos rabiscou rapidamente alguns números num livro de apontamentos — «A Terra pesa um milhão de milhões de milhões de milhões de vezes o que pesa uma criança.» Ou — reconheço que ambos parecem ter alguma dificuldade com a relatividade especial, mas ela é confirmada todos os dias rotineiramente em aceleradores de partículas e raios cósmicos —, que tal: «Não há sistemas de referências privilegiados»? Ou até: «Não viajarás mais depressa do que a luz.» Qualquer coisa que eles provavelmente não pudessem saber há três mil anos. — Quaisquer outras? — perguntou Joss. — Bem, há um número indefinido delas, ou, pelo menos, uma para cada princípio da física. Vejamos… «Calor e luz escondem-se ocultos na mais pequena pedra.» Ou mesmo: «O sistema da Terra equivale a dois, mas o sistema da magnetite equivale a três.» Estou a tentar sugerir que a força gravitacional segue uma lei quadrada inversa, enquanto a força bipolar magnética segue uma lei cúbica inversa. Ou, em biologia… — inclinou a cabeça na direção de Der Heer, que parecia ter feito voto de silêncio. — Que me dizem a: «Dois filamentos entrelaçados são o segredo da vida»? — Essa é interessante — admitiu Joss. — Está a falar, claro, do ADN. Mas conhece o bordão do médico, o símbolo da medicina? Os médicos do Exército usam-no na lapela. Chama-se «caduceu» e representa duas serpentes entrelaçadas. É uma hélice dupla perfeita. Desde tempos antigos que esse tem sido o símbolo de preservar a vida. Não é exatamente este o gênero de conexão que pretende sugerir? — Bem, eu pensava que era uma espiral, e não uma hélice. Mas, se há símbolos suficientes, e profecias suficientes e mitos e folclore suficientes, eventualmente alguns deles acabam por ajustar-se a algum conhecimento científico corrente, puramente por acaso. Não posso, no entanto, ter a certeza. Talvez você tenha razão. Talvez o caduceu seja uma mensagem de Deus. Claro que não é um símbolo cristão nem um símbolo de qualquer das principais religiões de hoje. Não creio que pretenda argumentar que os deuses falaram somente para os antigos Gregos. O que estou a dizer é que, se Deus quisesse enviar-nos uma mensagem, e os escritos antigos fossem a única maneira através da qual lhe ocorresse fazê-lo, podia ter feito obra melhor. E dificilmente teria de se confinar aos escritos. Por que não há um crucifixo monstruoso a orbitar a Terra? Por que não está a superfície da Lua coberta com os Dez Mandamentos? Por que haveria Deus de ser tão claro na Bíblia e tão obscuro no mundo? Aparentemente, Joss estivera preparado para responder algumas frases atrás, com uma expressão de genuíno prazer a brilhar inesperadamente no rosto, mas o jorro de palavras de Ellie estava a adquirir balanço e talvez ele tivesse achado descortês interrompê-la. — Além disso, por que haveriam vocês de pensar que Deus nos abandonou? Ele costumava conversar com patriarcas e profetas terça-feira sim, terça-feira não, segundo vocês acreditam. Ele é onipotente, dizem, e onisciente. Por conseqüência, não significaria nenhum esforço especial para ele recordar-nos diretamente, e sem ambigüidades, dos seus desejos, pelo menos algumas vezes em cada geração. Como se explica então, amigos? Por que não o vemos com cristalina clareza? — Nós vemos. — Rankin encheu a frase de enorme sentimento. — Ele está a toda a nossa volta. As nossas orações são ouvidas. Dezenas de milhões de pessoas deste país renasceram e testemunharam a graça gloriosa de Deus. A Bíblia fala-nos tão claramente no tempo presente como falou no tempo de Moisés e Jesus. — Oh, deixe-se disso! Sabe o que quero dizer. Onde estão as sarças ardentes, as colunas de fogo, a grande voz que diz «eu sou aquele que sou», a troar sobre nós vinda do Céu? Por que haveria Deus de se manifestar de maneiras tão sutis e controversas quando pode revelar-nos a sua presença completamente despida de ambigüidades? — Mas uma voz vinda do Céu é precisamente o que você diz que descobriu — comentou Joss casualmente, enquanto Ellie fazia uma pausa para tomar fôlego, a fitá-la nos olhos. Rankin aproveitou-se logo da idéia: — Absolutamente. Era isso mesmo que eu ia dizer. Abraão e Moisés não tinham rádios nem telescópios. Não podiam ter ouvido o Todo-Poderoso falar em FM. Talvez hoje Deus nos fale de novas maneiras e nos permita ter uma nova compreensão. Ou talvez não seja Deus… — Sim, Satanás. Ouvi algumas conversas a esse respeito. Parece-me loucura. Deixemos esse aspecto sossegado durante uns momentos, se não se importam. Pensam que talvez a Mensagem seja a voz de Deus, do vosso Deus. Onde, na vossa religião, responde Deus a uma prece reenviando-a para cá? — Pessoalmente, não chamaria uma prece a uma notícia de televisão nazi — disse Joss. — Você disse que é para atrair a nossa atenção. — Então por que pensa que Deus optou por falar com cientistas? Por que não com pregadores, como você? — Deus fala comigo constantemente. — O indicador de Rankin bateu-lhe audivelmente no esterno. — E aqui, com o reverendo Joss. Deus disse-me que está iminente uma revelação. Quando o fim do mundo se aproximar, o êxtase cairá sobre nós, o julgamento dos pecadores, a ascensão ao Céu dos eleitos… — Ele disse-lhe que ia anunciar isso no espectro do rádio? A sua conversa com Deus está registrada nalgum lado, para que possamos verificar que realmente ocorreu? Ou temos apenas a sua palavra? Por que escolheria Deus fazer o anúncio a radioastrônomos, e não a homens e mulheres do clero? Não acha um pouco estranho que a primeira mensagem de Deus em dois mil anos ou mais seja em números primos… e Adolf Hitler nas Olimpíadas de 1936? O seu Deus deve ter um grande sentido do humor. — O meu Deus pode ter o sentido seja do que for que Lhe apeteça. Der Heer sentia-se claramente alarmado com a primeira demonstração de verdadeiro rancor. — Bem… talvez deva recordar a todos o que esperamos conseguir com este encontro… — começou. Lá está o Ken na sua faceta apaziguadora, pensou Ellie. Nalguns problemas é corajoso, mas principalmente quando não tem nenhuma responsabilidade no tocante a ação. É um valente falador… na intimidade. Mas em política científica, e especialmente quando representa a presidente, torna-se muito acomodatício, mostra-se disposto a estabelecer um compromisso até com o próprio Diabo. Meteu travões aos pensamentos. A linguagem teológica estava a pegar-se-lhe… — Isso é outra coisa — declarou, interrompendo a sua própria linha de pensamento, assim como a de Der Heer. — se aquele sinal é de Deus, por que razão vem apenas de um lugar no céu, nas imediações de uma estrela próxima particularmente brilhante? Por que não vem de todo o céu ao mesmo tempo, como a radiação de fundo do corpo negro cósmico? Vindo de uma estrela, parece um sinal de outra civilização. Vindo de todo o lado, pareceria muito mais um sinal do vosso Deus. — Deus pode fazer com que um sinal venha do olho do cu da Ursa Menor, se quiser. — O rosto de Rankin estava a ficar muito vermelho. -Desculpe, mas irritou-me. Deus pode fazer tudo. — Tudo quanto você não compreende, Mister Rankin, atribui-o a Deus. Deus, para si, é o tapete para debaixo do qual varre todos os mistérios do mundo, todos os desafios à sua inteligência. Não pode desligar pura e simplesmente o seu pensamento e dizer foi Deus que fez. — Minha senhora, não vim aqui para ser insultado… — Veio aqui? Julgava que vivia aqui. — Minha senhora… — Rankin ia dizer qualquer coisa, mas mudou de idéias. Respirou fundo e continuou: — Este é um país cristão e os cristãos têm verdadeiro conhecimento desta questão, uma responsabilidade sagrada de se certificarem de que a sagrada palavra de Deus é compreendida… — Eu sou cristã e o senhor não fala por mim. Fechou-se a si próprio numa espécie qualquer de mania religiosa do século V. Desde então aconteceu a Renascença, aconteceu o Iluminismo. Onde esteve metido? Tanto Joss como Der Heer soergueram-se das cadeiras. — Por favor — implorou Ken, a olhar diretamente para Ellie. — Se não se cingir mais à agenda, não vejo como conseguiremos cumprir o que a presidente nos pediu. — Bem, queriam «uma troca de opiniões francas»… — É quase meio-dia — lembrou Joss. — Por que não fazemos um pequeno intervalo para o almoço? Fora da sala de conferências da biblioteca, encostada ao gradeamento que cercava o pêndulo de Foucault, Ellie iniciou uma breve conversa murmurada com Der Heer: — Apetecia-me esmurrar aquele fanfarrão, aquele sabichão, aquele santarrão… — Exatamente por quê, Ellie? Não são a ignorância e o erro suficientemente penosos? — Sim, se ele calasse a boca. Mas ele está a corromper milhões. — Queridinha, ele pensa o mesmo a teu respeito. Quando ela e Der Heer regressaram do almoço, Ellie notou imediatamente que Rankin parecia subjugado, enquanto Joss, que foi o primeiro a falar, se mostrava alegre, sem dúvida para além dos requisitos da mera cordialidade. — Doutora Arroway — começou —, compreendo que esteja impaciente para nos mostrar as suas descobertas e que não tenha vindo aqui para discussões teológicas. Mas, por favor, tenha um pouco mais de paciência conosco. Tem uma língua afiada. Não me recordo da última vez em que o Irmão Rankin tenha ficado tão agitado por questões de fé. Devem ter passado anos. Olhou momentaneamente para o colega, que rabiscava, aparentemente distraído, num livro de apontamentos amarelo, com o colarinho desabotoado e a gravata desapertada. — Fiquei surpreendido com uma ou duas coisas que a senhora disse esta manhã. Chamou a si mesma cristã. Permite a pergunta? Em que sentido é cristã? — Sabe, isso não fazia parte da descrição do cargo quando aceitei a diretoria do Projeto Argus — respondeu ela, de ânimo leve. — Sou cristã no sentido em que considero Jesus Cristo uma figura histórica admirável. Penso que o Sermão da Montanha é uma das maiores declarações éticas e um dos melhores discursos da história. Penso que «ama o teu inimigo» pode até ser a surpreendente solução do problema da guerra nuclear. Gostaria que ele estivesse vivo hoje. Beneficiaria todos os habitantes do planeta. Mas penso que Jesus; foi apenas um homem. Um grande homem, um homem corajoso, um homem com uma percepção das verdades impopulares. Não penso, porém, que tenha sido Deus, ou o filho de Deus, ou o sobrinho-neto de Deus. — Não quer acreditar em Deus. — Joss disse as palavras como quem faz uma verificação simples. — Acha que pode ser uma cristã e não acreditar em Deus. Permita que lhe pergunte sem rodeios: acredita em Deus? — A pergunta tem uma estrutura peculiar. Se eu respondo «não», quero dizer que estou convencida de que deus não existe, ou quero dizer que não estou convencida de que ele existe? São duas declarações muito diferentes. — Vejamos se são assim tão diferentes, doutora Arroway. Posso tratá-la apenas por «doutora»? Acredita na Navalha de Occam, não é verdade? Se tem duas explicações diferentes, mas igualmente boas, da mesma experiência, escolhe a mais simples. Toda a história da ciência a apóia, diz. Ora, se tem dúvidas sérias quanto a se há um deus — dúvidas suficientes para não lhe permitirem comprometer-se com a Fé —, então tem de poder imaginar um mundo sem Deus: um mundo que nasceu sem Deus, um mundo que vive a sua vida de todos os dias sem Deus, um mundo onde as pessoas morrem sem Deus. Sem castigo. Sem recompensa. Todos os santos e profetas, todos os fiéis que jamais existiram… enfim, teria de acreditar que foram idiotas. Que se iludiram a si mesmos, diria provavelmente. Esse seria um mundo em que não estávamos aqui na Terra por uma qualquer boa razão — quero dizer, com qualquer objetivo. Resumir-se-ia tudo apenas a complicadas colisões de átomos — não é assim? Incluindo os átomos que estão dentro dos seres humanos. «Para mim, esse seria um mundo odioso e desumano. Não quereria viver nele. Mas, se pode imaginar esse mundo, por que a indecisão? Por que ocupar um terreno intermédio qualquer? Se já acredita em tudo isso, não é muito mais simples dizer que não há Deus nenhum? Não está a ser fiel à Navalha de Occam. Penso que está a hesitar. Como pode uma cientista radicalmente conscienciosa ser uma agnóstica se é até capaz de imaginar um mundo sem Deus? Não preferiria apenas ter de ser uma ateia? — Pensei que ia argumentar que Deus é a hipótese mais simples — redargüiu Ellie —, mas este ponto é muito melhor. Se fosse apenas uma questão de discussão científica, concordaria consigo, reverendo Joss. A ciência preocupa-se essencialmente com o estudo e a correção de hipóteses. Se as leis da natureza explicassem todos os fatos disponíveis sem intervenção sobrenatural, ou mesmo se servissem apenas tão bem como a hipótese de Deus, então, por enquanto, classificar-me-ia como ateia. Mas depois, se se descobrisse que um simples bocadinho de evidência não se ajustava, eu recuaria do ateísmo. Somos inteiramente capazes de detectar qualquer desacerto nas leis da natureza. A razão por que não me classifico como ateia é porque não se trata principalmente de um problema científico. É um problema religioso e é um problema político. A natureza experimental da hipótese científica não se estende a esses campos. Vocês não falam de Deus como uma hipótese. Vocês pensam que encurralaram a verdade e, por isso, eu sublinho que lhes podem ter escapado uma ou duas coisas. Mas, se me pergunta, respondo-lhe sem hesitar: não posso ter a certeza de que tenho razão. — Sempre pensei que um agnóstico é um ateu sem a coragem das suas convicções. — Poderia igualmente dizer que um agnóstico é uma pessoa profundamente religiosa com, pelo menos, um conhecimento rudimentar da falibilidade humana. Quando digo que sou agnóstica, só quero dizer que as provas não chegam. Não há provas compelativas de que Deus existe — pelo menos a vossa espécie de deus — e não há provas compelativas de que não existe. Como mais de metade das pessoas da Terra não são judaicas, ou cristãs, ou muçulmanas, eu diria que não existem quaisquer argumentos compelativos para a vossa espécie de deus. Caso contrário, toda a gente da Terra teria sido convertida. Repito, se o vosso Deus quisesse convencer-nos, poderia ter feito um trabalho muito melhor. «Reparem como a Mensagem é claramente autêntica. Está a ser recebida em todo o mundo. Radiotelescópios vibram em países com histórias diferentes, línguas diferentes, políticas diferentes e religiões diferentes. Toda a gente está a receber o mesmo gênero de dados do mesmo lugar do céu, nas mesmas freqüências e com a mesma modulação de polarização. Os Muçulmanos, os Hindus, os cristãos e os ateus estão todos a receber a mesma mensagem. Qualquer cético pode montar um radiotelescópio — não precisa de ser muito grande —, e recebe dados idênticos. — Não está a sugerir que a sua radiomensagem é de Deus? — insinuou Rankin. — De modo nenhum. Digo apenas que a civilização de Vega — com poderes infinitamente inferiores aos que atribuem ao vosso Deus — foi capaz de tornar as coisas muito claras. Se o vosso Deus quisesse falar conosco através do meio improvável da transmissão de palavra falada e escritos antigos ao longo de milhares de anos, poderia tê-lo feito de modo que não deixasse nenhum lugar para debate acerca da sua existência. Fez uma pausa, mas nem Joss nem Rankin falaram; por isso, tentou de novo encaminhar a conversa para os dados: — Por que não adiamos por momentos a formação de uma opinião, até progredirmos um pouco mais na decifração da Mensagem? Gostariam de ver alguns dos dados? Desta vez eles concordaram, segundo pareceu, muito prontamente. Mas ela só conseguiu apresentar rimas de zeros e uns, nem uns nem outros construtivos ou inspiradores. Explicou cuidadosamente o que se referia à presumível paginação da Mensagem e ao esperado livro de instruções. Por acordo tácito, nem ela nem Der Heer disseram nada a respeito da opinião soviética de que a Mensagem era o projeto para fazer uma máquina. Tratava-se, na melhor das hipóteses, de uma impressão, e ainda não fora publicamente discutida pelos Soviéticos. Ocorreu-lhe então dizer alguma coisa acerca da própria Vega: a sua massa, a temperatura da superfície, a cor, a distância da Terra, a idade e o anel de fragmentos em órbita à sua volta, que tinha sido descoberto em 1983 pelo Satélite de Astronomia Infravermelha. — Mas, tirando o fato de se tratar de uma das estrelas mais brilhantes do céu, há alguma coisa de especial nela? — quis saber Joss. — Ou alguma coisa que a relacione com a Terra? — Bem, em termos de propriedades estelares ou coisa do gênero, não encontro nada. Mas há um fato acidental: Vega foi a Estrela Polar há cerca de doze mil anos e voltará a sê-lo daqui a cerca de catorze mil anos. — Eu julgava que a estrela polar era a Estrela Polar — disse Rankin, ainda a rabiscar, sem desviar os olhos do papel. — E é, durante alguns milhares de anos. Mas não eternamente. A Terra é como um pião a girar. O seu eixo efetua uma precessão lenta, num círculo. — Fez a demonstração do fenômeno, utilizando o lápis como o eixo da Terra. — Chama-se a isso a precessão dos equinócios. — Descoberta por Hiparco e Rodes — acrescentou Joss. Século II a.C. — Pareceu surpreendente que ele tivesse semelhante informação a bem dizer na ponta da língua. — Exatamente. Portanto, neste momento — prosseguiu Ellie —, uma seta traçada do centro da Terra para o Pólo Norte aponta para a estrela a que chamamos Polaris, na constelação da Ursa Menor. Creio que se referiu a essa constelação pouco antes de irmos almoçar, Mister Rankin. À medida que o eixo da Terra precessa lentamente, vai apontando para uma direção diferente do céu, e não na da Polaris, e, decorridos vinte e seis mil anos, o lugar do céu para onde o Pólo Norte aponta descreve um círculo completo. Presentemente, o Pólo Norte aponta para muito perto da Polaris, suficientemente perto para ser útil à navegação. Há doze mil anos, por acaso, apontava para Vega. Mas não existe nenhuma conexão física. A maneira como as estrelas estão distribuídas na Via Láctea não tem nada a ver com o fato de o eixo de rotação da Terra ter uma inclinação de vinte e três vírgula cinco graus. — Ora, doze mil anos atrás correspondem a dez mil anos a.C., a altura em que a civilização estava a começar. Não é verdade? — perguntou Joss. — A não ser que acreditem que a Terra foi criada em 4004 a.C. — Não, nós não acreditamos nisso, pois não, Irmão Rankin? Nós só não pensamos que a idade da Terra seja conhecida com a precisão com que vocês, cientistas, pensam. Na questão da idade da Terra somos aquilo a que poderia chamar «agnósticos». — Tinha um sorriso muito atraente. «Portanto, se havia gente a navegar há dez mil anos, sulcando, digamos, as águas do Mediterrâneo ou do golfo Pérsico, Vega seria a sua guia? — Nessa altura ainda estávamos na era glaciária. Provavelmente um pouco cedo para a navegação. Mas os caçadores que atravessavam a ponte de terra de Béringue para a América do Norte já então existiam. Deve ter-lhes parecido uma dádiva surpreendente — providencial, se quiserem que uma estrela tão brilhante estivesse exatamente a norte. Aposto que uma quantidade de gente ficou a dever a sua vida a essa coincidência. — Bem, isso é muitíssimo interessante. — Não desejo que pense que empreguei a palavra «providencial» com qualquer outro sentido além do metafórico. — Eu nunca pensaria semelhante coisa, minha querida. Joss dava agora indícios de se aperceber de que a tarde se aproximava do fim e não se mostrava descontente com isso. Mas parecia haver ainda alguns pontos na agenda de Rankin. — Espanta-me que não pense que o fato de Vega ter sido a Estrela Polar se deveu à Divina Providência. A minha fé é tão forte que não preciso de provas, mas, sempre que surge um fato novo, ele confirma simplesmente a minha fé. — Bem, creio que não escutou com muita atenção o que eu disse esta manhã. Ofende-me a idéia de que estamos a travar uma espécie de campeonato de fé e você é o vencedor fácil. Tanto quanto eu saiba, nunca pôs a sua fé à prova. Está disposto a pôr a sua vida em jogo pela sua fé? Eu estou disposta a fazê-lo pela minha. Olhe, espreite por aquela janela. Está ali um grande pêndulo de Foucault. O pêndulo propriamente dito deve pesar mais de duzentos e vinte quilogramas. A minha fé diz que a amplitude de um pêndulo livre — até que distância se afastará da posição vertical nunca pode aumentar. Só pode diminuir. Estou disposta a ir lá fora, colocar o pêndulo defronte do meu nariz, largá-lo, deixá-lo afastar-se e voltar de novo na minha direção. Se as minhas convicções estão erradas, levarei com um pêndulo de mais de duzentos e vinte quilogramas em cheio na cara. Então, quer pôr a minha fé à prova? — Sinceramente, não acho necessário. Acredito em si — declarou Joss. Rankin, porém, parecia interessado. Imaginava, supôs Ellie, qual seria o aspecto dela depois da prova. — Mas estaria você disposto — prosseguiu — a colocar-se trinta centímetros mais próximo do mesmo pêndulo e a pedir a Deus que lhe encurtasse o balanço? E se se verificar que as suas idéias estão todas erradas, que o que prega não é de modo nenhum a vontade de Deus? Talvez seja a obra do Diabo. Talvez seja pura invenção humana. Como pode ter realmente a certeza? — Fé, inspiração, revelação, reverência — respondeu Rankin. — Não avalie toda a gente pela sua própria experiência limitada. O fato de ter rejeitado o Senhor não impede outras pessoas de reconhecerem a Sua glória. — Escute, todos nós temos sede de prodígios. É uma característica profundamente humana. A ciência e a religião estão ambas ligadas a ela. O que pretendo dizer é que não é necessário inventar histórias, não temos de exagerar. Há prodígios e maravilhas suficientes no mundo real. A natureza é muito superior a nós na invenção de prodígios. — Talvez todos nós sejamos caminhantes na estrada para a verdade — respondeu Joss. Der Heer aproveitou habilmente esta nota esperançosa e, entre cortesias forçadas, prepararam-se para se ir embora. Ellie perguntava-se se fora alcançado algum resultado útil. Achava que Valerian teria sido muito mais eficiente e muito menos provocador. Desejou ter sido capaz de se dominar melhor. — Foi um dia muito interessante, doutora Arroway, e agradeço-lhe. — Joss parecia agora novamente um pouco distante; cortês, mas como que ausente, o que não o impediu de lhe apertar amigavelmente a mão. Quando se dirigiam para a saída, para o carro governamental que esperava, depois de passarem por uma profusa demonstração tridimensional sobre «A falácia do universo em expansão», um letreiro dizia: «O nosso Deus está vivo e bem. Sentimos quanto ao vosso.» Ellie murmurou a Der Heer: — Lamento se tornei a tua missão mais difícil. — Oh, não, Ellie! Foste excelente. — Aquele Palmer Joss é um homem muito atraente. Não creio ter feito muito para o converter. Mas confesso-te que ele quase me converteu. Estava a brincar, evidentemente. CAPÍTULO XI O Consórcio Mundial da Mensagem O mundo está quase todo repartido e o que dele resta está a ser dividido, conquistado e colonizado. Pensar nessas estrelas que vemos lá em cima, à noite, nesses imensos mundos que nunca podemos alcançar! Anexaria os planetas, se pudesse; penso muitas vezes nisso. Entristece-me vê-los tão claros e todavia tão distantes.      CECIL RODES. Last will and Testament (1902) Da mesa que ocupavam junto da janela, Ellie via o aguaceiro molhar a rua. Um transeunte encharcado, de gola levantada, passou apressado e resolutamente. O proprietário abrira o toldo às riscas sobre as tinas de ostras, selecionadas consoante tamanho e qualidade e constituindo uma espécie de anúncio público da especialidade da casa. Sentia-se quente e aconchegada dentro do restaurante, o famoso ponto de encontro da gente de teatro, Chez Dieux. Como tinha sido previsto bom tempo, não trouxera gabardina nem chapéu-de-chuva. Igualmente desprovido de tais acessórios, Vaygay apresentou um novo assunto: — A minha amiga Meera — anunciou — é uma ecdisiasta. É esta a palavra certa, não é? Quando trabalha no seu país, representa para grupos de membros de profissões liberais, em reuniões e convenções. Meera diz que, quando tira as roupas para homens da classe trabalhadora — em convenções e sindicatos e coisas desse gênero —, eles ficam desvairados, gritam sugestões impróprias e tentam juntar-se-lhe no palco. Mas, quando faz exatamente a mesma coisa para médicos ou advogados, eles deixam-se ficar sentados, imóveis. Alguns, diz ela, lambem mesmo os lábios. A minha pergunta é: os advogados são mais saudáveis do que os operários siderúrgicos? Que Vaygay tinha diversos conhecimentos femininos, sempre fora aparente. As maneiras como abordava as mulheres eram tão diretas e extravagantes — excluindo ela própria, por qualquer razão que lhe agradava e desagradava simultaneamente — ; que elas podiam sempre dizer «não» sem embaraço. Muitas diziam «sim». Mas a novidade a respeito de Meera era um pouco inesperada. Tinham passado a manhã numa comparação de apontamentos e interpretação de novos dados de última hora. A transmissão continuada da Mensagem chegara a um novo estágio importante. Estavam a ser transmitidos diagramas de Vega do mesmo modo que se transmitem telefotografias de jornais. Cada imagem era um sistema de quadriculação. O número de minúsculos pontos pretos e brancos que constituíam a gravura era o produto de dois números primos. De novo os números primos faziam parte da transmissão. Havia um grande conjunto de tais diagramas, uns após outros, e de modo algum intercalados no texto. Era como uma série de ilustrações lustrosas inseridas no fim de um livro. Após a transmissão das longas seqüências de diagramas, o texto ininteligível continuava. Com base em alguns dos diagramas, parecia evidente que Vaygay e Arkhangelsky tinham tido razão, que a Mensagem era, pelo menos em parte, as instruções, os planos para construir uma máquina. Uma máquina cujo fim era desconhecido. Na reunião plenária do Consórcio Mundial da Mensagem, a realizar no dia seguinte no Palácio do Eliseu, ela e Vaygay apresentariam pela primeira vez alguns dos pormenores a representantes das outras nações do Consórcio. Mas a hipótese da máquina já fora mais ou menos divulgada oficiosamente. Durante o almoço, ela resumira o seu encontro com Rankin e Joss. Vaygay mostrara-se atento, mas não fizera perguntas. Fora como se ela tivesse estado a confessar alguma predileção pessoal indecorosa, e fora talvez isso que desencadeara a associação de idéias dele. — Tem uma amiga chamada Meera que é uma artista de strip-tease? Com categoria internacional? — Desde que Wolfgang Pauli descobriu o princípio da exclusão enquanto assistia às Folies-Bergére, considerei meu dever profissional, como físico, visitar Paris o mais possível. Considero isso a minha homenagem a Pauli. Mas, não sei por quê, nunca consigo persuadir os funcionários do meu país a aprovarem viagens exclusivamente para esse efeito. Geralmente, tenho de fazer também alguma física prosaica. Mas em tais estabelecimentos — foi onde conheci Meera — sou um estudioso da natureza, à espera de introspecção para atacar. Abruptamente, o seu tom de voz passou de expansivo para casual: — Meera diz que os homens americanos que se dedicam à ciência e às profissões liberais são sexualmente reprimidos e têm dúvidas e sentimento de culpa atormentadores. — Deveras? E que diz ela acerca dos homens russos que se dedicam à ciência e às profissões liberais? — Ah, nessa categoria só me conhece a mim! Por isso evidentemente, tem uma boa opinião. Acho que preferia estar com ela amanhã. — Mas todos os seus amigos estarão na reunião do Consórcio — redargüiu-lhe Ellie, divertida. — Sim, e eu estou satisfeito porque você lá estará — respondeu Vaygay, melancolicamente. — Que o preocupa, Vaygay? Ele demorou muito tempo antes de responder e, quando o fez, começou com uma ligeira, mas incaracterística, hesitação: — Talvez não seja preocupação. Talvez seja inquietação… E se a Mensagem for realmente a concepção do projeto de uma máquina? Construímos a máquina? Quem a constrói? Todos juntos? O Consórcio? As Nações Unidas? Algumas nações em concorrência? E se for enormemente dispendiosa de construir? Quem paga? Por que hão-de querer pagar? E se não funcionar? Poderá a construção da máquina prejudicar economicamente algumas nações? Poderá prejudicá-las em qualquer outro aspecto? Sem interromper a torrente de perguntas, Lunacharsky despejou o resto do vinho dos copos. — Mesmo que a Mensagem volte atrás, e mesmo que a decifremos totalmente, que utilidade poderá ter a tradução? Conhece a opinião de Cervantes? Ele disse que ler uma tradução é como examinar o avesso de uma tapeçaria. Talvez não seja possível traduzir a Mensagem perfeitamente. Assim sendo, não construiríamos a máquina perfeitamente. Além disso, temos de fato a certeza de estar de posse de todos os dados? Talvez haja informação essencial em qualquer outra freqüência que ainda não descobrimos. «Sabe, Ellie, acho que as pessoas deviam ser muito cautelosas quanto a construir esta máquina. Mas amanhã aparecerão alguns que instigarão à construção imediata — quero dizer, logo após recebermos o livro de instruções e decifrarmos a Mensagem, presumindo que a deciframos. Que vai a delegação americana propor? — Não sei — respondeu ela, devagar. Mas lembrou-se de que, pouco depois de o material diagramático ter sido recebido, Der Heer começara a perguntar se era presumível que a máquina estivesse ao alcance da economia e da tecnologia da Terra. Ela pouco o pudera tranqüilizar em qualquer dos aspectos. Recordou de novo quanto Ken parecera preocupado nas últimas semanas, algumas vezes até nervoso. Claro que as suas responsabilidades na questão eram… — O doutor Der Heer e Mister Kitz estão no mesmo hotel que você? — Não, eles estão instalados na Embaixada. Era sempre assim. Devido à natureza da economia soviética e à necessidade consciente de comprar tecnologia militar em vez de bens de consumo com as suas reservas limitadas de moedas fortes, os Russos dispunham de pouco dinheiro para gastar quando visitavam o Ocidente. Eram obrigados a ficar em hotéis de segunda ou terceira categoria, ou até mesmo em pensões, enquanto os seus colegas ocidentais viviam em relativo luxo. Isso constituía uma contínua fonte de embaraço para os cientistas de ambos os países. Pagar a conta daquela refeição relativamente simples não representaria dificuldade nenhuma para Ellie, mas seria um peso grande para Vaygay, apesar da sua posição comparativamente elevada na hierarquia científica soviética. Mas o que estava ele… — Vaygay, seja direto comigo. Que pretende dizer? Pensa que o Ken e Mike Kitz se estão a antecipar? — «Direto»[9 - A palavra inglesa usada é straight, cuja tradução correta, neste contexto, deveria ser «franco». Mas o comentário do interlocutor da cientista obriga a esta pequena incorreção. (N. da T.)]… Uma palavra interessante; nem para a direita nem para a esquerda, mas progressivamente em frente. Receio que nos próximos dias assistamos a uma discussão prematura acerca da construção de uma coisa que não temos direito nenhum de construir. Os políticos pensam que nós sabemos tudo. Na realidade, não sabemos quase nada. Semelhante situação poderia ser perigosa. Ellie apercebeu-se finalmente de que Vaygay estava a assumir uma responsabilidade pessoal pela compreensão da natureza da Mensagem. Se conduzisse a alguma catástrofe, preocupava-o que a culpa pudesse ser sua. Claro que também tinha menos motivações pessoais. — Quer que eu fale com o Ken? — Se lhe parecer apropriado. Tem oportunidades freqüentes de falar com ele? — Fez a pergunta em tom natural. — Vaygay, não está com ciúmes, pois não? Desconfio que se apercebeu dos meus sentimentos pelo Ken antes de eu própria ter consciência deles. Quando esteve em Argus. O Ken e eu temos estado mais ou menos juntos nos últimos dois meses. Tem algumas objeções? — Oh, não, Ellie! Não sou seu pai nem um amante ciumento. Só lhe desejo grande felicidade. Acontece apenas que vejo tantas possibilidades desagradáveis… Mas não adiantou mais. Voltaram às suas interpretações preliminares de alguns dos diagramas, com os quais a mesa ficou eventualmente coberta. Como contraponto, também discutiram um pouco de política: o debate na América sobre os princípios de Mandala para resolver a crise na África do Sul e a crescente guerra de palavras entre a União Soviética e a República Democrática Alemã. Como sempre, Arroway e Lunacharsky sentiam prazer em denunciar um ao outro a política externa dos seus próprios países. Isto era muito mais interessante do que denunciar a política externa da nação um do outro, o que teria sido igualmente fácil de fazer. Durante a discussão ritual acerca de repartirem a despesa, ela reparou que a forte chuva se reduzira a um leve chuviscar. Entretanto, a notícia da Mensagem de Vega chegara a todos os cantos do planeta Terra. Contara-se a pessoas que não sabiam nada de radiotelescópios e nunca tinham ouvido falar em números primos, uma história peculiar acerca de uma voz das estrelas, acerca de seres estranhos — que não eram exatamente homens, mas também não eram exatamente deuses — que, descobrira-se, viviam no céu noturno. Não vinham da Terra. A sua estrela-pátria podia ser facilmente vista, mesmo com Lua cheia. No meio do ininterrupto frenesi de comentários sectários havia também — por todo o mundo, como agora se tornara aparente — um sentimento de espanto, até mesmo de temor. Estava a acontecer alguma coisa transformadora, alguma coisa miraculosa. O ar estava cheio de possibilidades, de uma sensação de novo começo. «A humanidade foi promovida à escola secundária» escrevera um editorialista americano. Havia outros seres inteligentes no universo. Podíamos comunicar com eles. Provavelmente eram mais velhos do que nós, possivelmente mais sábios. Estavam a enviar-nos bibliotecas de informação complexa. Havia como que uma intuição muito espalhada de iminente revelação secular. Por isso, os especialistas de todas as matérias começaram a preocupar-se. Matemáticos preocupavam-se com as descobertas elementares que podiam ter lhes escapado. Dirigentes religiosos receavam que valores veganianos, apesar de alienígenas, encontrassem adeptos fáceis, especialmente entre os jovens sem instrução. Astrônomos preocupavam-se com a possibilidade de haver aspectos fundamentais acerca de estrelas próximas que tivessem interpretado mal. Políticos e dirigentes governamentais temiam que quaisquer outros sistemas de governo, alguns completamente diferentes dos presentemente em moda, pudessem ser admirados por uma civilização superior. Fosse o que fosse que os Veganianos soubessem, não fora influenciado por instituições, história ou biologia peculiarmente humanas. E se muito do que nós julgávamos certo fosse um equívoco, um caso especial ou uma asneira lógica? Peritos começaram, intranqüilamente, a reavaliar a fundamentação das suas matérias. Para além desta restrita inquietação vocacional havia uma grande e sublime percepção de uma nova aventura para a espécie humana, o dobrar de uma esquina, de entrar de rompante numa nova era — um simbolismo fortemente ampliado pela aproximação do Terceiro Milênio. Ainda havia conflitos políticos, alguns deles — como a incessante crise sul-africana — graves. Mas havia também em muitas partes do mundo um declínio notório de retórica jingoísta e nacionalismo auto-congratulatório pueril. Havia a sensação de que a espécie humana, milhares de milhões de minúsculos seres humanos espalhados por todo o mundo, estava a ser coletivamente presenteada com uma oportunidade sem precedentes, ou até, porventura, com um grave perigo comum. A muitos parecia absurdo que os estados-nações em desacordo continuassem com os seus conflitos mortíferos quando enfrentados por uma civilização não humana de aptidões imensamente maiores. Andava no ar um cheirinho de esperança. Algumas pessoas que a tal não estavam acostumadas tomaram-no erradamente por qualquer outra coisa — confusão, talvez, ou covardia. Durante décadas, depois de 1945, o arsenal mundial de armas nucleares estratégicas aumentara sistematicamente. Os dirigentes mudavam, os sistemas de armamento mudavam, a estratégia mudava, mas o número de armas estratégicas, esse, só aumentava. Chegou uma altura em que havia mais de vinte e cinco mil no planeta, dez para cada cidade. A tecnologia estava a empurrar no sentido de tempo de vôo curto, incentivos para ard-target-first strike e, pelo menos, launch-on-Warning de fato. Só um perigo tão monumental podia anular uma insensatez tão monumental, apoiada por tantos líderes em tantas nações durante tanto tempo. Mas, finalmente, o mundo recuperou a lucidez, pelo menos até determinado ponto, e foi assinado um acordo pelos Estados Unidos da América, a União Soviética, a Inglaterra, a França e a China. Não se destinava a libertar o mundo das armas nucleares. Poucos esperavam que trouxesse na sua esteira alguma utopia. Mas os Americanos e os Soviéticos comprometeram-se a reduzir os seus arsenais estratégicos para mil armas nucleares cada. Os pormenores foram cuidadosamente concebidos, de modo que nenhuma das superpotências se encontrasse em desvantagem significativa em qualquer estágio do processo de redução. A Inglaterra, a França e a China acordaram em começar a reduzir os seus arsenais quando as superpotências tivessem descido abaixo do nível das três mil e duzentas unidades. Os Acordos de Hiroxima foram assinados, com júbilo mundial, junto da famosa placa em memória das vítimas da primeira cidade obliterada por uma arma nuclear: «Descansai em paz, pois não voltará a acontecer!» Todos os dias, os ativadores de cisão de um número igual de ogivas nucleares dos Estados Unidos da América e da União Soviética eram entregues numa instalação especial dirigida por técnicos americanos e russos. O plutônio era extraído, registrado, selado e transportado por equipes bilaterais para centrais de energia nuclear onde era consumido e convertido em eletricidade. Este esquema, conhecido por Plano de Gayler, em homenagem a um almirante americano, era largamente aclamado como a última palavra na transformação de espadas em relhas de arado. Como cada nação ainda conservava uma capacidade de retaliação devastadora, até os estabelecimentos militares acabaram eventualmente por concordar com o sistema. Os generais não desejam mais do que qualquer outra pessoa que os seus filhos morram, e a guerra nuclear é a negação das virtudes militares convencionais; é difícil encontrar muita coragem no ato de carregar num botão. A primeira cerimônia de despojamento — filmada pela televisão, transmitida em direto e retransmitida muitas vezes — apresentava técnicos americanos e soviéticos vestidos de branco transportados em dois dos objetos metálicos cinzento-baços, cada um quase do tamanho de uma otomana e variadamente engalanados com estrelas e riscas e foices e martelos. Foi vista por uma enorme fração da população mundial. Os telejornais noturnos anunciavam regularmente quantas ameaças estratégicas de ambos os lados tinham sido desmanteladas e quantas mais iam sê-lo. Dentro de pouco mais de duas décadas, estas notícias também chegariam a Vega. Nos anos seguintes, as desativações continuaram, quase sem nenhum problema. Ao princípio, o excesso nos arsenais foi anulado, com pouca mudança na doutrina estratégica; mas agora os cortes estavam a ser sentidos e os sistemas de armas mais desestabilizadores estavam a ser desmantelados. Tratava-se de algo que os peritos tinham classificado de impossível e declarado «contrário à natureza humana». Mas uma sentença de morte, como Samuel Johnson observara, faz concentrar a mente de maneira maravilhosa. No último meio ano, o desmantelamento de armas nucleares pelos Estados Unidos e pela União Soviética dera importantes passos novos, com equipes de inspeção intrusivas de cada nação a serem em breve instaladas no território da outra — apesar da desaprovação e preocupação publicamente manifestadas pelos estados-maiores militares de ambas as potências. As Nações Unidas revelaram-se inesperadamente eficientes na mediação de disputas internacionais, com as guerras fronteiriças oeste-iraniana e Chile-Argentina ambas aparentemente resolvidas. Falava-se até, e não se tratava de conversa inteiramente estulta, de um tratado de não agressão entre a NATO e o Pacto de Varsóvia. Os delegados que chegavam para a primeira sessão plenária do Consórcio Mundial da Mensagem vinham predispostos para a cordialidade numa medida sem paralelo em décadas recentes. Cada nação possuidora nem que fosse apenas de um punhado de bits da Mensagem estava representada, tendo enviado delegados tanto científicos como políticos; um número surpreendente enviou também representantes militares. Nalguns casos, poucos, as delegações nacionais eram chefiadas por ministros dos Estrangeiros ou até por Chefes de Estado. A delegação do Reino Unido incluía o visconde Boxforth, Lorde do Selo Privado — título que, intimamente, Ellie achava hilariante[10 - A hilaridade devia-se ao fato de Lorde do Selo Privado (funcionário que tem a seu cargo o uso do selo do Estado em assuntos de pequena importância) se dizer em inglês Lord Privy Seal, e privy também significar «latrina». (N. da T.)]. A delegação da URSS era chefiada por B. Ya Abukhimov, presidente da Academia de Ciências Soviética, com Gotsridze, ministro da Indústria Meio-Pesada, e Arkhangelsky a desempenharem papéis significativos. A presidente dos Estados Unidos insistira em que Der Heer chefiasse a delegação americana, embora ela incluísse o subsecretário de Estado Elmo Honicutt e Michael Kitz, entre outros, em representação do Departamento da Defesa. Um enorme e complicado mapa em projeção de área igual mostrava a disposição dos radiotelescópios no planeta, incluindo os navios oceânicos rastreadores soviéticos. Ellie olhou em redor do recém-concluído salão de conferências, adjacente aos gabinetes e à residência do presidente da França. Ainda apenas no segundo ano do seu mandato de sete anos, ele estava a fazer todos os esforços para assegurar o êxito da reunião. Uma multitude de rostos, bandeiras e uniformes nacionais refletia-se das compridas e curvas mesas de mogno e das paredes espelhadas. Ellie reconheceu poucas das pessoas dos campos político e militar, mas em cada delegação parecia encontrar-se pelo menos um cientista ou engenheiro familiar: Annunziata e Ian Broderick, da Austrália; Fedirka, da Checoslováquia; Braude, Crebillon e Boileau, da França; Kumar Chandrapurana e Devi Sukhavati, da Índia; Hironaga e Matsui, do Japão… Pensou nos fortes antecedentes tecnológicos, mais do que radioastronômicos, de muitos dos delegados, especialmente dos japoneses. A idéia de que a construção de alguma imensa máquina poderia fazer parte da agenda da reunião originara mudanças de última hora na composição das delegações. Reconheceu também Matesta, da Itália; Bedenbaugh, um físico que se metera na política, Clegg e o venerando Sir Arthur Chatos a conversar atrás do tipo de bandeira inglesa que se encontra em mesas de restaurantes em estâncias européias; Jaime Ortiz, de Espanha; Prebula, da Suíça — o que era intrigante, uma vez que a Suíça, que ela soubesse, não tinha sequer um radiotelescópio; Bao, que organizara brilhantemente a distribuição de radiotelescópios chineses, e Wintergarden, da Suécia. Havia delegações sauditas, paquistanesas e iraquianas surpreendentemente grandes e, evidentemente, os soviéticos, entre os quais Nadya Rozhdestvenskaya e Genrikh Arkhangelsky compartilhavam um momento de genuína hilaridade. Ellie olhou à procura de Lunacharsky e finalmente localizou-o com a delegação chinesa. Estava a apertar a mão a Yu Renqiong, diretor do Radiobservatório de Beijing. Lembrava-se de que os dois homens tinham sido amigos e colegas durante o período da cooperação sino-soviética. Mas as hostilidades entre as duas respectivas nações tinham posto fim a qualquer contato entre eles e as restrições das autoridades chinesas às viagens ao estrangeiro dos seus cientistas mais importantes ainda eram quase tão rigorosas como as soviéticas. Ellie compreendeu que estava a testemunhar o primeiro encontro dos dois ao fim de, talvez, um quarto de século. — Quem é o velho chinês a quem Vaygay está a apertar a mão? — A pergunta era, da parte de Kitz, uma tentativa de cordialidade. Nos últimos dias, ele tivera pequenas atitudes deste gênero, mudança de comportamento que ela achava pouco prometedora. — Yu, diretor do Observatório de Beijing. — Julgava que aqueles tipos não se gramavam uns aos outros. — Michael, o mundo é simultaneamente melhor e pior do que você imagina. — Provavelmente pode levar-me a palma no «melhor», mas não me chega aos calcanhares no «pior». Depois das boas-vindas dadas pelo presidente da França (que, para certo espanto dos presentes, ficou para ouvir as apresentações do início da reunião) e da discussão da condução dos trabalhos e da agenda por Der Heer e Abukhimov como co-presidentes da conferência, Ellie e Vaygay apresentaram em conjunto o resumo dos dados. Fizeram o que entretanto se tornara a forma de apresentação-padrão — não excessivamente técnica, por consideração para com as individualidades políticas e militares — quanto ao modo como os radiotelescópios funcionavam, a distribuição das estrelas próximas no espaço e a história da Mensagem em palimpsesto. A sua apresentação conjunta terminou com um visionamento, através dos monitores colocados diante de cada delegação, do material diagramático recentemente recebido. Ela foi cuidadosa na demonstração de como a modulação de polarização se convertia numa seqüência de zeros e uns, como os zeros e os uns se ajustavam para formar uma imagem e como, na maioria dos casos, eles não faziam a mais vaga idéia do que a imagem significava. Os pontos de dados agrupavam-se nos écrans dos computadores. Ela via rostos iluminados de branco, âmbar e verde pelos monitores no salão, agora parcialmente escurecido. Os diagramas mostravam complexas articulações ramificadas; formas protuberantes, quase indecentemente biológicas, e um dodecaedro regular perfeitamente formado. Uma longa série de páginas fora agrupada numa construção tridimensional complicadamente pormenorizada que girava lentamente. A cada objeto enigmático correspondia uma legenda ininteligível. Vaygay sublinhou as incertezas ainda mais fortemente do que ela. No entanto, na sua opinião, não restavam agora dúvidas de que a Mensagem era um manual para a construção de uma máquina. Não mencionou que a idéia de a Mensagem ser um projeto de construção tinha partido inicialmente dele e de Arkhangelsky, mas Ellie aproveitou a oportunidade para retificar a omissão. Nos últimos meses falara do assunto o suficiente para saber que audiências tanto científicas como gerais se sentiam freqüentemente fascinadas pelos pormenores do deslindar da Mensagem e presas de uma curiosidade atormentadora pelo conceito ainda por provar de um livro de instruções. No entanto, não estava preparada para a reação daquela — julgar-se-ia — serena assistência. Vaygay e ela tinham interdigitado as suas apresentações. Quando terminaram, houve aplausos estrondosos e prolongados. As delegações soviética e leste-européias aplaudiram em uníssono, com uma freqüência de duas ou três palmas por batimento cardíaco. Os americanos e muitos outros aplaudiram separadamente, com as suas palmas assíncronas a formar um mar de ruído branco que se erguia da multidão. Envolta numa espécie de alegria que lhe não era familiar, Ellie não resistiu a pensar nas diferenças de caracteres nacionais: os Americanos como individualistas e os Russos empenhados num esforço coletivo. Recordou que, em aglomerações, os Americanos também tendiam para maximizar a sua distância dos seus companheiros, enquanto os Soviéticos tendiam para se aproximar o mais possível uns dos outros. Ambos os estilos de aplauso — o americano claramente dominante — a encantaram. Durante um momento, apenas, permitiu-se pensar no padrasto. E no pai. Depois do almoço houve uma sucessão de outras apresentações sobre a recolha e a interpretação dos dados. David Drumlin desenvolveu uma argumentação extraordinariamente competente de uma análise estatística que efetuara recentemente a todas as páginas anteriores da Mensagem que se referiam aos novos diagramas numerados. Alegou que a Mensagem continha não só um plano para a construção de uma máquina, mas também descrições do desenho e dos modos de fabrico de componentes e subcomponentes. Nalguns casos, pensava, havia descrições de novas indústrias completas ainda não conhecidas na Terra. De boca aberta, Ellie sacudiu o dedo na direção de Drumlin, a perguntar silenciosamente a Valerian se ele tivera conhecimento daquilo. De lábios franzidos, Valerian encolheu os ombros e virou as mãos de palmas para cima. Ela perscrutou os outros delegados, à procura de alguma expressão de emoção, mas detectou principalmente indícios de fadiga; a profundidade do material técnico e a necessidade de, mais cedo ou mais tarde, tomar decisões políticas estavam já a produzir tensão. Finda a sessão, cumprimentou Drumlin pela interpretação, mas perguntou-lhe por que motivo só agora ouvira falar dela. «não pensei que fosse suficientemente importante para a maçar com o assunto! Tratou-se apenas de uma coisinha que eu fiz enquanto você andou por fora a consultar fanáticos religiosos.» Ellie pensou que, se Drumlin tivesse sido conselheiro da sua tese, ela ainda andaria às voltas com o seu doutorado. Ele nunca a aceitara totalmente. Nunca compartilhariam um relacionamento despreocupado de colegas cientistas. A suspirar, perguntou a si mesma se Ken soubera do novo trabalho de Drumlin. Mas, como co-presidente da conferência, Der Heer estava sentado com o seu homólogo soviético num estrado voltado para a ferradura de bancadas de delegados. Estava, como estivera durante semanas, quase inacessível. Claro que Drumlin não era obrigado a discutir com ela as suas descobertas; ela sabia que ambos tinham andado preocupados recentemente. Mas, quando em conversa com ele, por que se mostrava ela sempre acomodatícia — e argumentativa somente in extremis? Era evidente que uma parte de si mesma ainda achava que a obtenção do seu doutorado e a oportunidade de prosseguir o seu trabalho científico continuavam a ser possibilidades futuras firmemente contidas nas mãos de Drumlin. Na manhã do segundo dia foi dada a palavra a um delegado soviético. Ela não o conhecia. «Stefan Alexenvich Baruda», indicaram os vitagráficos no écran do seu computador, «Diretor, Instituto de Estudos para a Paz, Academia de Ciências Soviética, Moscovo; Membro, Comitê Central, Partido Comunista da URSS.» — Agora vamos começar a jogar duro — ouviu ela Michael Kitz dizer a Elmo Honicutt, do Departamento de Estado. Baruda era um homem esmeradamente vestido, de fato de passeio ocidental elegante e impecavelmente na moda, talvez de corte italiano. O seu inglês era fluente e quase sem sotaque. Nascera numa das repúblicas bálticas, era jovem para um dirigente de uma organização tão importante formada para estudar as implicações a longo prazo, na política estratégica, da redução das armas nucleares — e constituía um exemplo frisante da «nova onda» da liderança soviética. — Sejamos francos — dizia Baruda. — Está a ser-nos enviada uma mensagem das lonjuras do espaço. A maior parte da informação tem sido recolhida pela União Soviética e pelos Estados Unidos da América. Passagens essenciais foram também obtidas por outros países. Todos estes países estão representados nesta conferência. Qualquer nação — a União Soviética, por exemplo — podia ter aguardado que a Mensagem se repetisse várias vezes, como todos nós esperamos que acontecerá, e preencher desse modo as muitas lacunas. Mas isso levaria anos, talvez décadas, e nós estamos um pouco impacientes. Por isso compartilhamos todos os dados. «Qualquer nação — a União Soviética, por exemplo — podia colocar em órbita à volta da Terra grandes radiotelescópios com receptores sensíveis que funcionam nas freqüências da Mensagem. Os Americanos podiam igualmente fazê-lo. Talvez o Japão ou a França, ou a Agência Espacial Européia, pudessem fazê-lo. Assim, qualquer nação, por si só, poderia adquirir todos os dados, porque, no espaço, um radiotelescópio pode estar sempre apontado a Vega. Mas isso poderia ser considerado um ato hostil. Não é segredo nenhum que os Estados Unidos da América ou a União Soviética poderiam ser capazes de abater tais satélites. Por isso, talvez também por esta razão, compartilhamos os dados. «É melhor cooperar. Os nossos cientistas desejam trocar não apenas os dados que recolheram, mas também as suas especulações, as suas suposições, os seus… sonhos. Todos vós, cientistas, sois iguais nesse aspecto. Eu não sou cientista. A minha especialidade é governar. Por isso sei que as nações também são iguais. Todas as nações são cautelosas. Todas as nações são desconfiadas. Nenhum de nós daria uma vantagem a um adversário potencial se pudesse evitá-lo. E, assim, ouve duas opiniões — talvez mais, mas pelo menos duas —, uma que aconselha a permuta de todos os dados e outra que aconselha cada nação a procurar obter vantagem sobre as outras. «Podem ter a certeza de que o outro lado está à procura de qualquer vantagem», dizem a mesma coisa na maior parte das nações. «Os cientistas venceram este debate. Assim, por exemplo, a maior parte dos dados — embora, desejo salientá-lo, não todos — adquiridos pelos Estados Unidos da América e pela União Soviética foram permutados. A maior parte dos dados de todos os outros países foram permutados em todo o mundo. Sentimo-nos felizes por termos tomado esta decisão. Ellie segredou a Kitz: — Isto não me parece «jogo duro». — Continue sintonizada — murmurou ele em resposta. — Mas há outras espécies de perigos. Gostaríamos de indicar agora um deles, para consideração do Consórcio. O tom de Baruda recordou-lhe o de Vaygay ao almoço, dias antes. Que andava a preocupar os Soviéticos? — Ouvimos o acadêmico Lunacharsky, a doutora Arroway e outros cientistas concordarem em que estamos a receber as instruções para construir uma máquina complexa. Suponhamos que, como toda a gente parece esperar, o fim da Mensagem chega; a Mensagem recicla, volta ao princípio e nós recebemos a introdução — a palavra inglesa é primer, não é? — que nos permite lê-la. Suponhamos também que continuamos a cooperar inteiramente, todos nós. Permutamos todos os dados, todas as fantasias, todos os sonhos. «Ora os seres de Vega não estão a enviar-nos estas instruções para se divertirem. Eles querem que construamos uma máquina. Talvez nos digam o que se destina a máquina a fazer. Talvez não. Mas, mesmo que digam, porque haveremos de acreditar neles? Por isso confesso a minha própria fantasia, o meu próprio sonho. Não é um sonho feliz. E se a máquina for um Cavalo de Tróia? Nós construímo-la com grande dispêndio, ligamo-la e, de súbito, sai dela um exército invasor. Ou se — outra hipótese — for uma Máquina do Fim do Mundo? Construímo-la, ligamo-la e a Terra explode. Talvez seja esta a maneira de eles suprimirem civilizações que começam a emergir no cosmo. Não custaria muito caro; pagariam apenas um telegrama e a civilização nascente destruir-se-ia obedientemente. «O que vou perguntar é apenas uma sugestão, um ponto para conversarmos. Apresento-o à vossa consideração. Pretendo que seja construtivo. Neste caso, todos nós compartilhamos o mesmo planeta, temos todos os mesmos interesses. Não duvido de que vou levantar a questão com demasiada contundência. Eis a minha pergunta: seria melhor queimar os dados e destruir os radiotelescópios? Houve agitação. Muitas delegações pediram simultaneamente para serem ouvidas. Em vez disso, os co-presidentes da conferência pareceram principalmente motivados para recordar aos delegados que as sessões não deveriam ser gravadas nem vídeo-gravadas. Não deveriam ser concedidas quaisquer entrevistas à imprensa. Haveria comunicados diários para a imprensa, elaborados de acordo com os co-presidentes e os chefes das delegações. Até mesmo os tegumentos da presente discussão teriam de permanecer restritos àquela câmara de conferências. Diversos delegados pediram clarificação à presidência. — Esse Baruda tem razão acerca de um Cavalo de Tróia ou de uma Máquina do Fim do Mundo, gritou um delegado holandês, «não é nosso dever informar o público?» Mas não lhe fora dada a palavra e o seu microfone não tinha sido ativado. Prosseguiram para outros assuntos mais urgentes. Ellie carregara rapidamente numa tecla do terminal do computador institucional à sua frente, para conseguir uma posição nos primeiros lugares da bicha. Descobriu que ficou em segundo lugar, depois de Sukhavati e antes de um dos delegados chineses. Ellie conhecia vagamente Devi Sukhavati. Mulher imponente dos seus quarenta e cinco anos, usava penteado ocidental, sapatos decotados, de salto alto e sem calcanhar, e vestia um exótico sari de seda. Inicialmente formada como médica, tornara-se uma das principais especialistas indianas em biologia molecular e agora repartia o seu tempo entre o King’s College, Cambridge, e o Instituto Tata, em Bombaim. Fazia parte do punhado de membros indianos da Royal Society de Londres e constava estar politicamente bem colocada. Tinham-se encontrado pela última vez havia alguns anos num simpósio internacional em Tóquio, antes de a recepção da Mensagem ter eliminado os forçosos pontos de interrogação dos títulos de alguns dos seus ensaios científicos. Ellie ressentira uma afinidade mútua, apenas em parte devida ao ato de se contarem entre as poucas mulheres participantes em reuniões científicas sobre vida extraterrestre. — Reconheço que o acadêmico Baruda levantou uma questão importante e sensível — começou Sukhavati — e seria estúpido afastar de ânimo leve a possibilidade do Cavalo de Tróia. Tendo em consideração uma grande parte da história recente, é uma idéia natural, e surpreende-me que tenha decorrido tanto tempo antes de ser apresentada. No entanto, gostaria de recomendar cautela quanto a semelhantes receios. É extremamente improvável que os seres de um planeta da estrela Vega se encontrem exatamente no nosso nível de avanço técnico. Nem mesmo no nosso planeta as culturas evoluem ao mesmo ritmo e ao mesmo tempo. Umas começam mais cedo, outras mais tarde. Reconheço que algumas culturas podem recuperar o atraso, pelo menos tecnologicamente. Quando havia civilizações avançadas na Índia, na China, no Iraque e no Egito, havia, quando muito, nômades da idade do ferro na Europa e na Rússia e culturas da idade da pedra na América. «Mas as diferenças de tecnologias serão muito maiores nas circunstâncias presentes. É provável que os extraterrestres estejam muito adiantados em relação a nós, com certeza mais do que algumas centenas de anos — talvez milhares de anos à nossa frente, ou até milhões. Ora peço-vos que compareis isso com o ritmo do avanço tecnológico humano no último século. «Eu cresci numa minúscula aldeia do Sul da Índia. No tempo da minha avó, a máquina de costura de pedal era um prodígio tecnológico. De que seriam capazes seres que estão milhares de anos a nossa frente? Ou milhões de anos? Como um filósofo do nosso lado do mundo disse uma vez: «Os artefatos de uma civilização extraterrestre suficientemente avançada seriam indistinguíveis da magia.» «Não podemos constituir absolutamente nenhuma ameaça para eles. Não têm nada a recear de nós, e assim continuará a ser durante muito tempo. Este não é nenhum confronto entre Gregos e Troianos, que estavam eqüitativamente equiparados. Isto não é nenhum filme de ficção científica em que seres de diferentes planetas lutam com armas similares. Se eles desejam destruir-nos, podem certamente fazê-lo com ou sem a nossa coope… — Mas por que preço? — interrompeu alguém da assistência. — Não compreende? A questão é essa. Baruda diz que as nossas transmissões de televisão para o espaço são a sua informação de que chegou a altura de nos destruírem, e a Mensagem é o meio. As expedições punitivas são caras. A Mensagem é barata. Ellie não conseguiu distinguir quem gritara esta intervenção. Pareceu-lhe ser alguém da delegação britânica. As suas observações não tinham sido amplificadas pelo sistema áudio, porque, mais uma vez, a presidência não lhe concedera o direito de falar. Mas a acústica do salão de conferências era suficientemente boa para permitir que tivesse sido ouvido com toda a clareza. Der Heer, na presidência, tentava manter a ordem. Abukhimov inclinou-se e murmurou qualquer coisa a um ajudante. — Pensa que existe perigo em construir a máquina — respondeu Sukhavati. — Eu penso que existe perigo em não a construir. Envergonhar-me-ia do nosso planeta se voltássemos as costas ao futuro. Os seus antepassados — apontou um dedo ao autor da intromissão — não foram tão temerosos quando se fizeram pela primeira vez à vela para a Índia ou para a América. A reunião estava a ficar cheia de surpresas, pensou Ellie, embora duvidasse que Clive ou Raleigh fossem os melhores modelos-exemplo para a tomada de decisão presente. Talvez Sukhavati estivesse apenas a beliscar os Ingleses por conta de passadas ofensas coloniais. Aguardou que a luzinha verde se acendesse na sua consola, a indicar que o seu microfone estava ativado e podia falar. — Senhor Presidente — ouviu-se dirigir-se, naquele tom formal e público, a Der Heer, que mal vira nos últimos dias. Tinham combinado passar a tarde do dia seguinte juntos, durante um intervalo da conferência, e ela sentia uma certa ansiedade a respeito do que iriam dizer. Livra, pensamento negativo, pensou. — Se for Presidente, creio que podemos lançar alguma luz sobre estas duas questões: o Cavalo de Tróia e a Máquina do Fim do Mundo. Tencionava discutir isso amanhã de manhã, mas agora parece, sem dúvida, relevante. Tocou na sua consola, nalgumas teclas de números de código, para apresentação de alguns dos seus dispositivos. O grande salão espelhado escureceu. — O doutor Lunacharsky e eu estamos convencidos de que estas são projeções diferentes da mesma configuração tridimensional. Mostramos ontem toda a configuração em rotação simulada por computador. Pensamos, embora não possamos ter a certeza, que este será o aspecto que o interior da máquina terá. Ainda não há nenhuma indicação clara de escala. Talvez tenha um quilômetro de lado a lado, talvez seja submicroscópica. Mas reparem nestes cinco objetos regularmente espaçados à volta da periferia da principal câmara interior, dentro do dodecaedro. Aqui está um grande plano de um deles. São as únicas coisas da câmara que parecem reconhecíveis. «Isto parece ser uma vulgar cadeira de braços excessivamente estofada, perfeitamente configurada para um ser humano. É muito improvável que seres extraterrestres, que evoluíram noutro mundo completamente diferente, se pareçam conosco o suficiente para compartilharem as nossas preferências no tocante a mobília de sala de estar. Olhem, vejam este grande plano. Parece um objeto qualquer do quarto de hóspedes da minha mãe, quando eu estava a crescer. Na verdade, quase parecia ter uma cobertura florida de proteção. Experimentou um pequeno sentimento de culpa. Esquecera-se de telefonar à mãe antes de partir para a Europa e, verdade fosse dita, só lhe telefonara uma ou duas vezes desde que a Mensagem fora recebida. Ellie, como és capaz de proceder assim? — repreendeu-se mentalmente. Olhou de novo para os gráficos do computador. A simetria quintuplicada do dodecaedro refletia-se nas cinco cadeiras do interior, cada uma voltada para uma superfície pentagonal. — Assim, é nossa opinião — do doutor Lunacharsky e minha — que as cinco cadeiras se destinam a nós. São para pessoas. Isso significaria que a câmara interior da máquina tem apenas alguns metros de largura e o exterior talvez dez ou vinte metros. A tecnologia é indubitavelmente formidável, mas não cremos estar a falar da construção de uma coisa do tamanho de uma cidade. Ou tão complexa como um porta-aviões. Poderemos ser muito capazes de construir isto, seja lá o que for, se trabalharmos todos juntos. «O que estou a tentar dizer é que não se metem cadeiras dentro de uma bomba. Não penso que se trate de uma Máquina do Fim do Mundo ou de um Cavalo de Tróia. Concordo com o que a doutora Sukhavati disse, ou talvez tenha apenas insinuado; a idéia de que isto é um Cavalo de Tróia constitui por si mesma uma indicação do muito caminho que temos de percorrer. Houve de novo um protesto. Mas desta vez Der Heer não fez nenhum esforço para o deter; pelo contrário, ligou até o microfone da pessoa em questão. Era o mesmo delegado que interrompera Sukhavati poucos minutos antes, Hili Edenbaugh, do Reino Unido, um ministro do Partido trabalhista no periclitante Governo de coligação. — … simplesmente não compreendem qual é a nossa preocupação. Se fosse literalmente um cavalo de madeira, não nos sentiríamos tentados a levar o engenho alienígena para dentro das portas da cidade. Lemos o nosso Homero. Mas embonequem-no com alguns estofos, e as nossas suspeitas desaparecem. Por quê? Porque estamos a ser lisonjeados. Ou subornados. Há uma aventura histórica implícita. Há a promessa de novas tecnologias. Há uma sugestão de aceitação por — como dizer? — seres maiores. Mas eu digo que, sejam quais forem as grandiosas fantasias que os radioastrônomos possam acalentar, se houver nem que seja uma minúscula possibilidade de a máquina ser um meio de destruição, ela não deverá ser construída. Melhor, como o delegado soviético propôs, devem-se queimar as gravações dos dados e considerar a construção de radiotelescópios um crime capital. A conferência estava a tornar-se ingovernável. Dezenas de delegados punham-se eletronicamente na fila, à espera de autorização para falar. O murmúrio inicial subiu para um barulho abafado que recordou a Ellie anos de escuta de estática radioastronômica. Não parecia fácil chegar-se a um consenso e os co-presidentes eram visivelmente incapazes de conter os delegados. Quando o delegado chinês se levantou para falar, os vitagráficos demoraram a aparecer no écran de Ellie, que olhou em redor à procura de ajuda. Também não fazia nenhuma idéia de quem aquele homem era. Ngnyen «Bobby» Bui, funcionário do «National Security Council» agora ao serviço de Der Heer, inclinou-se e disse: «Chama-se Xi Qiaomu. Tipo durão. Nascido na Longa Marcha. Voluntário, ainda antes dos vinte anos, na Coréia. Funcionário governamental de caráter principalmente político. Afastado e caído em desgraça na Revolução Cultural. Presentemente, membro do Comitê Central. Muito influente. Tem sido falado ultimamente nos meios de comunicação. Também dirige as escavações arqueológicas chinesas.» Xi Qiaomu era um homem alto, de ombros largos e dos seus sessenta anos. As rugas do seu rosto faziam-no parecer mais velho, mas a sua postura e o seu físico davam-lhe um aspecto quase juvenil. Usava a túnica abotoada no colarinho, à maneira tão obrigatória para os líderes políticos chineses como os fatos de três peças para os líderes governamentais americanos — excluindo a presidente, claro. Os vitagráficos chegaram finalmente à consola de Ellie, que se lembrou de ter lido um extenso artigo acerca de Xi Qiaomu numa das revistas de vídeo. — Se estamos assustados — dizia ele —, não fazemos nada. Isso demorá-los-á um pouco. Mas, lembrai-vos, eles sabem que estamos aqui. A nossa televisão chega ao seu planeta. Todos os dias lhes somos lembrados. Tendes reparado nos nossos programas de televisão? Eles não nos esquecerão. Se não fizermos nada e se eles estiverem preocupados conosco, chegarão até nós, com máquina ou sem máquina. Não nos podemos esconder deles. Se tivéssemos ficado calados, não enfrentaríamos este problema. Se tivéssemos apenas TV-cabo e nenhum grande radar militar, então talvez eles não soubessem da nossa existência. Mas agora é tarde de mais. Não podemos voltar atrás. O nosso rumo está traçado. «Se estais seriamente assustados com a possibilidade de esta máquina destruir a Terra, não a construais na Terra. Fazei-a noutro lado qualquer. Assim, se for uma Máquina do Fim do Mundo e fizer o mundo ir pelos ares… não será o nosso mundo. Mas isso será muito dispendioso. Provavelmente demasiado dispendioso. Ou, se não estamos assim tão assustados, fazei-a em qualquer deserto isolado. Poderá haver uma explosão muito grande no deserto de Takopi, na província de Xinjing, sem morrer ninguém. E, se não estamos nada assustados, podemos construí-la em Washington. Ou em Moscovo. Ou em Beijing. Ou nesta bela cidade. «Na China antiga chamava-se Chih Neu a Vega e a duas estrelas próximas. Chih Neu quer dizer a jovem mulher e a roca. «É um símbolo auspicioso, uma máquina para fazer roupas novas para as pessoas da Terra. «Recebemos um convite. Um convite muito fora do vulgar. Talvez seja para irmos a um banquete. A Terra nunca foi convidada para um banquete antes. Seria descortês recusar. CAPÍTULO XII O isômero delta-um Olhar as estrelas faz-me sempre sonhar, tão simplesmente como sonho vendo os pontos pretos que representam cidades e aldeias num mapa. Por que motivo, pergunto a mim próprio, não hão-de os pontos brilhantes do céu ser tão acessíveis como os pontos pretos do mapa da França?      VINCENT VAN GOGH Estava uma esplêndida tarde de Outono, com um calor tão impróprio da estação que Devi Sukhavati não trouxera casaco. Ela e Ellie caminhavam ao longo dos Campos Elíseos, cheios de gente, na direção da Praça da Concórdia. A diversidade étnica só tinha rival em Londres, Manhattan e poucas outras cidades do planeta. Duas mulheres a caminhar juntas, uma de saia e camisola de malha e a outra de sari não constituíam de modo nenhum uma coisa invulgar. À porta de uma tabacaria havia uma comprida, disciplinada e poliglota bicha de pessoas atraídas pela primeira semana de venda legalizada de cigarros de Cannabis curada dos Estados Unidos da América. Nos termos da lei francesa, não podiam ser vendidos a, ou consumidos por, menores de dezoito anos. Muitos dos que se encontravam na bicha eram pessoas de meia-idade e mais velhas. Alguns talvez fossem argelinos ou marroquinos naturalizados. Sobretudo na Califórnia e no Oregão, cultivavam-se variedades especialmente potentes de Cannabis destinadas ao comércio de exportação. A primazia, ali, pertencia a uma estirpe nova e admirada, que, para mais, crescera num ambiente de luz ultravioleta que convertia alguns dos canabinóides inertes no isômero. Chamava-se beijado-pelo-Sol. A embalagem, ilustrada numa montra com metro e meio de altura, apresentava, em francês, a frase publicitária «Isto será deduzido da sua parte no Paraíso». As montras dos estabelecimentos ao longo do bulevar eram uma orgia de cor. As duas mulheres compraram castanhas a um vendedor ambulante e maravilharam-se com o seu sabor e a sua consistência. Por qualquer razão, todas as vezes que Ellie via um letreiro de propaganda do BNP, o Banque Nationale de Paris, lia-o como a palavra russa correspondente a cerveja, com a letra do meio invertida da esquerda para a direita. CERVEJA, os letreiros — ultimamente deturpados das suas vocações fiduciárias respeitáveis e habituais — pareciam instigá-la, CERVEJA RUSSA. A incongruência divertia-a, e só com dificuldade conseguia convencer a parte do seu cérebro encarregada da leitura de que estava perante o alfabeto latino, e não o alfabeto cirílico. Mais adiante maravilharam-se com L’Obélisque — um antigo memorial militar expropriado com grandes custos para se tornar num memorial militar moderno. Resolveram continuar a andar. Der Heer furtara-se ao encontro marcado, ou, pelo menos, procedera de maneira que dera no mesmo. Telefonara-lhe de manhã, apologético, mas não desesperadamente. Estavam a ser levantadas excessivas questões políticas na sessão plenária. O secretário de Estado interrompia uma visita a Cuba e chegaria no dia seguinte, de avião. Der Heer estava ocupadíssimo, não tinha mãos a medir, e esperava que Ellie compreendesse. Ela compreendia. Detestava-se por dormir com ele. Para evitar uma tarde solitária, telefonara a Devi Sukhavati. — Uma das palavras que significam «vitorioso», em sânscrito, é abhijit. Era esse o nome de Vega na Índia antiga. Abhijit. Foi sob a influência de Vega que as divindades hindus, os heróis da nossa cultura, venceram os asuras, os deuses do mal. Está a ouvir, Ellie?… É curioso: na Pérsia também há asuras, mas lá os asuras eram os deuses do bem. Eventualmente, surgiram religiões em que o deus principal, o deus da luz, o deus Sol, se chamava Ahura-Mazda. Os zoroastrianos, por exemplo, e os mitraístas. Ahura, Asura, é o mesmo nome. Hoje ainda há zoroastrianos, e os mitraístas deram uma boa luta aos primeiros cristãos. Mas, nesta mesma história, essas divindades hindus — eram principalmente femininas, diga-se de passagem — chamavam-se devis. É essa a origem do meu próprio nome. Na Índia, os devis são deuses do bem. Na Pérsia, os devis tornaram-se deuses do mal. Alguns eruditos pensam que foi daí que acabou por derivar a palavra inglesa devil. Tudo isto é, provavelmente, algum retrato vagamente recordado da invasão ariana que empurrou os Drávidas, meus antepassados, para o sul. Assim, consoante o lado da cordilheira de Kirthar em que uma pessoa vive, Vega apóia quer Deus, quer o Diabo. Esta história engraçada tinha sido contada como uma espécie de dádiva feita por Devi, que, parecia evidente, ouvira dizer alguma coisa a respeito das aventuras religiosas de Ellie na Califórnia, duas semanas atrás. Ellie sentiu-se grata. Mas a história recordou-lhe que não mencionara sequer a Joss a possibilidade de a Mensagem ser o projeto de uma máquina para fins desconhecidos. Agora ele não tardaria a ouvir falar de tudo aquilo através dos media. Devia, sem dúvida, disse severamente a si mesma, fazer um telefonema transcontinental para lhe explicar a nova evolução do caso. Mas constava que Joss estava em reclusão. Não prestara nenhuma declaração pública após o encontro de ambos em Modesto. Rankin anunciara numa conferência de imprensa que, embora pudesse haver alguns perigos, não se opunha a que os cientistas recebessem a Mensagem completa. Mas a sua interpretação era outra coisa. Impunha-se uma verificação periódica por todos os segmentos da sociedade, declarou, especialmente por aqueles a quem estava confiada a salvaguarda dos valores morais e espirituais. Aproximavam-se agora dos Jardins das Tulherias, onde se exibiam as tonalidades extravagantes do Outono. Homens idosos e frágeis — Ellie pensou que fossem do Sudeste asiático — discutiam. Balões multicores, para venda, ornamentavam os portões pretos de ferro forjado. No centro de um tanque de água erguia-se uma Anfitrite de mármore, à volta da qual corriam veleiros de brincar, incitados por um exuberante grupo de garotos com aspirações magalianas. De súbito, um peixe-gato irrompeu a água, afundou o barquinho da frente e os rapazes e as raparigas ficaram emudecidos, coagidos por aquela aparição completamente inesperada. O Sol estava baixo, a ocidente, e Ellie sentiu um arrepio momentâneo. Aproximaram-se de L’Orangerie, no anexo da qual decorria uma exposição especial, conforme o cartaz proclamava: «images Martiennes». Os veículos-robots americano-franco-soviéticos que percorriam Marte tinham proporcionado uma abundância espetacular de fotografias coloridas, algumas delas — como as imagens do sistema solar exterior obtidas pela Voyager cerca de 1980 — subindo muito acima do seu mero objetivo científico e transformando-se em arte. O cartaz apresentava uma paisagem fotografada no imenso planalto Elíseo. No primeiro plano via-se uma pirâmide trilateral, lisa, muito erodida, com uma cratera de impacto perto da base. Fora produzida por milhões de anos de fustigação pela areia atirada a grandes velocidades pelos agrestes ventos marcianos, tinham dito os geólogos planetários. Um outro lado de Marte atolara-se numa duna formada pelos ventos e os seus controladores em Pasadena haviam, até então, sido incapazes de atender os seus tristes pedidos de socorro. Ellie deu consigo de atenção fixa no aspecto de Sukhavati: nos seus enormes olhos pretos, no seu porte ereto e em mais um suntuoso sari. Pensou para consigo: não sou graciosa. Geralmente, era capaz de desempenhar o seu papel numa conversa enquanto mentalmente debatia outros assuntos. Naquele dia, porém, tinha dificuldade em acompanhar uma linha de pensamento, quanto mais duas. Ao mesmo tempo que discutiam os méritos das várias opiniões sobre se era ou não de construir a Máquina, a sua mente voltou à imagem dada por Devi da invasão ariana da Índia três mil e quinhentos anos antes: uma guerra entre dois povos, cada um dos quais proclamava a vitória, cada um dos quais exagerava patrioticamente os acontecimentos históricos. Eventualmente, a estória transforma-se numa guerra de deuses. O «nosso» lado, evidentemente, é bom. O outro lado, evidentemente, é mau. Imaginou o Demônio do Ocidente, de barbicha de bode, cauda em forma de pá e fissípide, a evoluir, em lentos passos evolutivos ao longo de milhares de anos, de algum antecessor hindu, que, por tudo quanto ela sabia, podia ter cabeça de elefante e ser pintado de azul. — O Cavalo de Tróia de Baruda… talvez não seja uma idéia totalmente pateta — ouviu-se dizer. — Mas acho que não temos nenhuma alternativa, como o Xi disse. Eles podem estar aqui dentro de vinte e tal anos, se quiserem. Chegaram a um arco monumental de estilo romano encimado por uma estátua heróica, até mesmo apoteótica, de Napoleão representado como auriga. De uma visão distante, de uma perspectiva extraterrestre, como era patética aquela postura. Descansaram num banco próximo, com as sombras compridas projetadas num canteiro de flores com as cores da República Francesa. Ellie ansiava por discutir o seu problema emocional, mas isso poderia ter implicações políticas. Seria, no mínimo, imprudente. Não conhecia Sukhavati muito bem. Em vez disso, encorajou a companheira a falar da vida pessoal dela. Sukhavati aquiesceu sem hesitar. Nascera numa família brâmane, mas não próspera, com tendências matriarcais, no estado meridional de Tamil Nadu. As famílias matriarcais ainda eram comuns em todo o Sul da Índia. Matriculara-se na Universidade Hindu de Banares. Na Escola Médica, em Inglaterra, conhecera e apaixonara-se profundamente por Surindar Ghosh, um colega estudante de Medicina. Mas Surindar era um harijan, um intocável, de uma casta tão detestável que o simples fato de os ver era considerado por brâmanes ortodoxos como conspurcador. Os antepassados de Surindar tinham sido obrigados a levar uma existência noturna, como morcegos e mochos. A família dela ameaçara renegá-la se casassem. O pai afirmava que filha capaz de considerar semelhante união não era sua. Mas ela desposou-o, mesmo assim. «Estávamos demasiado apaixonados», explicou. «Eu não tinha, realmente, nenhuma alternativa.» Passado um ano, ele morrera de septicemia contraída ao efetuar uma autópsia sob supervisão inadequada. No entanto, em vez de a reconciliar com a família, a morte de Surindar tivera o resultado oposto, e, depois de se licenciar em Medicina, ela resolvera ficar em Inglaterra. Descobrira uma vocação natural para a biologia molecular e considerara-a uma continuação fácil dos seus estudos médicos. Não tardou a verificar que possuía verdadeiro talento para aquela minuciosa disciplina. O conhecimento da replicação do ácido nucléico levou-a a trabalhos sobre a origem da vida, e isso, por sua vez, a considerar a possibilidade de vida noutros planetas. — Pode-se dizer que a minha carreira científica foi uma seqüência de associações de idéias. Uma coisa conduziu, simplesmente, a outra. Recentemente estivera a trabalhar na caracterização de matéria orgânica marciana, medida nalguns lugares de Marte pelos mesmos veículos-robots cuja espantosa produção fotográfica tinham acabado de ver anunciada. Devi não voltara a casar, embora tenha dado claramente a entender que alguns a tinham pretendido. Ultimamente tivera encontros com um cientista de Bombaim que descrevia como um «rallah»[11 - Palavra anglo-indiana designativa de alguém com determinada ocupação. (N. da T.)] de computadores». Caminharam um pouco mais e encontraram-se no Cour Napoléon, o pátio interior do Museu do Louvre. No seu centro encontrava-se a recém-completada e tremendamente controversa entrada piramidal e em nichos altos à volta do pátio viam-se representações escultóricas dos heróis da civilização francesa. Legendado sob cada estátua de um homem reverenciado — encontraram pouca evidência de mulheres reverenciadas — encontrava-se o seu apelido. Ocasionalmente viam-se letras deformadas — pela erosão natural do tempo, algumas, ou, em poucos casos, apagadas por algum transeunte ofendido. Em uma ou duas estátuas era difícil decifrar quem fora o sábio. Na estátua que, visivelmente, provocara o maior ressentimento público só restavam as letras Lrn. Embora o Sol estivesse a pôr-se e o Louvre permanecesse aberto até meio do anoitecer, elas não entraram. Em vez disso, foram andando pela margem do Sena, seguindo o rio, no regresso, ao longo do Quai d’Orsay. Os proprietários das barracas de livros corriam taipais e fechavam a loja por aquele dia. Foram andando assim um bocado, de braço dado à maneira européia. Um casal francês caminhava poucos passos à sua frente, segurando cada um dos componentes a mão da filha, uma menina dos seus quatro anos que periodicamente se erguia do passeio. Na sua momentânea suspensão em g zero experimentava, via-se perfeitamente, algo parecido com êxtase. Os pais falavam do Consórcio Mundial da Mensagem, o que dificilmente se poderia considerar uma coincidência, visto que os jornais a pouco mais se referiam. O homem era pela construção da Máquina; podia criar novas tecnologias e aumentar a taxa de empregos em França. A mulher parecia mais cautelosa, mas por razões que tinha dificuldade em exprimir. A filha, de tranças a voar, mostrava uma despreocupação absoluta com o destino a dar a um projeto de construção vindo das estrelas. Der Heer, Kitz e Honicutt tinham convocado uma reunião na Embaixada americana para o princípio da manhã seguinte, a fim de se prepararem para a chegada do secretário de Estado, que se verificaria nesse mesmo dia, mais tarde. A reunião seria confidencial e realizar-se-ia na Sala Preta da Embaixada, uma câmara eletromagneticamente isolada do mundo exterior e que tornava impossível até mesmo a observação eletrônica sofisticada. Ou, pelo menos, assim se afirmava. Ellie pensava que talvez tivesse sido criada instrumentação capaz de contornar e superar essas precauções. Depois de passar a tarde com Devi Sukhavati, recebera o recado e tentara telefonar a Der Heer, mas só conseguira contactar com Michael Kitz. Discordava, disse-lhe, de uma reunião confidencial sobre aquele assunto; era uma questão de princípio. A Mensagem era claramente endereçada a todo o planeta. Kitz respondeu-lhe que não estavam a ser sonegados quaisquer dados ao resto do mundo, pelo menos pelos Americanos, e que a reunião era de natureza meramente consultiva, para ajudar os Estados Unidos nas difíceis negociações processuais que se seguiriam. Apelou para o patriotismo dela, para o seu interesse próprio, e; por fim, invocou de novo a decisão Hadden. «Tanto quanto sei, essa coisa continua fechada no seu cofre por ler. Leia-a.» recomendou. Ela tentou, novamente em vão, comunicar com Der Heer. Primeiro, o indivíduo aparece por todos os cantos das instalações Argus, como uma moeda falsa. Muda-se para o teu apartamento. Tens a certeza, pela primeira vez em muitos anos, de que estás apaixonada. Mas, de repente, não consegues sequer levá-lo a atender o telefone. Resolveu assistir à reunião, quanto mais não fosse para se encontrar com Ken cara a cara. Kitz era entusiasticamente pela construção da Máquina, Drumlin cautelosamente a favor, Der Heer e Honicutt sem opinião, pelo menos exteriormente, e Peter Valerian angustiadamente indeciso. Kitz e Drumlin até já falavam a respeito do lugar onde construí-la. Só os custos de transporte tornavam a construção, ou sequer a montagem, do lado mais distante da Lua proibitivamente elevada, como Xi calculara. — Se utilizarmos travagem aerodinâmica, sairá mais barato enviar um quilograma para Phobos ou Deimos do que para o lado mais distante da Lua — opinou Bobby Bui. — Onde diabo fica Fobusódimos? — perguntou Kitz. — São as luas de Marte. Eu estava a falar de travagem aerodinâmica na atmosfera marciana. — E quanto tempo é preciso para chegar a Phobos ou Deimos? — indagou Drumlin, a mexer o café. — Talvez um ano, mas, assim que tivermos uma esquadra de veículos de transferência interplanetária e o pipeline estiver cheio… — Um ano comparado com três dias para a Lua? — resmungou Drumlin. — Bui, deixe de nos fazer perder tempo. — Foi apenas uma sugestão — protestou o outro. — Compreendem, apenas uma coisa a pensar. Der Heer parecia impaciente, desatento. Era evidente que se encontrava sob grande tensão, evitando alternadamente os olhos dela e — parecia-lhe — fazendo-lhe um apelo mudo qualquer. Ellie considerou isso um sinal de esperança. — Se querem preocupar-se com Máquinas do Fim do Mundo — dizia Drumlin —, têm de se preocupar com provisões de energia. Se não tiver acesso a uma enorme quantidade de energia, não poderá ser uma Máquina do Fim do Mundo. Por isso, enquanto as instruções não exigirem um reator nuclear de um gigavátio, não acho que tenhamos de nos preocupar com Máquinas do Fim do Mundo. — Por que têm vocês tanta pressa de começar a construção? — perguntou Ellie a Kitz e Drumlin conjuntamente. Eles estavam sentados ao lado um do outro, com um prato de croissants no meio. Kitz olhou de Honicutt para Der Heer antes de responder: — Esta reunião é confidencial — começou. — Todos nós sabemos que não transmitirá aos seus amigos russos nada do que se disser aqui. Trata-se do seguinte: ignoramos o que a Máquina fará, mas é evidente, pela análise do Dave Drumlin, que contém nova tecnologia, provavelmente novas indústrias. Construir a Máquina terá necessariamente valor econômico… quero dizer, pense no que aprenderíamos. E poderia ter valor militar. Pelo menos é isso que os Russos pensam. Veja, os Russos estão entalados. Aqui está toda uma nova área de tecnologia que vão ter de compartilhar com os Estados Unidos. Talvez haja, na Mensagem, instruções para alguma arma decisiva, ou então alguma vantagem econômica. Não podem ter a certeza. Terão de estourar com a sua economia a experimentar. Notou a insistência com que Baruda se referiu ao que era custo efetivo? Se todo este material da Mensagem desaparecesse — queimem os dados, destruam os telescópios —, os Russos poderiam manter a paridade militar. É por isso que estão tão cautelosos. Conseqüentemente, claro, é por isso que nós estamos cheios de entusiasmo para avançar. — Sorriu. Temperamentalmente, Kitz era desumano, pensou Ellie; mas estava longe de ser estúpido. Quando se mostrava frio e retraído, as pessoas tinham tendência para antipatizar com ele. Por isso cultivara um verniz ocasional de afabilidade urbana. Na opinião dela, era uma camada de verniz monomolecular. — Agora permita que eu lhe faça uma pergunta — continuou ele. — Detectou a observação de Baruda acerca de sonegar alguns dos dados? Faltam dados? — Apenas muito ao princípio. Creio que apenas das primeiras semanas. Houve algumas lacunas na cobertura chinesa um pouco depois disso. Ainda há uma pequena quantidade de dados que não foram permutados em todas as partes. Mas não detecto quaisquer indícios de sonegação grave. De qualquer modo, colmataremos quaisquer brechas depois de a Mensagem reciclar. — Se a Mensagem reciclar — rosnou Drumlin. Der Heer moderou um debate sobre planejamento contingencial: que fazer quando o manual fosse recebido; que indústrias americanas, alemãs e japonesas notificar com antecedência sobre possíveis projetos de desenvolvimento importantes; como identificar cientistas e engenheiros-chave para construir a Máquina se fosse tomada a decisão de ir para a frente; e, em breve, a necessidade de suscitar entusiasmo pelo projeto no Congresso e junto do público americano. Der Heer apressou-se a acrescentar que se tratava apenas de planos contingenciais, que não estava a ser tomada nenhuma decisão final, e que não restavam dúvidas de que as preocupações soviéticas a respeito de um Cavalo de Tróia eram, pelo menos, parcialmente genuínas. Kitz fez perguntas a respeito da composição da «tripulação». — Eles estão a pedir-nos que sentemos pessoas em cinco cadeiras estofadas. Que pessoas? Como vamos decidir? Provavelmente terá de ser uma tripulação internacional. Quantos americanos? Quantos russos? Mais alguém? Não sabemos o que acontecerá a essas cinco pessoas quando se sentarem nessas cadeiras, mas queremos dispor dos melhores homens para a missão. Ellie não mordeu a isca e ele continuou: — Um grande problema vai ser quem paga o quê, quem constrói o quê, quem se encarrega da integração de sistemas globais. Creio que podemos regatear no duro a este respeito, a troco de significativa representação americana na tripulação. — Mas continuamos interessados em enviar as melhores pessoas que for possível — observou Der Heer, um pouco obviamente. — Sem dúvida — redargüiu Kitz —, mas que quer significar com «melhores»? Cientistas, pessoas com antecedentes de informação militar? Força física e resistência? Patriotismo? (Não é uma palavra feia, bem sabem.) E depois — levantou os olhos do croissant em que estava a espalhar manteiga e olhou a direito para Ellie, — há a questão do sexo. Quero dizer, dos sexos. Mandamos apenas homens? Se forem homens e mulheres, terão de ser mais de um sexo do que do outro. Há cinco lugares, um número ímpar. Todos os membros da tripulação trabalharão bem juntos? Se formos para a frente com este projeto, haverá muito que negociar, e duramente. — Isto não me parece certo — declarou Ellie. — Não se trata de nenhuma embaixada que se compre com uma contribuição para uma campanha eleitoral. Isto é um assunto sério. Ademais, quer lá em cima algum idiota cheio de músculo, algum garoto de vinte e poucos anos que não sabe nada acerca do modo como o mundo funciona, que sabe apenas como participar numa respeitável corrida de cem metros e obedecer a ordens? Ou algum mercenário político? Esta viagem não pode estar relacionada com coisas dessas. — Não, tem razão — concordou Kitz, a sorrir. — Acho que arranjaremos pessoas que satisfaçam os nossos critérios. Der Heer, com os papos sob os olhos a tornarem-no quase desfigurado, declarou a reunião encerrada. Conseguiu transmitir a Ellie um pequeno sorriso íntimo, mas um sorriso só de lábios, sem dentes à mostra. As limousines da Embaixada aguardavam para os levar ao Palácio do Eliseu. — Eu explico-lhes por que motivo seria melhor enviar russos — dizia Vaygay. — Quando vocês, Americanos, desbravaram o vosso país — pioneiros, caçadores de armadilha, batedores índios e tudo isso —, não encontraram oposição, pelo menos de ninguém ao vosso nível de tecnologia. Correram através do continente, do Atlântico ao Pacífico. Passado algum tempo contavam que tudo seria fácil. A nossa situação foi diferente. Nós fomos vencidos pelos Mongóis. A sua tecnologia eqüestre era muito superior à nossa. Quando nos expandimos para leste, fomos cuidadosos. Nunca atravessamos o deserto contando que seria fácil. Estamos mais adaptados à adversidade do que vocês. Além disso, os Americanos estão habituados a estar tecnologicamente à frente. Nós estamos habituados a alcançar quem está tecnologicamente à nossa frente. Ora toda a gente da Terra é um russo — compreenda, refiro-me a ser um russo na nossa situação histórica. Esta missão precisa de soviéticos mais do que de americanos. O simples fato de se encontrar com ela a sós acarretava certos riscos para Vaygay — e também para ela, como Kitz fizera questão de lhe lembrar. Às vezes, num encontro científico na América ou na Europa, Vaygay era autorizado a passar uma tarde com ela. Mais freqüentemente, porém, era acompanhado por colegas ou por um baby-sitter KGB que era descrito como intérprete, mesmo quando o seu inglês era claramente inferior ao de Vaygay, ou como cientista do secretariado desta ou daquela comissão da Academia, apesar de o seu conhecimento dos assuntos científicos se revelar muitas vezes superficiais. Vaygay abanava a cabeça quando interrogado a respeito deles. Mas, de modo geral, considerava os baby-sitters uma parte do jogo, o preço a pagar quando deixavam uma pessoa visitar o Ocidente, e Ellie teve a impressão de detectar mais de uma vez uma nota de afeto na voz de Vaygay quando ele falava com o baby-sitter: ir a um país estrangeiro e fingir ser especialista numa matéria que se conhecia mal devia causar muita angústia. Talvez, lá muito no fundo, o baby-sitter detestasse tanto o seu papel como Vaygay. Estavam sentados à mesa junto da montra do Chez Dieux. Pairava no ar uma frescura inequívoca, uma premonição de Inverno, e um homem novo, cuja única concessão ao frio era um comprido cachecol azul, passou apressadamente pelas tinas de ostras geladas do lado de fora da montra. Pelas observações (incaracteristicamente) cautelosas e continuadas de Lunacharsky, Ellie deduziu que reinava a confusão na delegação soviética. Os Soviéticos receavam que a Máquina pudesse de algum modo redundar em vantagem estratégica para os Estados Unidos na competição global que durava havia cinco décadas. Vaygay ficara sinceramente escandalizado com a pergunta de Baruda quanto a queimarem-se os dados e destruírem-se os radiotelescópios. Não tivera nenhum conhecimento prévio da posição de Baruda. Os Soviéticos tinham desempenhado um papel vital na captação da Mensagem, com a maior cobertura em longitude de qualquer nação, frisou Vaygay, e tinham os únicos radiotelescópios verdadeiramente nacionais nos oceanos. esperavam, naturalmente, um papel importante fosse no que fosse que se seguisse. Ellie garantiu-lhe que, pela parte que lhe tocava, teriam esse papel. — Escute, Vaygay, eles sabem pelas nossas transmissões de televisão que a Terra gira e que há muitas nações diferentes. Só a transmissão dos Jogos Olímpicos deve ter bastado para lhes dizer isso. Transmissões posteriores de outras nações tê-lo-ão confirmado. Por isso, se são tão avançados como nós pensamos, podiam ter faseado as transmissões com a rotação da Terra, de modo que apenas uma nação recebesse a Mensagem. Optaram por não fazer isso. Querem que a Mensagem seja recebida por toda a gente do planeta. Este não pode ser um projeto exclusivamente americano ou exclusivamente russo. Não é isso que o nosso… cliente quer. Mas não tinha a certeza, acrescentou, de que viria a representar algum papel no tocante a decisões sobre a construção da Máquina ou a seleção dos seus tripulantes. Regressava aos Estados Unidos no dia seguinte, principalmente para se pôr em dia com os novos dados recebidos nas últimas semanas. As sessões plenárias do Consórcio pareciam intermináveis e não fora fixada nenhuma data para o seu encerramento. Vaygay fora solicitado pelos seus a ficar pelo menos um pouco mais de tempo. O ministro dos Estrangeiros acabava de chegar e chefiava agora a delegação soviética. — Receio que tudo isto acabe mal — disse ele. — Há tantas coisas que podem dar para o torto… Falhas tecnológicas. Falhas políticas. Falhas humanas. E, mesmo que consigamos superar tudo isso, mesmo que não desencadeemos uma guerra por causa da Máquina, mesmo que a construamos corretamente sem irmos pelos ares, mesmo assim continuarei preocupado. — Com quê? Que quer dizer? — O melhor que pode acontecer é julgarem que somos parvos. — Quem poderá julgar isso? — Não compreende, Arroway? — Uma veia do pescoço de Lunacharsky latejava. — Espanta-me que não o veja. A Terra é um… gueto. Sim, um gueto. Todos os seres humanos estão aqui encurralados. Ouvimos vagamente dizer que há lá fora grandes cidades, para além do gueto, com bulevares largos cheios de droshkys[12 - Carruagem aberta de quatro rodas, puxada a cavalos, antigamente usada na Rússia. (N. da T.)] e bonitas mulheres perfumadas e vestidas de peles. Mas as cidades estão muito, muito longe, e nós somos muito, muito pobres para alguma vez lá podermos ir, até mesmo os mais ricos dentre nós. Aliás, sabemos que eles não nos querem. Foi por isso que, para começar, nos deixaram nesta patética aldeola. «E agora eis que chega um convite. Como o Xi disse. Delicado, elegante. Eles enviaram-nos um cartão impresso e um droshky vazio. Devemos enviar cinco aldeãos e o droshky levá-los-á a — quem sabe? — Varsóvia. Ou Moscovo. Talvez mesmo a Paris. Claro, alguns sentem-se tentados a ir. Haverá sempre gente que se sentirá lisonjeada com o convite, ou que julgará que se trata de uma maneira de fugir da nossa humilde aldeia. «E que pensa que acontecerá quando lá chegarmos? Pensa que o grão-duque nos convidará para jantar? Que o presidente da Academia nos fará perguntas interessantes acerca da vida quotidiana na nossa imunda aldeia? Imagina que o metropolitano ortodoxo russo travará conosco um debate sobre religião comparativa? «Não, Arroway. Nós olharemos embasbacados para a grande cidade e eles rir-se-ão de nós à socapa. Exibir-nos-ão aos curiosos. Quanto mais atrasados formos, melhor se sentirão, mais tranqüilos ficarão. «Será um sistema rotativo. De cinco em cinco séculos cinco de nós teremos direito a passar um fim-de-semana em Vega. Tenham piedade dos provincianos e façam com que eles saibam quem são os seus superiores.» CAPÍTULO XIII Babilônia Com os mais vis dos companheiros, percorri as ruas de Babilônia…      AGOSTINHO. Confissões, 2, 3 O computador mainframe[13 - Mainframe computer: computador de grandes dimensões e grande capacidade, com uma grande unidade central de processamento e uma grande memória. (N. da T.)] Cray 21 de Argus tinha sido instruído para comparar a colheita diária de dados de Vega com os primeiros registros do nível três do palimpsesto. Com efeito, uma longa e incompreensível seqüência de zeros e uns estava a ser automaticamente comparada com outra seqüência anterior semelhante. Isto fazia parte de uma intercomparação estatística maciça de vários segmentos do texto ainda não descriptografado. Havia algumas curtas seqüências de zeros e uns — os analisadores chamavam-lhes «palavras», cheios de esperança — que se repetiam e tornavam a repetir. Muitas seqüências apareciam só uma vez em milhares de páginas de texto. Esta abordagem estatística da decifração de mensagens era conhecida de Ellie desde o liceu. Mas as sub-rotinas fornecidas pelos peritos da National Security Agency — postas à disposição apenas em conseqüência de uma diretiva presidencial, e mesmo assim munidas de instruções para se auto-destruírem se examinadas aprofundadamente — eram brilhantes. Que prodígios de inventiva humana, pensou Ellie, estavam a ser congregados para a leitura da correspondência mútua! O confronto global entre os Estados Unidos da América e a União Soviética agora, sem dúvida, a abrandar um pouco — ainda estava a devorar o mundo. Não se tratava apenas dos recursos financeiros destinados às instituições militares de todas as nações. Esses aproximavam-se dos dois bilhões de dólares por ano e eram só por si ruinosamente dispendiosos, quando havia tantas outras necessidades humanas urgentes. Mas o pior, sabia-o, era o esforço intelectual dedicado à corrida aos armamentos. Calculara-se que quase metade dos cientistas do planeta trabalhavam num ou noutro dos quase duzentos estabelecimentos militares do mundo. E não eram o refugo dos programas doutorais de Física e Matemática. Alguns dos seus colegas consolavam-se com esse pensamento quando surgia o problema constrangedor do que dizer a um recente candidato ao doutorado que andava a ser cortejado, digamos, por um dos laboratórios de armas. «Se ele prestasse para alguma coisa, oferecer-lhe-iam, pelo menos, o lugar de professor auxiliar em Stanford», lembrava-se de ter ouvido Drumlin dizer uma vez. Não, uma certa espécie de cérebro e de caráter estava a ser atraída para as aplicações militares da ciência e da matemática — pessoas que gostavam de grandes explosões, por exemplo; ou aqueles que não tinham gosto nenhum pelo combate pessoal e que, para vingar alguma injustiça sofrida no recreio da escola, aspiravam ao comando militar; ou solucionadores inveterados de quebra-cabeças que ansiavam por decifrar as mensagens mais complexas que se conheciam. Ocasionalmente, a motivação era política, remontava a disputas internacionais, política de imigração, horrores do tempo de guerra, brutalidade policial ou propaganda nacional desta ou daquela nação décadas atrás. Ellie sabia que muitos destes cientistas tinham competência genuína, fossem quais fossem as reservas que as suas motivações lhe despertassem. Tentou imaginar essa amálgama de talento verdadeiramente dedicada ao bem-estar da espécie e do planeta. Deu uma vista de olhos aos relatórios que se tinham acumulado durante a sua ausência. Não estavam a progredir quase nada na decifração da Mensagem, embora as análises estatísticas formassem já uma rima de papel de um metro de altura. Era tudo muito desencorajador. Desejou que houvesse em Argus alguém, especialmente uma amiga íntima, com quem pudesse desabafar a sua mágoa e a sua cólera pelo procedimento de Ken. Mas não havia, e ela não se sentia nada inclinada a usar o telefone para esse fim. Conseguiu passar um fim-de-semana com a sua amiga do colégio Becky Ellenbogen, em Austin, mas Becky, cujas avaliações dos homens tinham propensão para se situar algures entre perversas e mordazes, neste caso mostrou-se surpreendentemente moderada na sua crítica. — Ele é o conselheiro científico da presidente e esta é apenas a mais espantosa descoberta da história do mundo. Não sejas tão severa com ele — aconselhou Becky. — Voltará às boas. Mas Becky era uma das que consideravam Ken «encantador» (vira-o uma vez na inauguração do National Neutrino Observatory) e talvez tivesse excessiva inclinação para se acomodar ao poder. Se Der Heer tivesse tratado Ellie daquela maneira indecente enquanto era apenas um professor de Biologia Molecular algures, Becky tê-lo-ia posto em vinha de alhos e assado no espeto! Depois de regressar de Paris, Der Heer lançara-se numa verdadeira campanha de desculpas e demonstrações de dedicação. Andara sob enorme tensão, justificara-se, sobrecarregado com uma infinidade de responsabilidades que incluíam problemas políticos difíceis e fora do vulgar. A sua posição como chefe da delegação americana e co-presidente do plenário poderia ter-se tornado menos efIcaz se houvesse conhecimento público do seu relacionamento com Ellie. Kitz fora insuportável. Ken passara muitas noites consecutivas com escassas horas de sono. No conjunto, Ellie achou as explicações excessivas. Mas consentiu que a ligação continuasse. Quando aconteceu, foi de novo Willie, desta vez no turno da meia-noite às oito horas, quem primeiro se apercebeu. Posteriormente, Willie atribuiria a rapidez da descoberta menos ao computador supercondutor e aos programas da NSA do que aos novos chips de reconhecimento de contexto Hadden. de qualquer modo, Vega estava baixa no céu mais ou menos uma hora antes da alvorada quando o computador acionou um alerta moderado. Com algum aborrecimento, Willie largou o que estava a ler — um novo manual sobre espectroscopia de transformação rápida de Fourier — e reparou que estavam a ser impressas no écran as seguintes palavras: RPT. TEXTO PP. 41617-41619: DESCORRELAÇÃO DE BIT 0/2271. COEFICIENTE DE CORRELAÇÃO 0,99 + Enquanto observava, o número 41619 passou para 41620 e depois para 41621. Os dígitos depois da barra aumentavam numa marcha contínua. Tanto o número de páginas como o coeficiente de correlação, uma medida da improbabilidade de a correlação ser por acaso, aumentavam enquanto ele olhava. Deixou passar mais duas páginas antes de utilizar a linha direta para o apartamento de Ellie. Ela dormia profundamente e ficou por momentos desorientada. Mas acendeu depressa o candeeiro da mesa-de-cabeceira e passados instantes deu instruções para que o pessoal superior de Argus se reunisse. Disse que localizaria Der Heer, que se encontrava algures nas instalações. O que não foi muito difícil. Sacudiu-lhe o ombro: — Ken, levanta-te. Chegaram notícias de que repetimos. — O quê? — A Mensagem reciclou. Ou, pelo menos, é isso o que o Willie diz. Vou para lá. Por que não esperas dez minutos, para podermos fingir que estavas no teu quarto, no BSQ? E chegara quase à porta quando ele lhe gritou: — Como podemos reciclar? Ainda não recebemos o manual. Corria através dos écrans uma seqüência emparelhada de zeros e uns, uma comparação de tempo real dos dados a serem recebidos naquele momento com os dados de uma página anterior de texto recebida em Argus um ano antes. O programa teria separado quaisquer diferenças. Por enquanto não havia nenhumas. Tranqüilizou-os verificar que não tinham transcrito mal, que não havia erros de transmissão aparentes e que, se alguma pequena nuvem interestelar densa entre Vega e a Terra podia «comer» um ocasional um ou zero, isso era uma ocorrência infreqüente. Argus encontrava-se em comunicação de tempo real com dúzias de outros telescópios que faziam parte do Consórcio Mundial da Mensagem e a notícia da reciclagem foi transmitida para os postos de observação seguintes, na direção oeste, para a Califórnia, o Havaí, o Marshal Nedelin — agora no Pacífico Sul — e para Sydney. Se a descoberta tivesse sido feita quando Vega se encontrava na mira de um dos outros telescópios da rede, Argus teria sido informada imediatamente. A ausência do manual de instruções constituía uma decepção angustiante, mas não era a única surpresa. Os números de página da Mensagem tinham saltado descontinuamente da casa dos quarenta mil para a dos dez mil, onde a reciclagem fora descoberta. Era evidente que Argus captara a emissão de Vega quase no momento em que ela começara a chegar à Terra. Era um sinal extraordinariamente forte e teria sido captado até por pequenos telescópios omnidirecionais. Mas constituía uma coincidência surpreendente o fato de chegar à Terra no próprio momento em que Argus estava a observar Vega. Por outro lado, qual era o significado de o texto começar numa página da casa dos dez mil? Faltariam dez mil páginas de texto? Seria uma prática atrasada da Terra começar a numerar livros pela página um? Aqueles números seqüenciais não seriam, talvez, números de páginas, mas sim qualquer outra coisa? Ou — e isto era o que mais preocupava Ellie — haveria alguma diferença fundamental e inesperada entre o modo como os humanos e os alienígenas pensavam nas coisas? Se assim fosse, teria implicações preocupantes na aptidão do Consórcio para compreender a Mensagem, com ou sem manual de instruções. A Mensagem repetia-se exatamente, as lacunas estavam todas preenchidas e ninguém conseguia ler uma palavra. Parecia improvável que a civilização emissora, meticulosa em tudo o mais, tivesse pura e simplesmente ignorado a necessidade de um manual de instruções. Pelo menos a transmissão olímpica e o desenho interior da Máquina pareciam concebidos especificamente para humanos. Não era concebível que se dessem a todo aquele trabalho para planejar e emitir a Mensagem sem tomarem quaisquer providências no sentido de os humanos a lerem. Por conseqüência, devia ter escapado qualquer coisa aos humanos. Chegou-se em breve ao consenso geral de que existia algures uma quarta camada no palimpsesto. Mas onde? Os diagramas foram publicados num conjunto de livros «mesa de café» em oito volumes, que não tardou a ser editado em todo o mundo. Em todo o planeta havia gente a tentar decifrar os desenhos. O dodecaedro e as formas quase biológicas eram particularmente evocativas. O público apresentou muitas sugestões inteligentes, as quais foram cuidadosamente analisadas pela equipa de Argus. Não faltaram também muitas interpretações extravagantes, principalmente em semanários. Criaram-se novas indústrias completas — sem dúvida imprevistas pelos que conceberam a Mensagem — ; destinadas a utilizar os diagramas para ludibriar o público. Foi anunciada a Ordem Antiga e Mística do Dodecaedro. A Máquina era um OVNI. A Máquina era a Roda de Ezequiel. Um anjo revelou o significado da Mensagem e dos diagramas a um homem de negócios brasileiro, que distribuiu — ao princípio a expensas próprias — a sua interpretação pelo mundo todo. Com tantos diagramas enigmáticos para interpretar, era inevitável que muitas religiões reconhecessem alguma da sua iconografia na Mensagem das estrelas. Um corte transversal principal da Máquina parecia-se um tanto ou quanto com um crisântemo, ato que despertou grande entusiasmo no Japão. Se houvesse uma imagem de um rosto humano entre todos os diagramas, o fervor messiânico poderia ter atingido um ponto de explosão. Mesmo assim, um número surpreendentemente grande de pessoas estava a arrumar os seus negócios, preparando-se para o Advento. A produtividade industrial descia à escala mundial. Muitos tinham dado todos os seus bens aos pobres e depois, como o fim do mundo se ia adiando, foram obrigados a pedir auxílio a uma obra de caridade ou ao Estado. Como as dádivas deste gênero constituíam uma parte importante dos recursos de tais obras de caridade, alguns dos filantropos acabaram por ser ajudados por aquilo que eles próprios tinham dado. Delegações abordavam dirigentes governamentais para insistirem no sentido de que a esquistossomíase, por exemplo, ou a fome mundial estivessem exterminadas aquando o Advento; caso contrário, não se sabia o que nos poderia acontecer. Outros opinavam, mais serenamente, que, se estava iminente uma década de autêntica loucura mundial, devia haver nela, algures, uma considerável vantagem monetária ou nacional. Alguns diziam que não havia manual de instruções nenhum, que todo o exercício consistia em ensinar humildade aos humanos ou dar conosco em malucos. Havia editoriais de jornais aventando a hipótese de não sermos tão espertos como julgávamos ser e um ressentimento contra os cientistas, que, depois de todo o apoio que lhes fora dado pelos governos, não nos sabiam valer na hora em que deles precisávamos. Ou talvez os humanos fossem muito mais estúpidos do que o que os Veganianos nos julgavam. Talvez houvesse algum ponto que tivesse sido perfeitamente óbvio para todas as civilizações emergentes anteriores assim contatadas, qualquer coisa que nunca antes escapara a ninguém na história da Galáxia. Alguns comentadores aceitaram esta perspectiva de humilhação cósmica com vero entusiasmo. Provava o que eles tinham dito das pessoas desde sempre. Passado algum tempo, Ellie chegou à conclusão de que precisava de auxílio. Entraram sub-repticiamente pela porta de Enlil, com o acompanhante enviado pelo proprietário. A brigada de segurança da General Services Administration estava inquieta, apesar da, ou talvez por causa da, proteção suplementar. Embora ainda houvesse um pouco de luz do dia, as ruas sujas estavam iluminadas por braseiras, candeeiros a petróleo e uma tocha ocasional, gotejante. Duas ânforas, suficientemente grandes para conterem um ser humano adulto, flanqueavam a entrada de uma loja de venda de azeite a retalho. A tabuleta era em caracteres cuneiformes. Num edifício público adjacente via-se um magnífico baixo-relevo de uma caçada ao leão no reino de Assurbanipal. Quando se aproximavam do Templo de Assur, houve uma agitação na multidão e o acompanhante de Ellie desviou-se. Ela tinha agora uma visão desimpedida do Zigurate, por uma avenida iluminada por tochas abaixo. Era mais empolgante do que nas fotografias. Soou um floreado marcial de um instrumento metálico que lhe não era familiar, passaram a trote três homens e um cavalo, com o auriga de barrete frígio. Como numa representação medieval de uma estória advertente do Livro do Gênesis, o cimo do zigurate estava envolto em nuvens crepusculares baixas. Deixaram o caminho de Ishtar e entraram no zigurate por uma rua transversal. No elevador privado, o acompanhante de Ellie premiu o botão para o último andar: QUARENTA, dizia. Nada de numerais. Simplesmente a palavra. E depois, para não deixar qualquer espaço para dúvidas, um painel de vidro iluminou-se com as palavras: OS DEUSES. Mr. Hadden juntar-se-lhe-ia dentro de momentos. Desejava beber alguma coisa enquanto esperava? Considerando a fama do lugar, Ellie recusou. Babilônia estendia-se à sua frente — magnificente, como toda a gente dizia, na sua recriação de um tempo e um lugar havia muito desaparecidos. Durante as horas do dia, autocarros de museus, de algumas escolas — muito poucas — e de agências de turismo descarregavam na Porta de Ishtar os seus passageiros, que envergavam roupas apropriadas e viajavam no tempo para o passado. Sabiamente, Hadden doava todos os lucros da sua clientela diurna a obras de caridade da cidade de Nova Iorque e de Long Island. As excursões diurnas eram imensamente populares, em parte por proporcionarem uma oportunidade respeitável para verem o lugar àqueles que não podiam sequer sonhar ver a Babilônia de noite. Bem, sonhar, talvez sonhassem. Depois de escurecer, Babilônia passava a chamar-se um parque de diversão de adultos. Era de uma opulência, de um tamanho e de uma imaginatividade que tornavam insignificantes lugares como, por exemplo, o Reeperbahn de Hamburgo. Era de longe a maior atração turística da área metropolitana de Nova Iorque e a que dava, também de longe, os maiores lucros brutos. Sabia-se bem como Hadden conseguira convencer os vereadores de Babilônia, Nova Iorque, e de que enredos de corredor se servira para um «abrandamento» das leis locais e estaduais sobre a prostituição. Agora ia-se do centro de Manhattan à Porta de Ishtar em meia hora de comboio. Ellie insistira em viajar nesse comboio, apesar das súplicas da gente da segurança, e verificara que quase um terço dos visitantes era constituído por mulheres. Não havia graffiti e o perigo de um ataque com intuitos de roubo era pequeno; mas o tipo de ruído branco era muito menor, comparado com o proporcionado pelos transportes da rede de metropolitano da cidade de Nova Iorque. Embora Hadden fosse membro da Academia Nacional de Engenharia, nunca, que Ellie soubesse, comparecera a uma reunião dessa agremiação, e ela nunca lhe pusera os olhos em cima. No entanto, anos antes, o seu rosto tornara-se bem conhecido de milhões de americanos, em conseqüência da campanha do Conselho de Publicidade contra ele: O ANTIAMERICANO, fora então a legenda aposta sob uma fotografia pouco lisonjeira de Hadden. Mesmo assim, ficou espantada quando, no meio do seu devaneio junto da parede de vidro oblíqua, foi interrompida por uma pessoa baixa e gorda a acenar-lhe. — Oh, desculpe! Nunca compreendi como alguém pode ter medo de mim. A sua voz era surpreendentemente harmoniosa. Na realidade, ele parecia falar em quintas. Não achara necessário apresentar-se e voltou a inclinar a cabeça para a porta que deixara entreaberta. Em tais circunstâncias custava a crer que estivesse prestes a abater-se sobre ela algum crime passional; por isso, muda, entrou na sala ao lado. Ele mostrou-lhe uma maqueta meticulosamente executada de uma antiga cidade de aspecto menos pretensioso do que Babilônia. — Pompéia — disse, a título de explicação. — Aqui a chave é o estádio. Com as restrições impostas ao boxe, não restam na América quaisquer desportos sanguinários salutares. Muito importante. Extrai alguns dos venenos da corrente sanguínea nacional. Está tudo concebido, as licenças concedidas, e agora isto. — «Isto,» o quê? — Nada de jogos gladiatoriais. Acabo de receber informação de Sacramento. Foi apresentado à legislatura um projeto de lei para proibir jogos gladiatoriais na Califórnia. Demasiado violentos, dizem. Autorizam um novo arranha-céus sabendo que perderão dois ou três trabalhadores na sua construção. Os sindicatos sabem-no, os construtores sabem-no, e trata-se apenas de construir escritórios para companhias petrolíferas ou advogados de Beverly Hills. Claro, nós perderíamos alguns praticantes. Mas estamos mais orientados para rede e tridente do que para espada curta. Esses legisladores não têm as suas prioridades certas. Lançou-lhe um sorriso de mocho e ofereceu-lhe uma bebida, que ela voltou a recusar. — Quer então falar comigo a respeito da Máquina e eu quero falar consigo a respeito da Máquina. Primeiro: você quer saber onde está o chamado manual? — Estamos a pedir auxílio a algumas pessoas-chave que poderão ter alguma percepção a tal respeito. Pensamos que o senhor, com o seu palmares de invenção — e uma vez que o seu chip de reconhecimento de contexto interveio na descoberta da reciclagem —, se poderia colocar no lugar dos Veganianos e imaginar onde colocaria o manual. Compreendemos que é uma pessoa muito ocupada e eu lamento ter de… — Oh, não! Não há problema. É verdade que estou muito ocupado. Estou a tentar regularizar os meus negócios, porque vou fazer uma grande mudança na minha vida… — Para o Milênio? — Ellie tentou imaginá-lo a dar aos pobres a S. R. Hadden and Company; a casa de corretagem da Wall Street; a Genetic Engineering, Inc.; a Hadden Cybernetics, e Babilônia. — Não é bem isso. Não. Foi divertido pensar no assunto. Fez-me sentir bem ser consultado. Vi os diagramas. Apontou com a mão para o conjunto comercial de oito volumes desordenadamente espalhados numa mesa de trabalho. — Há ali coisas maravilhosas, mas não creio que seja lá que o manual está escondido. Não é nos diagramas. Não sei por que motivo pensam que a chave tem de estar na Mensagem. Talvez a tenham deixado em Marte ou Plutão, ou na Nuvem do Cometa Oort, e a descubramos daqui a alguns séculos. Por agora sabemos que existe esta Máquina maravilhosa, com desenhos do projeto e trinta mil páginas de texto explicativo. Mas não sabemos se seríamos capazes de construir a coisa se conseguíssemos ler o texto. Por isso, aguardamos alguns séculos, enquanto vamos aperfeiçoando a nossa tecnologia, sabendo que mais cedo ou mais tarde teremos de estar preparados para a construir. O fato de não termos o manual prende-nos a gerações futuras. Foi enviado aos seres humanos um problema que levará gerações para resolver. Não acho que seja uma coisa assim tão má. Poderá ser muito salutar. Talvez estejam a cometer um erro ao procurar um manual. Talvez seja melhor não o encontrarem. — Não, eu quero encontrá-lo sem demora. Não sabemos se ficará eternamente à nossa espera. Se eles desistissem em virtude de não receberem nenhuma resposta, seria muito pior do que se nunca tivessem sequer estabelecido contato. — Bem, talvez tenha uma certa razão. De qualquer modo, pensei no máximo de possibilidades banais e depois numa que não o é. Primeiro, as banais: o manual está na Mensagem, mas num ritmo de dados muito diferente. Suponha que havia lá outra mensagem a um bit por hora. Conseguiriam detectá-la? — Absolutamente. Por rotina, aliás, verificamos se há uma declinação receptora a longo prazo. Mas, de resto, um bit por hora só nos dá… deixe ver… dez ou vinte mil bitstops antes de a Mensagem. reciclar. — Por conseqüência, isso só faz sentido se o manual for muito mais fácil do que a Mensagem. Você pensa que não é. Eu penso que não é. E a respeito de ritmos de bits muito mais rápidos? Como sabe que debaixo de cada bit da sua Mensagem da Máquina não á um milhão de bits da mensagem do manual? — Porque produziria larguras de banda monstruosas. Saberíamos imediatamente. — Muito bem, há então uma acumulação de dados rápidos de vez em quando. Pense nisso como se fosse um microfilme. Há um ponto minúsculo de microfilme que se encontra em partes repetidas — quero dizer repetitivas — da Mensagem. Estou a imaginar uma caixinha que diz na sua linguagem habitual: «Eu sou o manual.» Depois, logo após isso, há um ponto. E nesse ponto há cem milhões de bits muito rápidos. Poderiam ver, se receberam algumas caixas. — Acredite-me, teríamos visto. — Sim, senhora, e a respeito de modulação de fase? Usamo-la no radar e na telemetria de naves espaciais e praticamente não suja o espectro. Ligaram um correlacionador de fases? — Não. É uma idéia útil. Estudá-la-ei. — Agora a idéia não banal é a seguinte: se a Máquina alguma vez for feita, se a nossa gente vai sentar-se nela, alguém vai carregar num botão e então essas cinco pessoas vão a qualquer lado. Não interessa onde. É, no entanto uma questão interessante saber se essas cinco pessoas vão regressar. Talvez não. Atrai-me a idéia de que toda esta concepção da Máquina foi inventada por ladrões de corpos veganianos. Percebe o que quero dizer, os seus estudantes de Medicina, ou antropólogos, ou qualquer coisa. Eles precisam de alguns corpos humanos. Uma grande trabalhadeira para vir à Terra — é necessária permissão, passaporte da autoridade do trânsito, o inferno… dá mais chatices do que benefício. Mas com um pouco de esforço pode-se enviar para a Terra uma mensagem, e então serão os terrestres a ter o trabalho todo para lhes enviar os cinco corpos. «É como colecionar selos. Eu costumava colecionar selos quando era miúdo. Podíamos enviar uma carta a alguém num país estrangeiro, e quase sempre as pessoas respondiam. Não interessava o que elas diziam. Tudo quanto queríamos era o selo. Assim, o quadro que vejo é esse: há alguns colecionadores de selos em Vega. Mandam cartas para o exterior quando estão para aí virados e chegam-lhes corpos a voar de todos os cantos do espaço. Não gostaria de ver a coleção? Sorriu-lhe e continuou: — Ora bem, que tem isto a ver com encontrar o manual? Nada. Só é relevante se eu estou enganado. Se o meu quadro está errado, se as cinco pessoas vão regressar à Terra, então será uma grande ajuda termos inventado o vôo espacial. Independentemente do muito ou pouco espertos que eles sejam, vai ser difícil pousar a Máquina. Há demasiadas coisas em movimento. Sabe Deus qual é o sistema de propulsão. Se surgimos do espaço alguns metros abaixo do solo, estamos tramados. E que são alguns metros em vinte e seis anos-luz? É excessivamente arriscado. Quando a Máquina regressar, surgirá — ou seja lá o que fizer — do espaço algures perto da Terra, mas não sobre ela ou nela. Por isso, precisam de ter a certeza de que temos vôo espacial para que as cinco pessoas possam ser recuperadas no espaço. Estão cheios de pressa e não podem esperar inativos até chegar a Vega o telejornal noturno de 1957. Que fazem então? Arranjam maneira de parte da Mensagem só poder ser detectada do espaço. Que parte é essa? O manual. Se alguém conseguir detectar o manual, é porque tem vôo espacial e pode regressar em segurança. Por isso imagino que o manual está a ser enviado na freqüência das absorções e oxigênio no espectro de microondas ou no infravermelho próximo… nalguma parte do espectro que só podemos detectar quando estamos bem fora da atmosfera da Terra… — Tivemos o Telescópio de Hubble a observar Vega em todo o ultravioleta, o visível e o infravermelho próximo. Nem sombra de nada. Os Russos afinaram o seu dispositivo de onda milimétrica. Praticamente não têm estado a observar mais nada além de Vega e não descobriram coisa nenhuma. Mas continuaremos a observar. Outras possibilidades? — Tem a certeza de que não quer uma bebida? Pessoalmente não bebo, mas há tanta gente que bebe… — Ellie voltou a declinar. — Não, não vejo outras possibilidades. Agora é a minha vez? «Olhe, quero pedir-lhe uma coisa. Mas não tenho jeito para pedir coisas. Nunca tive. A minha imagem pública é rica, cômica, inescrupulosa — alguém que procura fraquezas no sistema para poder ganhar umas coroas depressa. E não me diga que não acredita em nenhuma dessas coisas. Toda a gente acredita, pelo menos nalgumas. Provavelmente já ouviu dizer parte do que vou contar-lhe, mas dê-me dez minutos e eu digo-lhe como tudo isto começou. Quero que saiba alguma coisa a meu respeito. Ellie recostou-se na cadeira, a perguntar a si mesma que poderia ele querer dela, e afastou do pensamento fantasias tolas em que entravam o Templo de Ishtar, Hadden e talvez um auriga ou dois, pelo sim, pelo não. Anos antes, ele inventara um módulo que, quando a televisão comercial aparecia, emudecia automaticamente o som. Ao princípio, não era um dispositivo de reconhecimento de contexto. Ao invés, monitorizava simplesmente a amplitude da onda transportadora. Os anunciantes da TV tinham adquirido o hábito de passar os seus anúncios mais alto e com maior audiolimpidez do que os programas que eram os seus veículos normais. A notícia do módulo de Hadden propagou-se de boca em boca. As pessoas confessaram um sentimento de alívio, a libertação de um grande peso, até mesmo uma sensação de alegria por se verem livres da barragem publicitária das seis a oito horas por dia que o americano médio passava defronte do televisor. Antes que pudesse haver qualquer reação coordenada da indústria de publicidade televisiva, o Adnix tornara-se tremendamente popular. Obrigava anunciantes e cadeias de televisão a novas opções de estratégia de onda transportadora, a cada uma das quais Hadden replicava com uma nova invenção. Algumas vezes inventou circuitos para vencer estratégias que as agências e as cadeias ainda não tinham descoberto. Alegava que estava a poupar-lhes a maçada de fazerem novas invenções, com grandes custos para os seus acionistas, invenções que estavam de qualquer maneira condenadas ao malogro. À medida que o seu volume de vendas aumentava, ia reduzindo os preços. Era uma espécie de guerra eletrônica. E ele estava a vencer. Tentaram processá-lo — qualquer coisa a respeito de uma conspiração para coarctar o comércio. Tiveram músculo político suficiente para que lhe fosse negado o pedido de recusa sumária da ação, mas influência insuficiente para ganharem realmente a causa. O julgamento obrigara Hadden a investigar os códigos jurídicos relevantes. Pouco depois requereu, por intermédio de uma conhecida agência da Madison Avenue da qual se tornara entretanto sócio majoritário silencioso, autorização para anunciar o seu próprio produto na televisão comercial. Após algumas semanas de controvérsia, os seus anúncios foram recusados. Processou então todas as três cadeias televisivas e neste julgamento conseguiu provar conspiração para coarctação de comércio. Recebeu uma enorme indenização, que constituiu na altura um recorde em casos daquela espécie, e contribuiu à sua modesta maneira para a morte das cadeias primitivas. Houvera sempre pessoas que gostavam dos anúncios, claro, e não precisavam do Adnix para nada. Mas constituíam uma minoria em declínio. Hadden fez uma grande fortuna com a evisceração da transmissão de publicidade. Fez também muitos inimigos. Quando os chips de reconhecimento de contexto se tornaram comercialmente acessíveis, ele estava preparado com o Preachnix, um submódulo que podia ser acoplado ao Adnix. Era simplesmente capaz de mudar de canal se por acaso estivesse sintonizado um programa religioso doutrinário. Tornava possível pré-selecionar palavras-chave, tais como ADVENTO ou ÊXTASE[14 - O termo usado pelo autor é rapture, que, além de «êxtase» também significa, no inglês americano, «transporte de uma pessoa de um lugar para outro, especialmente para o céu». Creio que é neste último sentido que o autor usa a palavra. (N. da T.)] e cortar grandes fatias da programação disponível. O Preachnix foi uma verdadeira bênção para uma minoria paciente, mas significativa, de telespectadores. Dizia-se, em parte meio a sério, que o submódulo seguinte de Hadden se chamaria Jivenix e só funcionaria em discursos públicos de presidentes e primeiros-ministros.[15 - Dos três inventos de Hadden, Adnix é a aglutinação da abreviatura de advertise e seus derivados («anunciar», «anúncio», «publicidade» etc.) e nix, que em calão significa «nada» «nicles». Temos, portanto, nicles, ou veto, de anúncios. Em Preachnix, como facilmente se deduz, o veto vai para a pregação, para os sermões. Em Jivenix há uma certa mordacidade, pois, além de calão relacionado com a música de swing e jazz e seus entusiastas, jive significa «pessoa loquaz, de falas doces ou insinceras». (N. da T.)] À medida que foi aperfeiçoando os chips de reconhecimento de contexto, tornou-se-lhe evidente que tinham aplicações muito mais vastas — dos campos da educação, ciência e medicina aos da informação militar e espionagem industrial. Foi a este aspecto que se foi buscar a fundamentação para a famosa ação Estados Unidos da América v. Hadden Cybernetics. Um dos chips de Hadden foi considerado bom demais para a vida civil, e, por recomendação da National Security Agency, as instalações e o pessoal-chave da produção do chip de reconhecimento de contexto passaram para a tutela do Governo. Era pura e simplesmente demasiado importante ler o correio russo. Sabia Deus, disseram-lhe, o que aconteceria se os Russos fossem capazes de ler o correio americano. Hadden recusou-se a cooperar com a expropriação e jurou diversificar para áreas que não corressem o risco de ser conectadas com a segurança nacional. O Governo estava a nacionalizar a indústria. Proclamava-se capitalista, mas, quando lhe convinha, mostrava o seu rosto socialista. Ele descobrira uma necessidade pública insatisfeita e utilizara uma tecnologia nova, existente e legal para satisfazer essa carência. Era capitalismo clássico. Mas havia muitos capitalistas ortodoxos que diriam que ele já fora demasiado longe com o Adnix, que criara uma verdadeira ameaça ao modo de vida americano. Numa coluna assinada por V. Petrov, o Pravda declarou ser o caso um exemplo concreto das contradições do capitalismo. The Wall Street Journal replicou, talvez um pouco tangencialmente, chamando ao Pravda, que em russo significa «verdade», um exemplo concreto das contradições do comunismo. Hadden desconfiava que a expropriação fora apenas um pretexto, que o seu verdadeiro delito tinha sido atacar a publicidade e o video-evangelismo. Adnix e Preachnix eram a essência da potencialidade empreendedora capitalista, argumentava repetidamente. Considerava-se que o objetivo do capitalismo era fornecer alternativas às pessoas. — Bem, disse-lhes eu, a ausência de publicidade é uma alternativa. Só há verbas enormes para publicidade quando não há diferença entre os produtos. Se os produtos fossem realmente diferentes, as pessoas comprariam o que fosse melhor. A publicidade ensina as pessoas a não confiarem no seu critério. A publicidade ensina as pessoas a serem estúpidas. Um país forte precisa de pessoas inteligentes. Por isso, o Adnix é patriótico. Os fabricantes podem utilizar parte das suas verbas destinadas à publicidade na melhoria dos seus produtos. O consumidor será beneficiado. Revistas, jornais e negócios diretamente pelo correio florescerão, e isso aliviará a chatice das agências de publicidade. Não vejo onde está o problema. O Adnix, muito mais do que as ações de difamação contra as cadeias comerciais primitivas, conduziu diretamente à morte destas. Durante algum tempo houve um pequeno exército de executivos publicitários desempregados, ex-funcionários de antigas cadeias de televisão comercial sem recursos e clérigos sem um centavo que jurara sanguinariamente vingar-se de Hadden. E houve um número sempre crescente de adversários ainda mais formidáveis. Não havia dúvida, pensou Ellie, de que Hadden era um homem interessante. — Portanto, cheguei à conclusão de que é altura de sair de cena. Tenho tanto dinheiro que não sei que fazer dele, a minha mulher não me pode suportar e tenho inimigos em toda a parte. Quero fazer uma coisa importante, uma coisa que valha a pena. Quero fazer uma coisa graças à.qual, daqui a séculos, as pessoas olhem para trás e se sintam contentes por eu ter existido. — O senhor quer… — Quero construir a Máquina. Escute, estou perfeitamente habilitado para isso. Tenho os melhores conhecimentos especializados de cibernética, cibernética prática, do meio — melhor do que Carne de-Mellon, melhor do que o MIT, melhor do que Stanfor, melhor do que Santa Bárbara. E, se há alguma coisa clara nesses desenhos que estão a receber, é que não se trata de um trabalho para um fabricante antigo de ferramentas e moldes. Não encontrará ninguém que mais se dedique a esse trabalho do que eu. E fá-lo-ei com prejuízo. — Francamente, Mister Hadden, quem construirá a Máquina, se alguma vez chegarmos a esse ponto, não depende de mim. Será uma decisão internacional. Está implicada toda a espécie de política. Eles ainda estão a debater, em Paris, se a coisa deverá ser construída, se e quando decifrarmos a Mensagem. — Julga que não sei isso? Também me estou a candidatar através das vias habituais da influência e da corrupção. Desejava apenas que fosse dita uma boa palavra a meu favor pelas razões justas, pelo lado dos anjos. Compreende? E, por falar de anjos, você deu realmente um grande safanão ao Palmer Joss e ao Billy Jo Rankin. Não os via tão agitados desde aquele problema que tiveram por causa das águas de Maria. O Rankin a dizer que foi citado erradamente, de propósito, a respeito de apoiar a Máquina. Credo, credo. Abanou a cabeça, num gesto de fingida consternação. Parecia muito provável a existência de uma inimizade pessoal antiga entre aqueles proselitizadores ativos e o inventor do Preachnix, e, por qualquer razão, ela sentiu um impulso para os defender: — Eles são ambos muito mais espertos do que poderá pensar. E Palmer Joss é… enfim, há algo de genuíno nele. Não é um impostor. — Tem a certeza de que não se trata apenas de outra cara bonita? Desculpe, mas é importante que as pessoas compreendam os seus sentimentos a este respeito. É mesmo um caso demasiado importante para que possam não os compreender. Conheço esses palhaços. Por baixo, quando as coisas ficam feias, são chacais. Muita gente acha a religião atraente — você percebe, pessoalmente, sexualmente. Devia ver o que acontece no Templo de Ishtar. Ellie reprimiu um estremecimento de repugnância. — Acho que sempre aceito essa bebida. Olhando para baixo, da mansarda, podia ver os terraços gradativos do zigurate, cada um deles revestido de flores, umas artificiais e outras naturais, consoante a estação. Era uma reconstrução dos Jardins Suspensos da Babilônia, uma das Sete Maravilhas do «Mundo Antigo». Miraculosamente, estava construído de tal modo que não se parecia muito com um Hyatt Hotel. Lá, muito em baixo, vislumbrou um cortejo iluminado por tochas, que regressava do zigurate à porta de Enlil. À frente ia uma espécie de liteira transportada por quatro homens robustos, nus da cintura para cima. Não conseguiu distinguir quem ou o que ia na liteira. — «uma cerimônia em honra de Gilgamesh», um dos antigos heróis culturais sumérios. — Sim, já ouvi falar dele. — O seu negócio era a imortalidade. Disse as palavras com naturalidade, à guisa de explicação, e olhou para o relógio. — Sabe, os reis subiam mesmo ao topo do Zigurate para receberem instruções dos deuses. Especialmente Anu, o deus do céu. A propósito, procurei que nome davam a Vega. Era Tirana, a Vida do Céu. Estranho nome para lhe darem. — E recebeu algumas instruções? — Não. As instruções foram para as suas instalações, não para as minhas. Mas haverá outro cortejo de Gilgamesh às nove horas. — Lamento não poder demorar-me tanto tempo. Mas permita que lhe pergunte uma coisa: por quê Babilônia? E Pompéia? O senhor é uma das pessoas mais inventivas que existem. Criou diversas indústrias muito importantes; derrotou a indústria da publicidade no próprio terreno dela. Está bem, foi punido naquela questão de segurança sobre o chip de reconhecimento e contexto. Mas há inúmeras outras coisas que poderia ter feito. Por quê… isto? Muito ao longe, o cortejo chegara ao Templo de Assur. — Por que não algo mais… digno? — perguntou ele, por sua vez. — Estou apenas a tentar satisfazer necessidades da estrutura societária que o Governo descura ou ignora. É capitalismo. É legal. Torna uma quantidade de gente feliz. E eu acho que é uma válvula de escape para alguns dos chalados que esta sociedade não pára de gerar. «Mas na altura não pensei a fundo em tudo isso. Foi muito simples. Lembro-me perfeitamente do momento em que tive a idéia da Babilônia. Estava no mundo de Walt Disney, a viajar no vapor fluvial de rodas do Mississipi com o meu neto, Jason. O garoto teria uns quatro ou cinco anos. Pensei como era inteligente da parte dos dirigentes da Disney terem acabado com os bilhetes individuais para cada divertimento e oferecerem em seu lugar um passe para um dia, que dava direito a experimentar tudo. Poupavam alguns salários — de alguns dos vendedores de bilhetes, por exemplo. Mas, muito mais importante, as pessoas tinham tendência para sobreestimar o seu apetite por divertimentos. Pagavam um prêmio que lhes dava acesso a tudo e depois contentavam-se com muito menos. «Perto de mim e de Jason ia um garoto de oito anos com uma expressão distante no olhar. Estou apenas a calcular a sua idade. Talvez ele tivesse dez anos. O pai perguntava-lhe coisas e ele respondia-lhe com monossílabos. O rapaz acariciava o cano de uma espingarda de brincar que encostara à sua cadeira de convés. Tinha a coronha entre as pernas. Só queria que o deixassem em paz e afagar a espingarda. Atrás dele erguiam-se as torres e os pináculos do Reino Mágico e subitamente tudo se encaixou no seu devido lugar. Sabe o que estou a dizer? Encheu um copo de cola de dieta e bateu com ele no dela. — À confusão dos seus inimigos — brindou, bem-disposto. — Vou mandar conduzi-la à Porta de Ishtar, que estava coberta de reproduções, em azulejos esmaltados, de um animal azul qualquer. Os arqueólogos tinham-lhes chamado dragões. CAPÍTULO XIV Oscilador harmônico O ceticismo é a castidade do intelecto e é vergonhoso abandoná-lo demasiado cedo ou ao primeiro que apareça: há nobreza em conservá-lo serena e orgulhosamente durante a longa juventude, até finalmente, na maturidade do instinto e do entendimento, ser possível trocá-lo em segurança por fidelidade e felicidade.      GEORGE SANTAYANA. Scepticism and Animal Faith, IX Estava numa missão de insurreição e subversão. O inimigo era imensamente maior e mais poderoso. Mas ele conhecia-lhe as fraquezas. Podia apoderar-se do Governo estranho e encaminhar os recursos do adversário no sentido do seu próprio objetivo. Ora, com milhões de agentes devotados no local… A presidente espirrou e procurou um lenço de papel limpo na algibeira dilatada do presidencial roupão de banho turco. Não estava maquilada, embora os seus lábios gretados revelassem manchas de bálsamo mentolado. — O meu médico diz-me que tenho de ficar na cama se não quero apanhar uma pneumonia virótica. Pedi-lhe um antibiótico e ele respondeu-me que não há nenhum antibiótico para os vírus. Sendo assim, como é que sabe que tenho um vírus? Der Heer abriu a boca para responder, esboçou um gesto, mas a presidente interrompeu-o logo: — Não, deixe lá isso. Começava a falar-me do ADN e do reconhecimento do portador, e eu preciso dos recursos que me restam para ouvir a sua estória. Se não tem medo do meu vírus, puxe uma cadeira e sente-se. — Obrigado, senhora Presidente. É a respeito do manual. Tenho aqui o relatório. Está incluída como apêndice uma extensa parte técnica. Pensei que também poderia estar interessada nela. Resumindo, estamos a ler e a compreender efetivamente a coisa sem dificuldade nenhuma. É um programa de ensino diabolicamente inteligente. Não emprego a palavra «diabolicamente» em qualquer sentido literal, claro. Nesta altura devemos ter um vocabulário de três mil palavras. — Não compreendo como é possível. Vi como eles conseguiam ensinar-lhes os nomes dos seus números. Vocês fazem um ponto e escrevem por baixo as letras U M, e por aí fora. Vi como conseguem obter o desenho de uma estrela e depois escrever por baixo E S T R E L A. Mas não vejo como podem decifrar verbos, ou o pretérito, ou os condicionais. — Fazem uma parte com movies. Os movies são perfeitos para verbos. E uma quantidade do resto fazem-no com números. Até mesmo abstrações; são capazes de comunicar abstrações com números. É mais ou menos assim: primeiro contam os números para nós e depois introduzem algumas palavras novas — palavras que não compreendemos. Olhe, vou indicar as suas palavras por letras. Lemos qualquer coisa deste gênero (as letras representam símbolos que os Veganianos introduzem)… Escreveu: 1A1B2Z 1A2B3Z 1A3B4Z — Que lhe parece que é? — A caderneta das minhas notas liceais? Quer dizer que há uma combinação de pontos e traços que A representa e uma combinação de pontos e traços representados por B, e assim por diante? — Exatamente. Sabe-se o que o um e o dois significam, mas não se sabe o que significam A e B. Que lhe diz uma seqüência destas? — A significa «mais» e B significa «igual». É aí que quer chegar? — Ótimo. Mas não compreendemos o que Z significa, pois não? Suponhamos que aparece uma coisa como: 1A2B4Y «Compreende? — Talvez. Dê-me outra que acabe em Y 2000A4000B0Y — Está bem, acho que percebi. Desde que não leiam os três últimos símbolos como uma palavra. Z significa que é verdadeiro e Y significa que é falso. — Certo. Exatamente. Muito bom para uma presidente com um vírus e uma crise sul-africana. Portanto, com algumas linhas de texto, eles ensinaram-nos quatro palavras: mais, igual, verdadeiro e falso. Quatro palavras muito úteis. Depois ensinam divisão, dividem um por zero e dão-nos a palavra que significa infinidade. Ou talvez seja apenas a palavra que significa indeterminado. Ou dizem: «A soma dos ângulos internos de um triângulo é dois ângulos retos.» Depois observam que a afirmação é verdadeira se o espaço é plano, mas falsa se o espaço é curvo. Aprendemos assim a dizer a palavra se e… — Eu não sabia que o espaço era curvo. Ken, de que diabo está a falar? Como pode o espaço ser curvo? Não, deixe lá, deixe lá. Isso não pode ter nada a ver com o assunto que temos pela frente. — Na realidade… — Sol Hadden disse-me que a idéia da localização do manual foi dele. Não olhe para mim com essa cara cômica, Der Heer. Falo com todos os tipos de gente. — Não queria dizer… hmmm… No meu entender, Mister Hadden apresentou algumas sugestões que já tinham sido todas feitas por outros cientistas. A doutora Arroway verificou-as e acertou em cheio com uma delas. Chama-se modulação de fase ou codificação de fase. — Muito bem. Agora, Ken, é verdade que o manual está espalhado por toda a Mensagem, não é? Montes de repetições. E houve um manual qualquer pouco depois de a Arroway começar a captar o sinal. — Pouco depois de ela captar a terceira camada do palimpsesto, o desenho da Máquina. — E muitos países possuem a tecnologia necessária para ler o manual, não é verdade? — Bem, precisam de um instrumento chamado correlacionador desses. Mas, sim. Os países que contam, de qualquer modo. — Nesse caso, os Russos podiam ter lido o manual há um ano, não podiam? Ou os Chineses, ou os Japoneses. Como sabe que, neste preciso momento, eles não estão já a meio da construção da Máquina? — Pensei nisso, mas o Marvin Yang diz que é impossível. Fotografias por satélite, inteligência eletrônica e pessoas no local, tudo confirma não existir nenhum sinal do gênero de grande projeto de construção que seria necessário para construir a Máquina. Não, nós temos estado todos a dormir na forma. Fomos seduzidos pela idéia de que o manual de instruções tinha de vir no princípio, e não intercalado ao longo da Mensagem. Foi só quando a Mensagem reciclou e descobrimos que ele não estava lá que começamos a pensar noutras possibilidades. Todo este trabalho foi feito em estreita colaboração com os Russos e com todos os outros. Não achamos que alguém nos tenha passado à frente, mas, por outro lado, agora todos têm o manual. Não creio que exista algum curso de ação unilateral para nós. — Eu não quero um curso de ação unilateral para nós. Só quero ter a certeza de que mais ninguém tem um curso de ação unilateral. Mas pronto, voltemos ao seu manual. Sabem dizer «verdadeiro-falso», «se-então» e «o espaço é curvo». Como constroem uma máquina com isso? — Sabe, não acho que a constipação, ou lá o que é que tem, lhe tenha diminuído um nadinha que seja as faculdades. Bem, parte tudo daí. Por exemplo, eles traçam-nos um quadro periódico dos elementos, de modo a mencionarem todos os elementos químicos, a idéia de um átomo, a idéia de um núcleo, de prótons, nêutrons e elétrons. Depois passam alguma mecânica quântica, só para terem a certeza de que estamos a prestar atenção — já adquirimos algumas novas percepções no material corretivo. Depois começam a concentrar-se nos materiais específicos necessários para a construção. Por exemplo, por qualquer razão, precisamos de duas toneladas de érbio e, por isso, eles explicam uma técnica para o extrair de rochas vulgares. Der Heer levantou a mão, de palma para a frente, num gesto apaziguador: — Não me pergunte por que precisamos de duas toneladas de érbio. Ninguém faz a mínima idéia. — Não ia perguntar isso. O que quero saber é como eles lhes disseram quanto é uma tonelada. — Contaram-na para nós em massas de Planck. Uma massa de Planck é… — Deixe lá, deixe lá. É qualquer coisa do conhecimento de todos os físicos do universo, não é verdade? E eu nunca ouvi falar dela. Agora a conclusão: compreendemos o manual suficientemente bem para começar a ler a Mensagem? Seremos ou não capazes de construir a coisa? — A resposta parece ser «sim». Temos o manual há poucas semanas apenas, mas estão a cair-nos no colo, com toda a clareza, capítulos inteiros da Mensagem. Há desenho meticuloso, explicações redundantes e, tanto quanto nos parece, tremenda redundância na concepção da Máquina. Devemos poder ter um modelo tridimensional dela para si a tempo daquela reunião para selecionar a tripulação na próxima quinta-feira, se se sentir em condições para isso. Até agora não temos nenhuma pista quanto ao que a Máquina faz ou como funciona. E há alguns componentes químicos orgânicos esquisitos que não fazem sentido nenhum como parte de uma máquina. Mas quase toda a gente parece convencida de que a podemos construir. — Quem não parece? — Bem, Lunacharsky e os Russos. E Billy Jo Rankin, claro. Ainda há quem tema que a Máquina faça o mundo ir pelos ares, desvie o eixo da Terra, ou qualquer coisa desse gênero. Mas o que tem impressionado a maioria dos cientistas é como as instruções são cuidadosas e as muitas maneiras diferentes que eles utilizam para tentar explicar a mesma coisa. — E que diz a Eleanor Arroway? — Diz que, se eles nos quiserem tramar, estarão aqui dentro de vinte cinco anos, pouco mais ou menos, e não há nada que possamos fazer nesse espaço de tempo para nos protegermos. Estão excessivamente à nossa frente. Por isso, construam-na, diz ela, e, se estão preocupados com perigos ambientais, construam-na num lugar distante. O professor Drumlin diz que, pela parte que lhe toca, até podemos construí-la na baixa de Pasadena. Na verdade, diz mesmo que estará lá todos os minutos que forem necessários para construir a Máquina, de modo que seja o primeiro a ir desta para melhor se ela explodir. — Drumlin é aquele tipo que intuiu tratar-se do desenho de uma máquina, não é? — Não foi exatamente assim, ele… — Lerei o material de informação a tempo para a tal reunião de quinta-feira. Tem mais alguma coisa para mim? — Está a pensar seriamente deixar o Hadden construir a Máquina? — Bem, não depende só de mim, como sabe. Aquele acordo que estão a negociar em Paris dá-nos cerca de um quarto de peso decisional. Os Russos têm um quarto, os Chineses e os Japoneses juntos têm um quarto e o resto do mundo tem um quarto, falando grosso modo. Uma quantidade de nações quer construir a Máquina, ou, pelo menos, partes dela. Pensam em prestígio e em novas indústrias, novo conhecimento. Desde que ninguém nos passe a perna, tudo isso me parece bem. É possível que o Hadden apanhe também um bocado. Qual é o problema? Não o acha tecnicamente competente? — É, com certeza. Trata-se apenas… — Se não há mais nada, Ken, voltamos a ver-nos na quinta-feira, se o vírus quiser. Quando Der Heer fechava a porta e entrava na sala de estar contígua, soou um explosivo espirro presidencial. O oficial-às-ordens de serviço, rigidamente sentado num sofá, assustou-se visivelmente. A pasta a seus pés estava atafulhada de códigos de autorização de guerra nuclear. Der Heer acalmou-o com um gesto repetitivo da mão, de dedos abertos e palma para baixo. O oficial sorriu, encabulado. — Aquilo é Vega? É por causa daquilo que há toda esta lufa-lufa? — perguntou a presidente com alguma decepção. A oportunidade de a imprensa tirar fotografias terminara e os olhos dela já se tinham quase adaptado à escuridão depois do ataque dos flashes dos fotógrafos e da iluminação da televisão. As fotografias da presidente a olhar fixamente através do telescópio do Observatório Naval que apareceram no dia seguinte em todos os jornais eram, evidentemente, uma pequena impostura. Ela fora incapaz de ver fosse o que fosse pelo telescópio enquanto os fotógrafos não tinham saído e a escuridão voltado. — Por que motivo tremelica? — É turbulência no ar, senhora Presidente — explicou Der Heer. — Passam bolhas de ar quente que deformam a imagem — É como olhar para si através da mesa do pequeno-almoço, quando está uma torradeira ligada entre nós. Lembro-me de ver um lado inteiro da cara dele descair — disse a presidente afetuosamente, levantando a voz para que o consorte presidencial, que se encontrava perto a conversar com o comandante do Observatório, a pudesse ouvir. — Sim, mas nos tempos que vão correndo não há torradeira ligada na mesa do pequeno-almoço — respondeu ele, em tom amigável. Antes de se reformar, Seymour Lasker fora um alto funcionário da União Internacional de Trabalhadores de Vestuário Feminino. Conhecera a mulher décadas atrás, quando ela representava a New York Girl Coat Company, e tinham-se apaixonado durante uma demorada negociação laboral. Considerando a novidade presente das posições de ambos, a saúde aparente do seu relacionamento era digna de nota. — Posso passar sem a torradeira, mas não estou a ter pequenos-almoços suficientes com o Sr. — A presidente inflectiu as sobrancelhas mais ou menos na direção do marido e depois voltou a prestar atenção ao instrumento monocular. — Parece uma ameba azul, toda… esborrachada. Depois da difícil reunião para selecionar os tripulantes, a presidente mostrava um estado de espírito despreocupado. A sua constipação estava quase curada. — E se não houvesse nenhuma turbulência, Ken? Que veria eu nesse caso? — Então seria como o Telescópio Espacial acima da atmosfera da Terra. Veria um ponto de luz firme e imóvel. — Só a estrela? Só Vega? Nenhuns planetas, nenhuns anéis, nenhumas estações de combate com raios laser? — Não, senhora Presidente. Tudo isso seria excessivamente pequeno e pouco brilhante para poder ser visto mesmo com um telescópio muito grande. — Bem, espero que os seus cientistas saibam o que estão a fazer — disse ela, quase num murmúrio. — Estamos a tomar uma tremenda quantidade de compromissos baseados numa coisa que nunca vimos. Der Heer ficou um pouco surpreendido. — Mas nós vimos trinta e uma mil páginas de texto, desenhos, palavras e mais um enorme manual de instruções. — No meu livro isso não é o mesmo que ver. Um pouco… ilativo demais. Não me venha dizer que cientistas de todo o mundo estão a receber os mesmos dados. Sei tudo isso. E não me diga como são claros e sem ambigüidades os projetos da Máquina. Também sei tudo isso. E que, se recuarmos, outro qualquer construirá com certeza a Máquina. Sei todas essas coisas. Mas nem mesmo assim deixo de me sentir nervosa. O grupo voltou, através do recinto do Observatório Naval, à residência do vice-presidente. Nas últimas semanas tinham-se delineado trabalhosamente acordos provisórios quanto à seleção dos tripulantes. Os Estados Unidos e a União Soviética haviam lutado por dois lugares cada; em tais questões, eram aliados dignos de confiança. Mas era difícil sustentar semelhante argumento com as outras nações do Consórcio Mundial da Mensagem. Nos tempos que corriam, os Estados Unidos e a União Soviética — mesmo tratando-se de questões em que estavam de acordo — tinham muito maior dificuldade do que outrora em levar a sua avante com as outras nações. O empreendimento era agora largamente reclamado como uma atividade da espécie humana. O nome Consórcio Mundial da Mensagem estava prestes a ser mudado para Consórcio Mundial da Máquina. Nações com excertos da Mensagem tentavam servir-se desse fato como direito de acesso de um dos seus cidadãos à qualidade de membro da tripulação. Os Chineses tinham argumentado serenamente que em meados do século seguinte seriam 1,5 mil milhões no mundo, mas com muitos deles nascidos como filhos únicos em virtude da experiência chinesa de controle dos nascimentos apoiado pelo Estado. Essas crianças, quando crescessem, predisseram, seriam mais inteligentes e emocionalmente mais seguras do que as crianças de outras nações com normas menos severas no tocante às dimensões da família. Conseqüentemente, argumentaram, em virtude de estarem a desempenhar um papel mais proeminente nos assuntos mundiais dentro de cinqüenta anos, os Chineses tinham direito a pelo menos um dos cinco lugares da Máquina. Era um argumento que estava a ser discutido em muitas nações por funcionários sem nenhuma responsabilidade na Mensagem ou na Máquina. A Europa e o Japão prescindiram da representação na tripulação em troca de maior responsabilidade na construção de componentes da Máquina, por considerarem que isso seria economicamente mais vantajoso. No fim foi reservado um lugar para os Estados Unidos, a União Soviética, a China e a Índia, ficando a atribuição do quinto lugar por decidir. Isto exigiria longas e difíceis negociações multilaterais e teria em consideração a dimensão populacional, o poder econômico, industrial e militar, os alinhamentos políticos presentes e até um pouco da história da espécie humana. Para se candidatarem ao quinto lugar, o Brasil e a Indonésia basearam-se na dimensão populacional e no equilíbrio geográfico; a Suécia propôs-se desempenhar um papel moderador em caso de disputas políticas; o Egito, o Iraque, o Paquistão e a Arábia Saudita apresentaram argumentos fundamentados na equidade religiosa. Outros sugeriram que, pelo menos, esse quinto lugar fosse atribuído tendo em consideração mais o mérito individual do que a nacionalidade. De momento, a decisão ficara em suspenso: um trunfo para ser jogado mais tarde. Nas quatro nações selecionadas, cientistas, líderes nacionais e outros entregavam-se à tarefa de escolher os seus candidatos. Iniciou-se nos Estados Unidos uma espécie de debate à escala nacional. Em sondagens de opinião, foram sempre mencionados com vários graus de entusiasmo dirigentes religiosos, heróis desportivos, astronautas, detentores à Medalha de Honra do Congresso, cientistas, artistas de cinema, uma ex-consorte presidencial, anfitriões de talk shows e pivots de noticiários da televisão, membros do Congresso, milionários com ambições políticas, executivos de fundações, cantores de música country e western e rock-and-roll, presidentes de universidades e a Miss América do momento. Por tradição antiga, desde que a residência do vice-presidente tinha sido mudada para o recinto do Conservatório Naval, os criados domésticos eram sargentos filipinos em serviço ativo na Armada dos EUA. De elegantes blazers azuis com uma tira bordada onde se lia «vice-presidente dos Estados Unidos», estavam naquele momento a servir café. A maioria dos participantes na reunião de todo o dia para a seleção dos tripulantes não tinham sido convidados para aquela sessão informal noturna. Fora singular destino de Seymour Lasker ser o primeiro Primeiro Cavalheiro da América. Ele carregava o fardo — as caricaturas dos jornais, as piadas lisonjeadoras e os chistes espirituosos de que nenhum homem chegara onde ele chegara — com tal franqueza e boa disposição que, por fim, a América conseguiu perdoar-lhe o fato de ter casado com uma mulher com o atrevimento de imaginar que seria capaz de dirigir metade do mundo. Lasker pusera a esposa e o filho adolescente do vice-presidente a rir à gargalhada quando a presidente conduziu Der Heer para um anexo adjacente à biblioteca. — Muito bem — começou. — Hoje não temos nenhuma decisão oficial a tomar, nem nenhum comunicado público das nossas deliberações a fazer. Mas vejamos se podemos elaborar uma súmula. Não sabemos o que a maldita Máquina fará, mas é razoável supor que vá a Vega. Ninguém faz a mínima idéia de como isso funcionará nem sequer de quanto tempo levará. Diga-me outra vez, a que distância fica Vega? — Vinte e seis anos-luz, senhora Presidente. — Portanto, se esta Máquina fosse uma espécie de nave espacial e pudesse viajar à velocidade da luz — eu sei que não se pode viajar à velocidade da luz, só próximo dela, não me interrompa —, levaria vinte e seis anos para chegar lá, mas só do modo como medimos o tempo aqui na Terra. É assim, Der Heer? — É. Exatamente. Talvez mais um ano para atingir a velocidade da luz e um ano para desacelerar e entrar no sistema de Vega. Mas, do ponto de vista dos membros da tripulação, levaria muito menos tempo. Talvez apenas uns dois anos, dependendo da proximidade da velocidade da luz a que viajassem. — Para um biólogo, Der Heer, tem andado a aprender muita astronomia. — Obrigado, senhora Presidente. Tentei mergulhar no assunto. Ela fitou-o apenas um momento e depois prosseguiu: — Portanto, desde que a Máquina viaje a uma velocidade muito próxima da luz, poderá não ter importância a idade dos membros da tripulação. Mas se levar mais dez ou vinte anos — e você diz que isso é possível —, então precisamos de ter alguém jovem. Ora os Russos não estão a dar crédito a este argumento. Sabemos que a escolha vai ser entre Arkhangels e Lunacharsky, ambos sexagenários. Lera os nomes com certa dificuldade numa ficha que tinha à sua frente. — É, quase certo que os Chineses vão enviar Xi, também sexagenário. Por conseqüência, se eu pensasse que eles sabem o que estão a fazer, sentir-me-ia tentada a dizer: «Com os diabos, mandemos um homem de sessenta anos!» Der Heer sabia que Drumlin tinha exatamente sessenta anos. — Por outro lado… — começou a argumentar. — Bem sei, bem sei. A doutora indiana. Essa tem quarenta e tal anos… De certo modo, esta é a coisa mais estúpida de que já ouvi falar. Estamos a escolher alguém para participar nos Jogos Olímpicos e não sabemos quais vão ser as provas. Também não sei por que motivo estamos a falar em enviar cientistas. O Mahatma Gandhi, aí está quem deveríamos enviar. Ou, já que estamos com a mão na massa, Jesus Cristo. Não me diga que eles não estão disponíveis, Der Heer. Eu sei isso. — Quando não sabemos quais são as provas, mandamos um campeão do decatlo. — E depois descobrimos que as provas são xadrez, ou oratória, ou escultura, e o nosso atleta fica em último lugar. Está bem, você diz que deve ser alguém que tenha pensado na vida extraterrestre e que tenha estado intimamente envolvido na recepção e na decifração da Mensagem. — Pelo menos uma pessoa assim estaria intimamente informada do modo como os Veganianos pensam. Ou, pelo menos, do modo como eles julgam que nós pensamos. — E, no tocante a gente verdadeiramente do topo, diz que isso reduz o campo a três pessoas. Consultou de novo os seus apontamentos. — Arroway, Drumlin e… aquele que julga ser um general romano. — O doutor Valerian, senhora Presidente. Não sei se ele julga que é um general romano; trata-se apenas do seu nome. — Valerian nem sequer responderia ao questionário do Comitê Selecionador. Não consideraria a escolha porque não deixaria a mulher. Não é isso? Não estou a criticá-lo. Não é parvo. Sabe fazer funcionar um relacionamento. Não se trata de a mulher ser doente, ou coisa do gênero, pois não? — Não. Que eu saiba, ela goza de excelente saúde. — Ótimo. Ótimo para eles. Mande-lhe um bilhete pessoal a minha parte… qualquer coisa no sentido de ela ser uma mulher e tanto, para um astrônomo a preferir ao universo. Mas tenha cuidado com a linguagem, Der Heer. Você sabe o que eu quero. E atire-lhe com algumas citações. Poesia, talvez. Mas não demasiado lamecha. — Acenou-lhe com o indicador esticado. — Esses Valerians podem ensinar-nos alguma coisa. Por que não os convidamos para um jantar importante? O rei do Nepal vem cá daqui a duas semanas. Será boa altura. Der Heer estava a escrever apressadamente. Tinha de telefonar para casa da secretária dos convites da Casa Branca assim que a reunião terminasse e precisava de fazer um telefonema ainda mais urgente. Havia horas que não conseguia aproximar-se sequer do telefone. — Restam portanto a Arroway e o Drumlin. Ela é uns vinte anos mais nova, mas ele está numa forma física espantosa. Voa em hang-glider, pratica aquele pára-quedismo em que evolucionam em queda livre antes de abrirem o pára-quedas, pratica mergulho aquático autônomo… é um cientista brilhante, ajudou muito a decifrar a Mensagem e passará um bom bocado a discutir com todos os outros velhos. Não trabalhou em armas nucleares, pois não? Não quero mandar ninguém que tenha trabalhado em armas nucleares. «Claro que a Arroway também é uma cientista brilhante. Dirigiu todo este Projeto Argus, conhece todos os pormenores da Mensagem e tem uma mente inquiridora. Toda a gente diz que os seus interesses são muito vastos. E daria uma imagem americana mais jovem. Fez uma pausa. — E você gosta dela, Ken. Não há nada de mal nisso. Eu também gosto dela. Mas às vezes destrambelha-se. Ouviu com cuidado o seu questionário? — Julgo saber a que passagem se está a referir, senhora Presidente. Mas a Comissão Selecionadora estava a fazer-lhe perguntas havia quase oito horas, e por vezes ela irrita-se com o que considera perguntas estúpidas. O Drumlin também é assim. Talvez ela tenha aprendido com ele. Foi sua aluna durante algum tempo, como sabe. — Sim, ele também disse algumas coisas idiotas. Olhe, parece que está aqui tudo gravado para nós neste VCR. Primeiro o questionário da Arroway e depois o de Drumlin. Carregue no botão de ligar, Ken. No écran da televisão via-se Ellie a ser entrevistada no seu gabinete do Projeto Argus. Ele conseguiu mesmo distinguir o bocado de papel já amarelecido com a citação de Kafka. No fim de contas, tomando todas as coisas em consideração, talvez Ellie fosse mais feliz se tivesse recebido apenas silêncio das estrelas. Tinha vincos à volta da boca e papos debaixo dos olhos. Viam-se também dois sulcos verticais, que não eram habituais, na sua fronte, mesmo por cima do nariz. Em vídeotape, Ellie parecia terrivelmente fatigada e Der Heer sentiu uma punhalada de culpa. — … que penso da «crise populacional do mundo»? — dizia Ellie. — Quer saber se sou contra ou a favor? Acha que se trata de uma pergunta-chave que me vão fazer em Vega e quer ter a certeza de que dou a resposta certa? Muito bem. É por causa do excesso de população que sou a favor da homossexualidade e do clero celibatário. Um clero celibatário é uma idéia particularmente boa, porque tem tendência para suprimir qualquer propensão hereditária para o fanatismo. Ellie aguardou de rosto inexpressivo, gelado mesmo, a pergunta seguinte. A presidente carregara no botão de «pausa». — Admito que algumas das perguntas possam não ter sido as melhores declarou. — Mas não queremos numa posição tão proeminente num projeto com implicações internacionais verdadeiramente positivas alguém que se revele um racista parvo. Neste assunto queremos o mundo em desenvolvimento do nosso lado. Tivemos uma boa razão para fazer aquela pergunta. Não acha que a resposta dela demonstra uma certa… falta de tato? A sua doutora Arroway é um bocado chica-esperta. Agora dê uma vista de olhos ao Drumlin. De laço azul às pintinhas, Drumlin parecia bronzeado e muito em forma. — Sim, eu sei que todos nós temos emoções — dizia —, mas tenhamos em consideração o que são exatamente as emoções. São motivações para comportamento adaptativo vindas de um tempo em que éramos demasiado estúpidos para compreender as coisas. Mas eu compreendo que, se uma matilha de hienas vem direta a mim de presas arreganhadas, me esperam problemas. Não preciso de alguns centímetros cúbicos de adrenalina para me ajudarem a compreender a situação. Consigo até perceber que talvez fosse importante para eu dar um contributo genético qualquer à próxima geração. Não preciso realmente de testosterona na minha corrente sanguínea para me ajudar nisso. Tem a certeza de que um ser extraterrestre muito avançado em contraste conosco estará sobrecarregado com emoções? Sei que há quem me considere demasiado frio, demasiado reservado Mas, se quiserem compreender realmente os extraterrestres, mandar-me-ão a mim. Sou mais parecido com eles do que qualquer outra pessoa que possam encontrar. — Mas que alternativa! — exclamou a presidente. Uma é ateia, o outro já julga que ele próprio é de Vega. Por que temos de mandar cientistas? Por que não podemos mandar alguém… normal? Trata-se apenas de uma pergunta retórica — apressou-se a acrescentar. — Sei por que motivo temos de mandar cientistas. A Mensagem é acerca de ciência e está escrita em linguagem científica. Ciência é uma coisa que sabemos que compartilhamos com os seres de Vega. Não, estas são, porém, boas razões, Ken. Não me esqueço delas. — Ela não é ateia. É agnóstica. Tem um espírito aberto. Não está limitada por um dogma. É inteligente, é tenaz e é muito profissional. O âmbito do seu conhecimento é deveras vasto. É exatamente a pessoa de que precisamos nesta situação. — Ken, gosto do seu empenho em defender a integridade deste projeto. Mas há muito medo lá fora. Não julgue que não sei quanto as pessoas já tiveram de engolir. Mais de metade daquelas com quem falo acham que não temos nada que construir esta coisa. Se não há possibilidade nenhuma de arrepiar caminho, querem que enviemos alguém que seja absolutamente seguro. A Arroway pode ser todas as coisas que você diz, mas segura não é. Estou a ser muito pressionada pelo Hill, pelos Earth-Firsters, pela minha própria Comissão Nacional e pelas igrejas. Suponho que ela impressionou o Palmer Joss naquele encontro na Califórnia, mas conseguiu enfurecer Billy Jo Rankin. Ele telefonou-me ontem e disse: «Senhora Presidente» — não consegue disfarçar o desagrado com que diz «senhora» —, «Senhora Presidente», disse-me, «aquela Máquina vai voar direto a Deus ou ao Diabo. Seja qual deles for, será melhor a senhora enviar um cristão autêntico.» Tentou servir-se do seu relacionamento com Palmer Joss para me pressionar, com os diabos! Não creio que haja alguma dúvida de que estava a fazer-se para ir ele próprio. O Drumlin será muito mais aceitável para alguém como Rankin do que a Arroway. «Reconheço que o Drumlin é um tipo frio, insensível. Mas é digno de confiança, patriota, fixe. Tem credenciais científicas impecáveis. E quer ir. Não, tem de ser o Drumlin. O melhor que posso oferecer é escolhê-la como reserva. — Posso dizer-lhe isso? — Não podemos informar a Arroway antes do Drumlin, pois não? Comunico-lhe, Ken, assim que for tomada uma decisão definitiva e tivermos informado o Drumlin… Oh, Ken, anime-se! Não quer que ela fique aqui, na Terra? Passava das seis horas quando Ellie terminou os seus esclarecimentos à «Equipe Tigre» do Departamento de Estado que servia de suporte aos negociadores americanos em Paris. Der Heer prometera telefonar-lhe assim que a reunião para a escolha dos tripulantes acabasse. Queria que ela soubesse por ele, e não por qualquer outra pessoa, se tinha sido escolhida ou não. Sabia que fora insuficientemente deferente para com as pessoas encarregadas dos interrogatórios e que podia perder por essa razão, entre uma dúzia de outras. No entanto, achava que talvez ainda houvesse uma probabilidade. Esperava-a uma mensagem no hotel — não um impresso cor-de-rosa do gênero «Enquanto esteve ausente…» preenchido pelo recepcionista, mas uma carta fechada e sem selo, entregue pessoalmente. Dizia: «Encontre-se comigo no Museu Nacional de Ciência e Tecnologia às oito horas desta noite. Palmer Joss.» Nenhum cumprimento, nenhumas explicações, nenhuma agenda, nenhum sinceramente seu, pensou ela. Este é realmente um homem de fé. O papel da carta era do próprio hotel e não havia nenhum endereço do remetente. Ele devia ter passado por ali de tarde, sabendo — o que ela achava perfeitamente possível —, por intermédio do próprio secretário de Estado, que Ellie estava na cidade e esperando encontrá-la. Tinha sido um dia estafante e ficou aborrecida por ter de roubar algum tempo à tarefa de transformar a Mensagem num todo coerente. Apesar de uma parte dela sentir relutância em ir, tomou ducha, mudou de roupa, comprou um pacote de cajus e decorridos três quartos de hora estava num táxi. Faltava cerca de uma hora para o encerramento e o museu estava quase deserto. Havia enormes máquinas escuras arrumadas em todos os cantos de um grande salão de entrada. Estava ali o orgulho das indústrias do calçado, têxtil e carvoeira do século XIX. Um órgão a vapor da Exposição de 1876 tocava uma música alegre, parecia-lhe que originariamente escrita para metais, para um grupo de turistas da África Ocidental. Joss não estava à vista. Ellie reprimiu o impulso de girar nos calcanhares e ir-se embora. Se tivesses de encontrar Palmer Joss neste museu, pensou, e as únicas coisas de que jamais tivesses falado com ele fossem religião e a Mensagem, onde o procurarias? Era um pouco como o problema da seleção de freqüências da SETI: nunca recebemos uma mensagem de uma civilização avançada e temos de decidir em que freqüências esses seres — acerca dos quais não sabemos virtualmente nada, nem sequer se existem — resolveram transmitir. Tem de envolver qualquer conhecimento que nós e eles compartilhemos. Nós e eles sabemos com certeza qual a espécie de átomo mais abundante no universo e a única radiofreqüência em que caracteristicamente absorve e emite. Tinha sido essa a lógica pela qual a linha de hidrogênio neutro de mil quatrocentos e vinte megahertz fora incluída em todas as explorações iniciais da SETI. Qual seria ali o equivalente? O telefone de Alexandre Graham Bell? O telégrafo? O TSF de Marconi?… Claro! — Este museu tem um pêndulo de Foucault? — perguntou ao guarda. O bater dos seus saltos ecoava no chão de mármore enquanto ela se dirigia para a rotunda. Joss estava encostado ao gradeamento, a olhar para uma representação em mosaico dos pontos cardeais. Havia pequenas marcas horárias verticais, umas direitas e outras obviamente derrubadas durante o dia pelo pêndulo. Por volta das sete da tarde alguém parara a sua oscilação e ele estava agora imóvel. Estavam completamente sós. Joss ouvira-a aproximar-se durante pelo menos um minuto, e não dissera nada. — Chegou à conclusão de que a oração pode fazer parar um pêndulo? — perguntou Ellie, a sorrir. — Isso seria abusar da fé. — Não vejo por quê. Converteria uma quantidade de gente. É bastante fácil para Deus fazê-lo e, se a memória não me falha, você fala com Ele regularmente… Não se trata disso, pois não? Quer realmente pôr à prova a minha fé na física dos osciladores harmônicos? Muito bem. Uma parte dela estava estupefata por Joss a submeter àquela prova, mas, por outro lado, sentia-se decidida a dar boa conta de si. Deixou a mala escorregar-lhe do ombro e descalçou os sapatos. Ele saltou, com um movimento gracioso, o gradeamento de segurança de latão e ajudou-a a passar para o outro lado. Desceram a vertente de mosaico, meio a andar, meio a escorregar, até pararem ao lado do pêndulo. Tinha um revestimento preto-baço e ela perguntou-se se seria feito de aço ou de chumbo. — Terá de me dar uma ajuda — disse Ellie. Conseguiu passar facilmente os braços à volta do pêndulo e, juntos, empurraram-no até ficar inclinado, a formar um bom ângulo com a vertical e nivelado com a cara dela. Joss observava-a atentamente. Não lhe perguntou se estava certa, absteve-se de a advertir do perigo de cair para a frente, não lhe recomendou que desse ao pêndulo um componente horizontal de velocidade quando o largasse. Atrás dela havia um bom metro ou metro e meio de chão plano, antes de começar a inclinar-se para cima e se transformar numa parede circunferencial. Se mantivesse a serenidade, disse a si mesma, aquilo ia ser canja. Largou. O pêndulo afastou-se dela. O tempo de duração da oscilação de um pêndulo simples, pensou um pouco tonta, é 27r, raiz quadrada de C sobre g, sendo C o comprimento do pêndulo e g a aceleração devida à gravidade. Em conseqüência de atrito na chumaceira, o pêndulo nunca pode ultrapassar, no regresso, a sua posição primitiva. Tudo quanto tenho de fazer é não cambalear para a frente, recordou a si própria. Perto do gradeamento oposto, o pêndulo afrouxou e parou. Invertendo a trajetória, desatou subitamente a avançar muito mais depressa do que ela calculara. À medida que se inclinava na sua direção, o seu tamanho aumentou alarmantemente. Era enorme e estava quase em cima dela. Ellie soltou um ofego abafado. — Recuei — disse, decepcionada, quando o pêndulo se afastou dela. — Só um bocadinho pequeníssimo. — Não, eu recuei. — Você acredita. Você acredita na ciência. Existe apenas um niquinho de dúvida. — Não, não se trata disso. Foi um milhão de anos de inteligência a lutar contra mil milhões de anos de instinto. É por isso que o seu trabalho é muito mais fácil do que o meu. — Nesta questão, o nosso trabalho é o mesmo. Agora é a minha vez — disse, e agarrou desequilibradamente o pêndulo no ponto mais alto da sua trajetória. — Mas nós não estamos a pôr à prova a sua crença na conservação da energia. Ele sorriu e tentou firmar os pés. — Que estão a fazer aí em baixo? — perguntou uma voz. — São doidos? — Um guarda do museu, numa ronda para se certificar de que todos os visitantes sairiam até à hora do encerramento, vira-se perante o espetáculo inesperado de um homem, uma mulher, um fosso e um pêndulo num recesso do cavernoso edifício onde não havia mais nada. — Oh, não há novidade, senhor guarda — tranqüilizou-o Joss, bem-humorado. — Estamos apenas a pôr à prova a nossa fé. — Não podem fazer isso na Smithsonian Institution — respondeu o homem. — Isto é um museu. A rir, Joss e Ellie restituíram com dificuldade o pêndulo a uma posição quase estacionária e subiram pela inclinada parede de mosaico. — Deve ser permitido pela Primeira Emenda — observou ela. — Ou pelo Primeiro Mandamento — redargüiu ele. Ellie enfiou os sapatos, pôs a mala ao ombro e, de cabeça levantada, saiu com Joss e o guarda da rotunda. Sem se identificarem e sem serem reconhecidos, conseguiram convencer o homem a não os prender. Mas foram conduzidos à saída do museu por uma falange coesa de pessoal uniformizado, porventura receoso de que Ellie e Joss fossem capazes de se infiltrar no órgão a vapor à procura de um deus esquivo. A rua estava deserta. Caminharam em silêncio ao longo do Mall. A noite estava clara e Ellie distinguiu Lira no horizonte. — Além, aquela brilhante. É Vega — disse. Ele olhou a estrela fixamente durante muito tempo. — Aquela decifração foi uma realização brilhante — disse por fim. — Oh, que tolice! Foi banal. Tratava-se da mensagem mais fácil que uma civilização avançada poderia imaginar. Teria sido uma autêntica vergonha se não tivéssemos sido capazes de a entender. — Já reparei que não aceita elogios de bom grado. Mas não, esta é uma daquelas descobertas que mudam o futuro. Pelo menos as nossas esperanças no futuro. É como o fogo, ou a escrita, ou a agricultura. Ou a Anunciação. Fitou de novo Vega. — Se conseguisse um lugar naquela Máquina, se pudesse viajar nela para o seu remetente, que pensa que veria? — A evolução é um processo estocástico. Há pura e simplesmente demasiadas possibilidades para que se possam fazer predições razoáveis acerca do que poderá ser a vida noutro lado. Se tivesse visto a Terra antes da origem da vida, teria previsto a existência de um «atydid»[16 - É qualquer de vários insetos verdes do gênero «licrocentru» e aparentados com os gafanhotos e os grilos. O macho tem, nas asas, órgãos especializados que, ao roçarem um no outro, produzem um som característico. (N. da T.)] ou de uma girafa? — Sei a resposta a essa pergunta. Suponho que você imagina que nós nos limitamos a inventar estas coisas, que as lemos em qualquer livro ou ouvimos nalguma tenda de orações. Mas não é assim. Eu tenho conhecimento certo, positivo, resultante da minha própria experiência direta. Não posso ser mais claro do que isto. Vi Deus cara a cara. Parecia não haver dúvidas quanto à profundidade do seu empenhamento. — Conte-me. E ele contou. — Muito bem — disse ela, por fim —, esteve clinicamente morto, depois reviveu e lembra-se de ter subido através de uma escuridão para uma luz brilhante. Viu uma radiância com forma humana, que tomou por Deus. Mas não houve nada na experiência que lhe dissesse que a radiância fez o universo ou ditou a lei moral. A experiência é uma experiência. De que foi profundamente abalado por ela, não restam dúvidas. Mas existem outras explicações possíveis. — Tais como? — Bem, como nascer. Nascer é subir através de um túnel comprido e escuro para uma luz brilhante. Não esqueça como é brilhante: o bebê passou nove meses na escuridão. Nascer é o primeiro encontro com a luz. Imagine como se sentiria espantado e intimidado no seu primeiro contato com a cor, ou a luz e a sombra, ou o rosto humano — que está provavelmente pré-programado para reconhecer. Talvez, se quase morremos, o odômetro retroceda a zero durante um momento. Compreenda, não insisto nesta explicação. Trata-se apenas de uma de muitas possibilidades. Estou a sugerir que pode ter interpretado mal a experiência. — Não viu o que eu vi. Voltou a olhar para a luz fria, trêmula e azul-branca de Vega e depois virou-se para ela: — Nunca se sente… perdida no seu universo? Como sabe o que fazer, como comportar-se, se não há Deus? É tudo uma questão de obedecer à lei ou ser preso? — Não está preocupado com perder-se, Palmer. Está preocupado com não ser fulcral, não ser a razão porque o universo foi criado. Há ordem suficiente no meu universo. Gravitação, eletromagnetismo, mecânica quântica, superunificação, tudo isso implica leis. E, quanto a comportamento, por que não podemos imaginar o que é do nosso melhor interesse, como espécie? — Essa é uma visão generosa e nobre do mundo, sem dúvida, e eu seria o último a negar que existe bondade no coração humano: Mas quanta crueldade não foi cometida quando não existia o amor de Deus? — E quanta crueldade quando havia? Savonarola e Torquemada amavam Deus, ou assim diziam. A sua religião parte do princípio de que as pessoas são crianças e precisam de um papão para se comportarem bem. Vocês querem que as pessoas acreditem em Deus para obedecerem à lei e o único modo que lhes ocorre: uma severa força policial secular e a ameaça do castigo de um deus que tudo vê para compensar tudo quanto escapa aos olhos da polícia. Avaliam muito por baixo dos seres humanos. «Palmer, você pensa que, se não tive a sua experiência religiosa, não posso apreciar a magnificência do seu deus. Mas trata-se precisamente do contrário. Eu escuzo-o e penso: o deus dele é demasiado pequeno! Um mísero planeta, uns poucos milhares de anos… isso dificilmente merece a atenção de uma divindade menor, quanto mais do Criador do universo. — Está a confundir-me com outro pregador qualquer. Aquele museu era território do Irmão Rankin. Eu estou preparado para um universo com milhares de milhões de anos de idade. Digo apenas que os cientistas não o provaram. — E eu digo que você não compreendeu as provas. Como pode ser benéfico para as pessoas se a sabedoria convencional, as «verdades» religiosas, são uma mentira? Quando acreditar realmente que as pessoas podem ser adultas, pregará um sermão diferente. Seguiu-se um breve silêncio, pontuado apenas pelo eco dos seus passos. — Peço desculpa se fui um pouco contundente demais. Acontece-me de vez em quando. — Dou-lhe a minha palavra, doutora Arroway, de que refletirei cuidadosamente no que disse esta noite. Suscitou algumas questões para as quais preciso de resposta. Mas, no mesmo espírito, permita que lhe faça algumas perguntas. De acordo? Ela acenou afirmativamente e ele prosseguiu: — Pense na sensação que causa a percepção, na sensação que causa neste momento. Causa a sensação de milhares de milhões de minúsculos átomos a debaterem-se para ocupar o seu lugar? E, para além da engrenagem biológica, onde, na ciência, pode uma criança aprender o que é o amor? Aqui tem… O beeper de Ellie soou. Provavelmente era Ken com a notícia por que esperava. Se era, fora uma reunião muito longa para ele. Mas talvez, apesar disso, as notícias fossem boas. Olhou para as letras e para os números que se formavam no cristal líquido: o número do telefone do escritório de Ken. Não havia cabinas telefônicas à vista, mas, decorridos poucos minutos, conseguiram arranjar um táxi. — Lamento ter de me ir embora tão subitamente — desculpou-se Ellie. — Gostei da nossa conversa e pensarei muito a sério nas suas perguntas… Queria fazer mais uma, não queria? — Queria. O que existe nas normas da ciência que impeça um cientista de fazer mal? CAPÍTULO XV Cubo de érbio A Terra, isso basta, Não quero as constelações mais perto, Sei que estão muito bem onde estão, Sei que bastam àqueles que lhes pertencem      WALT WHITMAN. Leaves of Grass. Song of the Open Road. (1855) Levou anos, foi um sonho tecnológico e um pesadelo diplomático, mas, por fim, decidiram construir a Máquina. Foram propostos vários neologismos e nomes de projeto evocativos de mitos antigos. Mas desde o princípio que toda a gente lhe chamara simplesmente a Máquina, e essa tornou-se a sua designação oficial. As continuadas, complexas e delicadas negociações internacionais eram descritas por editorialistas ocidentais como «Política da Máquina». Quando se conseguiu fazer o primeiro cálculo fundamentado do custo total, até os titãs da indústria aeroespacial perderam o fôlego. Eventualmente, ascendeu a meio bilhão de dólares por ano durante alguns anos, aproximadamente um terço do orçamento militar total — nuclear e convencional — do planeta. Havia receio de que a construção da Máquina arruinasse a economia mundial. «Guerra econômica desencadeada por Vega?» perguntava o Economist, de Londres. As parangonas diárias de The New York Times eram, de qualquer ponto de vista desapaixonado, mais singulares e estranhas do que quaisquer outras do agora defunto National Enquirer, uma década atrás. Os registros mostrarão que nenhum médium, vidente, profeta ou adivinho, nenhuma pessoa que se proclamasse possuidora de aptidões pré-cognitivas, nenhum astrólogo, nenhum numerólogo e nenhum copywriter de fins de Dezembro sobre «O Ano Que Vem» predissera a Mensagem ou a Máquina — e muito menos Vega, números primos, Adolf Hitler, os Jogos Olímpicos e todo o resto. Houve, no entanto, muitos que afirmaram ter previsto claramente os acontecimentos, mas, descuidadamente, terem negligenciado escrever a pré-cognição. Predições de acontecimentos surpreendentes revelam-se sempre mais exatas quando não são registradas de antemão no papel. É uma daquelas singulares regularidades da vida quotidiana. Muitas religiões encontravam-se numa categoria ligeiramente diferente: uma leitura atenta, cuidadosa e imaginativa dos seus escritos sagrados revelaria, argumentavam, uma previsão clara daqueles extraordinários acontecimentos. Para outros, a Máquina representava uma sorte grande potencial para a indústria aeroespacial do mundo, que se encontrava em preocupante declínio desde que os Acordos de Hiroxima tinham entrado plenamente em vigor. Eram muito poucos os sistemas de armas estratégicas que estavam em desenvolvimento. Os habitats no espaço constituíam um negócio crescente, mas mal compensavam a perda das estações orbitais de combate laser e outros componentes da defesa estratégica encarada por uma administração anterior. Assim, alguns dos que se preocupavam com a segurança do planeta, se a Máquina fosse construída, tiveram de engolir os escrúpulos perante as implicações de mais postos de trabalho, lucros e promoções de carreiras. Algumas fontes bem colocadas argumentavam não haver perspectiva mais rica para as indústrias de alta tecnologia do que uma ameaça do espaço. Teria de haver defesas, radares e vigilância imensamente potentes, eventuais postos avançados em Plutão ou na Nuvem do Cometa Oort. Não havia argumentação acerca das disparidades militares entre terrestres e extraterrestres capaz de intimidar tais visionários. «Mesmo que não consigamos defender-nos contra eles», perguntavam, «não querem que os vejamos vir?» Havia lucro nisso; e eles farejavam-no. Estavam a construir a Máquina, evidentemente, uma construção que atingia valores da ordem dos bilhões de dólares; mas a Máquina seria apenas o princípio se eles jogassem bem as suas cartas. Uma inverossímil aliança política aglutinou-se por trás da reeleição da presidente Lasker, que se transformou, na realidade, num referendo nacional quanto a construir ou não a Máquina. O seu opositor advertiu quanto a Cavalos de Tróia, a Máquinas do Fim do Mundo e à perspectiva de desmoralização do engenho americano perante os alienígenas que já tinham «inventado tudo». A presidente declarou-se confiante em que a tecnologia americana estaria à altura do desafio e deu a entender, embora o não dissesse de fato, que o engenho americano viria eventualmente a igualar tudo quanto eles tinham em Vega. Foi reeleita por uma margem respeitável, mas de modo nenhum avassaladora. As próprias instruções foram um fato decisivo. Tanto no manual sobre linguagem e tecnologia básica, como na Mensagem sobre a construção da Máquina, nada era confuso ou pouco claro. Algumas vezes, passos intermédios que pareciam absolutamente óbvios eram descritos com uma minúcia enfadonha — como quando, nas bases da aritmética, se prova que, se duas vezes três é igual a seis, então três vezes dois também é igual a seis. Em todos os estádios da construção havia espaços de conferência: o érbio produzido por este processo deve ser noventa e seis por cento puro, não conter mais do que uma fração da percentagem de impureza das outras terras raras. Quando o componente trinta e um estiver concluído e for colocado numa solução molar seis de ácido hidrofluorídrico, os elementos estruturais remanescentes deverão parecer-se com o diagrama da figura seguinte. Quando o componente quatrocentos e oito for montado, a aplicação de um campo magnético transversal de dois megagauss deverá fazer girar o rotor até tantas revoluções por segundo antes de ele voltar a um estado de imobilidade. Se algum dos testes falhava, voltava-se atrás e refazia-se tudo do princípio. Passado algum tempo, as pessoas habituaram-se aos testes e esperaram ser capazes de os passar. Era uma coisa parecida com a memorização por repetição, com aprender de cor. Muitos dos componentes subjacentes, construídos por fábricas especiais concebidas a partir do nada e obedecendo às instruções do manual, desafiavam a compreensão humana. Era difícil perceber por que haveriam de funcionar. Mas funcionavam. Mesmo em tais casos, podiam encarar-se aplicações práticas das novas tecnologias. Ocasionalmente, pareciam surgir percepções promissoras para a refinação na metalurgia, por exemplo, ou em semicondutores orgânicos. Nalguns casos eram fornecidas várias tecnologias alternativas para produzir um componente equivalente; aparentemente, os extraterrestres não tinham a certeza de qual das abordagens seria mais fácil para a tecnologia da Terra. À medida que as primeiras fábricas foram sendo construídas e os primeiros protótipos produzidos, diminuiu o pessimismo quanto à capacidade humana para reconstruir uma tecnologia estranha a partir de uma Mensagem escrita numa linguagem desconhecida. Havia a sensação inebriante de chegar mal preparado para um exame e descobrir que se era capaz de deduzir as respostas a partir dos conhecimentos gerais e do bom senso que se possuíam. Como em todos os exames competentemente elaborados, fazê-lo era uma experiência instrutiva. Passaram-se todos os primeiros testes: o érbio tinha a pureza adequada; depois de o ácido hidrofluorídrico ter dissolvido o material inorgânico, ficou a superestrutura desenhada; o rotor girou como tinha sido indicado que deveria girar. A Mensagem lisonjeava os cientistas e os engenheiros, diziam os críticos; eles estavam a deixar-se apanhar pela tecnologia e a perder de vista os perigos. Para a construção de um componente especificava-se um conjunto particularmente complicado de reações químico-orgânicas, cujo produto foi introduzido numa mistura, com as dimensões de uma piscina, de formaldeído e amônia aquosa. A massa cresceu, diferenciou-se, especializou-se e depois ficou simplesmente ali — exoticamente mais complexa do que qualquer coisa semelhante que os humanos sabiam construir. Tinha uma rede intrincadamente ramificada de finos tubos ocos, através dos quais talvez viesse a circular algum fluido. Era coloidal, polposa e vermelho-escura. Não fazia cópias de si mesma, mas era suficientemente biológica para assustar muita gente. Repetiram o processo e obtiveram algo aparentemente idêntico. Como era possível o produto final ser significativamente mais complicado do que as instruções para a sua construção, constituía um mistério. A massa orgânica esparramava-se na sua plataforma e, tanto quanto parecia, não fazia nada. Destinava-se a ir no interior do dodecaedro, logo acima e abaixo da área destinada à tripulação. Nos Estados Unidos e na União Soviética estavam a ser construídas Máquinas idênticas. Ambas as nações tinham resolvido construir em lugares relativamente longínquos, não tanto para proteger os centros populacionais no caso de se tratar de uma Máquina do Fim do Mundo, como para controlar o acesso dos maníacos das curiosidades, dos contestatários e dos media. Nos Estados Unidos, a Máquina foi construída no Wyoming; na União Soviética, logo para lá do Cáucaso, na RSS do Uzbequistão. Instalaram-se fábricas novas perto dos lugares de montagem. Onde os componentes podiam ser fabricados com algo parecido com a indústria existente, o fabrico estava largamente distribuído. Um subempreiteiro de Jena, por exemplo, fazia e testava componentes destinados às Máquinas americana e soviética — e para irem para o Japão, onde cada componente era sistematicamente examinado para, na medida do possível, se compreender como funcionava. O progresso, a partir de Hokkaido, tinha sido lento. Havia o receio de que um componente sujeito a um teste não autorizado na Mensagem pudesse destruir alguma sutil simbiose dos vários componentes de uma Máquina a funcionar. Uma importante subestrutura da Máquina eram três cápsulas esféricas concêntricas exteriores dispostas com os eixos perpendiculares uns aos outros e concebidas para girar a elevadas velocidades. As cúpulas esféricas deveriam ter talhados nelas padrões complexos e precisos. Uma cápsula que tinha sido girada algumas vezes num teste não autorizado funcionaria inadequadamente quando montada na Máquina? Em contrapartida uma cápsula não experimentada funcionaria perfeitamente. As Hadden Industries eram o principal empreiteiro americano encarregado da construção da Máquina. Sol Hadden insistira em que se não efetuassem nenhuns testes não autorizados, nem sequer montagem de componentes destinados a eventual montagem na Máquina. As instruções, ordenou, teriam de ser seguidas ao bit, visto não haver letras, per se, na Mensagem. Instigou os seus empregados a pensarem em si mesmos como necromantes medievais a repetirem meticulosamente as palavras de um encantamento mágico. Não ousem pronunciar mal uma sílaba, recomendou-lhes. Isto acontecia, consoante a doutrina calendarial ou escatológica que cada um preferisse, dois anos antes do Milênio. Estava tanta gente a «reformar-se», numa feliz antecipação do Juízo Final ou do Advento, ou de ambos, que nalgumas indústrias havia escassez de trabalhadores especializados. A disposição de Hadden para reestruturar a sua força laboral no sentido de otimizar a construção da Máquina, e para fornecer incentivos aos subempreiteiros, era vista como um fator importante do êxito americano até ali. Mas Hadden também se tinha «reformado» — o que era uma surpresa, considerando as muito conhecidas opiniões do inventor do Preachnix. «Os quiliastas fizeram de mim um ateu», dizia-se que ele afirmava. As decisões-chave ainda estavam nas suas mãos, diziam os seus subordinados. Mas a comunicação com Hadden fazia-se via telerrede assíncrona rápida. Os seus subordinados deixavam-lhe relatórios dos progressos feitos, pedidos de autorização e perguntas numa caixa fechada à chave de um conhecido serviço de telerrede científica. As suas respostas vinham noutra caixa fechada à chave. Era um procedimento peculiar, mas parecia estar a dar resultado. À medida que os passos iniciais e mais difíceis eram dados e a Máquina começava realmente a tomar forma, cada vez se ouvia falar menos de S. R. Hadden. Os executivos do Consórcio Mundial da Máquina estavam preocupados, mas, após o que foi descrito como um prolongado encontro com Mr. Hadden num lugar não revelado, voltaram tranqüilizados. Mais ninguém conhecia o seu paradeiro. Os estoques estratégicos mundiais desceram abaixo de três mil e duzentas armas nucleares pela primeira vez desde meados da década de 1950. As conversações multilaterais sobre as fases mais difíceis do desarmamento, a redução a um dissuasor nuclear mínimo, estavam a fazer progressos. Quanto menos fossem as armas de um lado, tanto mais perigosa seria a ocultação de um pequeno número de armas pelo outro. E com o número de sistemas de lançamento — que eram muito mais fáceis de controlar — também á diminuir rapidamente, com novos meios de monitorização automática do respeito pelos tratados a serem instalados e com novos acordos sobre inspeção in loco, as perspectivas de futuras reduções pareciam boas. O processo gerara uma espécie de momentum próprio na mente tanto dos peritos como do público. Como acontece no tipo de corrida armamentista habitual, as duas potências competiam para se manter a par uma da outra, mas, desta vez, nas reduções de armas. Em termos militares práticos, ainda não tinham prescindido de muito; mantinham a capacidade de «destruir a civilização planetária». No entanto, no otimismo gerado quanto ao futuro, na esperança engendrada na geração emergente, esse começo já realizara muito. Talvez com o auxílio das iminentes celebrações mundiais do Milênio, tanto seculares como canônicas, o número anual de hostilidades armadas entre nações diminuíra ainda mais. O cardeal-arcebispo da Cidade do México chamara-lhe «A Paz de Deus». No Wyoming e no Uzbequistão tinham sido criadas novas indústrias e erguiam-se no solo cidades novas inteiras. O preço era suportado desproporcionalmente pelas nações industriais, claro, mas o preço pro rata para toda a gente da Terra era qualquer coisa como cem dólares por ano. Para um quarto da população terrestre, cem dólares era uma fração significativa do rendimento anual. O dinheiro gasto com a Máquina não produzia diretamente bens ou serviços. Mas era considerado um bom negócio no aspecto da estimulação de nova tecnologia, mesmo que a própria Máquina nunca funcionasse. Havia muito quem achasse que o ritmo fora demasiado rápido, que cada passo deveria ser compreendido antes de se avançar para o seguinte. Se, assim, a construção da Máquina levasse gerações, argumentava-se, que importância teria isso? Distribuir os custos de desenvolvimento ao longo de décadas diminuiria o peso que a construção da Máquina representasse para a economia mundial. De muitos pontos de vista, isto constituía um conselho prudente, mas difícil de pôr em prática. Como se podia desenvolver apenas um componente da Máquina? Por todo o mundo, cientistas e engenheiros de diversas convicções disciplinares pressionavam para serem deixados livres naqueles aspectos da Máquina que se sobrepunham às suas áreas de especialidade. Alguns receavam que, se a Máquina não fosse construída rapidamente, nunca o seria. A presidente americana e o premier soviético tinham comprometido as suas nações na construção da Máquina. Isto não estava garantido no caso de todos os possíveis sucessores. Além disso, por razões pessoais perfeitamente compreensíveis, os que controlavam o projeto desejavam vê-lo concluído enquanto ainda ocupavam cargos de responsabilidade. Havia quem argumentasse que existia uma freqüência intrínseca numa mensagem transmitida em tantas freqüências. Tão nitidamente e durante tanto tempo. Não nos estavam a pedir que construíssemos a Máquina quando estivéssemos preparados para isso. Pediam-nos que a construíssemos já. O ritmo acelerava-se. Todos os subsistemas iniciais se baseavam em tecnologias elementares descritas na primeira parte do manual. Os testes determinados tinham sido feitos e passados sem grandes dificuldades. À medida, porém, que os subsistemas posteriores mais complexos foram sendo testados, notaram-se falhas ocasionais. Isto era aparente em ambas as nações, mas mais freqüente na União Soviética. Visto ninguém saber como os componentes funcionavam, geralmente era impossível recuar da falha detectada para a identificação do passo mal dado no processo de fabrico. Nalguns casos, os componentes eram feitos em paralelo por dois fabricantes diferentes, com competição nos capítulos de rapidez e precisão. Se havia dois componentes e ambos tinham passado nos testes, cada nação tinha tendência para escolher o produto doméstico. Assim, as Máquinas que estavam a ser montadas nos dois países não eram absolutamente idênticas. Finalmente, em Wyoming, chegou a altura de começar a integração de sistemas, a junção dos componentes separados numa Máquina completa. Parecia provável que fosse a parte mais fácil do processo de construção. Parecia igualmente provável que tudo ficasse concluído em um ano ou dois. Alguns pensavam que a ativação da Máquina acabaria com o mundo mesmo na data certa. Os coelhos eram muito mais astutos no Wyoming. Ou menos. Era difícil dizer. Os faróis do Thunderbird tinham iluminado um coelho perto da estrada mais de uma vez. Mas centenas deles dispunham-se em fileiras… Esse costume, aparentemente, ainda não se propagara do Novo México ao Wyoming. Ellie achava que a situação aqui não era muito diferente da de Argus. Havia uma importante instalação científica rodeada por dezenas de milhares de quilômetros quadrados de paisagem encantadora e quase desabitada. Ela não dirigia o espetáculo e não fazia parte da tripulação, mas estava ali, a trabalhar num dos maiores empreendimentos jamais imaginados. Sem dúvida, acontecesse o que acontecesse depois da Máquina ser ativada, a descoberta de Argus seria considerada um ponto de viragem da história humana. Precisamente no momento em que se tornava necessária uma força unificadora suplementar qualquer, caíra aquele raio do céu. De vinte e seis anos-luz de distância, de duzentos e trinta bilhões de quilômetros. É difícil pensarmos na nossa lealdade principal como escoceses, ou eslovenos, ou szechwaneses quando estamos todos a ser indiscriminadamente saudados por uma civilização milênios à nossa frente. O fosso entre a nação tecnologicamente mais atrasada da Terra e as nações industrializadas era, com certeza, muito mais pequeno do que o fosso entre as nações industrializadas e os seres de Vega. Subitamente, distinções que antes tinham parecido tremendas — raciais, religiosas, nacionais, étnicas, lingüísticas, econômicas e culturais — começaram a parecer um pouco menos prementes. «Somos todos humanos» — era uma frase que ultimamente se ouvia com freqüência. Era extraordinária a pouca freqüência com que, em décadas anteriores, tinham sido manifestados sentimentos desta natureza, especialmente nos media. Compartilhamos o mesmo pequeno planeta, dizia-se, e — muito aproximadamente — a mesma civilização global. Era difícil imaginar os extraterrestres tomando a sério a reivindicação de atendimento preferencial feita por representantes de uma ou outra facção ideológica. A existência da Mensagem — mesmo independentemente da sua função enigmática — estava a unir o mundo. Via-se isso acontecer diante dos olhos. A primeira pergunta da mãe quando soube que Ellie não tinha sido escolhida foi: «Choraste?» Sim, chorara. Era natural. Havia, claro, uma parte dela que ansiava por embarcar. Mas Drumlin fora uma escolha de primeira categoria, dissera à mãe. Os Soviéticos não tinham tomado nenhuma decisão entre Lunacharsky e Arkhangelsky; «treinar-se-iam» ambos para a missão. Era difícil entender qual poderia ser o treino adequado para além de compreenderem a Máquina o melhor que eles, ou quaisquer outros, pudessem. Alguns americanos alegavam, acusadores, tratar-se isso, apenas, de uma tentativa dos Soviéticos para terem dois porta-vozes principais na questão da Máquina, mas Ellie pensava que semelhante acusação era mesquinha. Tanto Lunacharsky como Arkhangelsky eram extremamente competentes. Perguntava a si mesma como decidiriam os Soviéticos qual deles enviar. Lunacharsky encontrava-se nos Estados Unidos, mas não ali, no Wyoming. Estava em Washington com uma delegação de alto nível soviética, numa reunião com o secretário de Estado e Michael Kitz, recentemente promovido a secretário-adjunto da Defesa. Arkhangelsky regressara ao Uzbequistão. A nova metrópole que crescia no deserto de Wyoming chamava-se Máquina: Machine, Wyoming. A sua correlativa soviética recebera o nome russo equivalente: Makhina. Cada uma era constituída por um complexo de residências, serviços públicos, bairros comerciais e residenciais e — sobretudo — fábricas. Algumas eram despretensiosas, pelo menos exteriormente. Mas a outras bastava um simples olhar para detectar os seus aspectos singulares: cúpulas e minaretes, quilômetros de complicada tubagem exterior. Só as fábricas que eram consideradas potencialmente perigosas — as que fabricavam os componentes orgânicos, por exemplo — se encontravam ali, no deserto de Wyoming. As tecnologias melhor compreendidas estavam distribuídas por todo o mundo. O núcleo do conjunto de novas indústrias era a Instalação de Integração de Sistemas, construída perto do que em tempos fora Wagonwheel, Wyoming, para onde os componentes completados eram enviados. Às vezes, Ellie via chegar um componente e tinha consciência de que fora o primeiro ser humano a vê-lo como o desenho de um projeto. Sempre que alguma peça nova era desencaixotada, ia a correr inspecioná-la. Quando os componentes eram montados um após outro e os subsistemas passavam nos testes prescritos, sentia uma espécie de satisfação que julgava semelhante ao orgulho maternal. Ellie, Drumlin e Valerian chegaram para uma reunião de rotina, havia muito marcada, sobre a, entretanto completamente redundante, monitorização do sinal de Vega. Quando chegaram, encontraram toda a gente a falar do incêndio de Babilônia. Ocorrera às primeiras horas da manhã, talvez numa ocasião em que o lugar era percorrido apenas pelos seus habitués mais iníquos e irregeneráveis. Um grupo de assalto, equipado com morteiros e bombas incendiárias, atacara simultaneamente através das portas de Enlil e Ishtar. Tinha sido lançado fogo ao zigurate. Havia uma fotografia de pessoas duvidosa e escassamente vestidas a fugir do Templo de Assur. Surpreendentemente, ninguém morrera, embora houvesse muitos feridos. Pouco antes do ataque, o New York Sun, um jornal controlado pelos Earth-Firsters e ostentando um globo rachado por um raio a encabeçar a coluna dos nomes dos seus redatores e colaboradores, recebera um telefonema anunciando que o ataque ia ser efetuado. Tratava-se de castigo divinamente inspirado, informara quem telefonara, aplicado em nome da decência e da moralidade americanas por aqueles que estavam fartos e cansados de imundície e de corrupção. Houve declarações do presidente da Babylon, Inc., condenando o ataque e acusando uma alegada conspiração criminosa, mas — pelo menos até àquele momento nem uma palavra de S. R. Hadden, vinda de onde quer que ele estivesse. Como se sabia que Ellie visitara Hadden em Babilônia, alguns membros do pessoal do projeto quiseram saber a sua reação. Até Drumlin se mostrou interessado na sua opinião a esse respeito, embora, a julgar pelo seu evidente conhecimento da geografia do lugar, parecesse possível que ele próprio o tivesse visitado mais de uma vez. Ellie não tinha dificuldade nenhuma em imaginá-lo como auriga. Mas talvez ele tivesse apenas lido a respeito da Babilônia. As revistas semanais tinham publicado fotomapas. Eventualmente, abandonaram o assunto e voltaram ao que ali os levara. Fundamentalmente, a Mensagem prosseguia nas mesmas freqüências, passa-bandas, constantes temporais e modulações de fase e polarização; o desenho da Máquina e o manual de instruções continuavam sob os números primos e a transmissão dos Jogos Olímpicos. A civilização do sistema de Vega parecia muito empenhada. Ou talvez se tivessem apenas esquecido de desligar o emissor. Valerian tinha uma expressão distante nos olhos. — Peter, porque tem de olhar para o teto quando pensa? Dizia-se que Drumlin se tornara mais brando nos últimos anos, mas, como acontecia com aquela observação, a sua mudança nem sempre era aparente. Ser escolhido pela presidente dos Estados Unidos para representar a nação junto dos extraterrestres, costumava dizer, era uma grande honra. A viagem, confidenciava aos seus íntimos, seria o ponto culminante da sua vida. A mulher dele, temporariamente transplantada para Wyoming e ainda obstinadamente fiel, tinha de suportar as mesmas exibições de slides apresentadas a novas audiências de cientistas e técnicos que estavam a construir a Máquina. Como a localização ficava perto da sua Montana natal, de vez em quando ia lá em visitas breves. Numa ocasião, Ellie levara-o de carro a Missoula. Pela primeira vez desde que se conheciam, ele mostrara-se cordial com ela durante algumas horas consecutivas. — Chiu! Estou a pensar — respondeu Valerian. — É uma técnica de supressão de ruído. Estou a tentar minimizar os motivos de distração no meu campo visual, e vem você e apresenta-me uma distração no espectro áudio! Poderia perguntar-me por que razão não fixo apenas um bocado de papel em branco. O problema é o fato de o papel ser demasiado pequeno. Consigo ver coisas na minha visão periférica. De qualquer modo, estava a pensar no seguinte: por que estamos ainda a receber a mensagem de Hitler, a transmissão dos Jogos Olímpicos? Passaram anos. Entretanto devem ter captado a transmissão da coroação britânica. Por que não vimos alguns primeiros planos de Orbe, Cetro e arminho e não ouvimos uma voz declamar e…agora coroado como Jorge VI, pela Graça de Deus, rei da Inglaterra e da Irlanda do Norte e imperador da Índia? — Tem a certeza de que Vega estava sobre a Inglaterra aquando da transmissão da coroação? — perguntou Ellie. — Tenho. Verificamos isso poucas semanas depois da recepção da transmissão dos Jogos Olímpicos. E a intensidade era mais forte do que a história do Hitler. Tenho a certeza de que Vega podia ter captado a transmissão da coroação. — Receia que eles não queiram que saibamos tudo quanto sabem a nosso respeito? — sugeriu Ellie. — Estão com pressa — respondeu Valerian, que ocasionalmente tinha propensão para elocuções délficas. — O mais provável — opinou Ellie — é quererem continuar a recordar-nos que sabem o que respeita a Hitler. — Isso não é inteiramente diferente do que eu estou a dizer — redargüiu Valerian. — Está bem, não percamos mais tempo na Fantasilândia — resmungou Drumlin, que se impacientava sempre com especulações sobre a motivação dos extraterrestres. Conjecturar era um desperdício de tempo total, dizia; em breve saberíamos. Entretanto instigava todos a concentrarem-se na Mensagem: essa era constituída por dados concretos — redundantes, sem ambigüidades, brilhantemente compostos. — Olhem, um pouco de realidade talvez os concentre aos dois. Por que não vamos até à área de montagem? Creio que estão a fazer sistemas de integração com os tubos de érbio. O desenho geométrico da Máquina era simples. Os pormenores eram extremamente complexos. As cinco cadeiras em que a tripulação se sentaria ficavam a meia-nau no dodecaedro, na parte onde formava um bojo exterior mais proeminente. Não existiam quaisquer instalações para comer, dormir ou outras funções corporais e havia um limite máximo, cuidadosamente prescrito, para o peso dos tripulantes e dos seus pertences. Na prática, essa restrição atuava com vantagem. para pessoas de pequena estatura. Alguns pensavam significar isso que, uma vez ativada, a Máquina se encontraria rapidamente com um veículo espacial interestelar nas imediações da Terra. O único senão era que meticulosas explorações ópticas e por radar não conseguiam detectar qualquer vestígio de tal nave. Custava a crer que os extraterrestres se tivessem esquecido das necessidades fisiológicas elementares humanas. Talvez a Máquina não fosse a lado nenhum. Talvez fizesse qualquer coisa à tripulação. Não havia instrumentos nenhuns na área tripulada, nada que servisse para conduzir, nem sequer uma chave de ignição — apenas as cinco cadeiras, voltadas para o interior, de modo que cada membro pudesse observar os outros. Por cima e por baixo da área tripulada, na parte a afuselar do dodecaedro, ficavam os materiais orgânicos, com a sua arquitetura intrincada e intrigante. Dispostos através do interior desta parte do dodecaedro, aparentemente ao acaso, ficavam os tu os de ébrio. E rodeando o dodecaedro ficavam as três cápsulas esféricas concêntricas, cada qual representando de certo modo uma das três dimensões físicas. À primeira vista, as cápsulas ficavam magneticamente suspensas — pelo menos as instruções incluíam um potente gerador de campo magnético e o espaço entre as cápsulas esféricas e o dodecaedro seria um grande vácuo. A Mensagem não especificava o nome de qualquer dos componentes da Máquina. O érbio era identificado como o átomo com sessenta e oito prótons e noventa e nove nêutrons. As diversas partes da Máquina também eram descritas numericamente — componente trinta e um, por exemplo. Assim, às cápsulas esféricas concêntricas rotativas foi dado o nome de benzels por um técnico checo que sabia alguma coisa da história da tecnologia: Gustav Benzel inventara, em 1870, o carrossel. A concepção e a função da Máquina eram insondáveis; a construção da Máquina exigia todo um conjunto de novas tecnologias, mas ela era feita de matéria, a estrutura podia ser diagramada — na realidade, tinham aparecido em media de todo o mundo desenhos de cortes técnicos — e a sua forma acabada foi prontamente visualizada. Reinava um estado de espírito constante de otimismo tecnológico. Drumlin, Valerian e Arroway submeteram-se à habitual seqüência de identificação, envolvendo credenciais, impressão do polegar e gravação da voz, e foram depois admitidos no vasto recinto de montagem. Guindastes de três andares colocavam tubos de érbio na matriz orgânica. Diversos painéis pentagonais para o exterior do dodecaedro pendiam de uma via férrea elevada. Enquanto os Soviéticos tinham tido alguns problemas, os subsistemas americanos tinham finalmente passado todos os testes e a arquitetura global da Máquina começava a emergir gradualmente. Está tudo a ficar nos seus lugares, pensou Ellie. Olhou para o lugar onde os benzels seriam montados. Quando completada, a Máquina pareceria, vista de fora, uma daquelas esferas armilares dos astrônomos da Renascença. Que teria Johannes Kepler pensado de tudo aquilo? O chão e os caminhos circunferenciais dos vários pisos do edifício de montagem estavam cheios de técnicos, funcionários governamentais e representantes do Consórcio Mundial da Máquina. Enquanto observavam, Valerian comentou que a presidente iniciara uma correspondência ocasional com a sua mulher, mas que esta nem sequer lhe dizia acerca de que se correspondiam. Alegara o direito à privacidade. O posicionamento dos tubos estava quase terminado e ia tentar-se pela primeira vez um teste importante de integração de sistemas. Alguns pensavam que o dispositivo de monitorização prescrito era um telescópio de onda de gravidade. No momento em que o teste ia começar, contornaram um poste, para verem melhor. De súbito, Drumlin ia pelo ar, a voar. Tudo o mais parecia voar também. Lembrou a Ellie o tornado que transportara Dorothy para Oz. Como num filme ao retardador, Drumlin inclinou-se na direção dela, de braços abertos, e atirou-a brutalmente ao chão. Depois de todos aqueles anos, pensou Ellie, seria aquela a sua idéia de uma abordagem sexual? O homem tinha muito que aprender! Nunca se conseguiu determinar de quem foi a autoria. Entre as organizações que reivindicavam publicamente a responsabilidade contavam-se os Earth-Firsters, a Facção do Exército Vermelho, a Jihad islâmica, a agora clandestina Fundação de Energia de Fusão, os Separatistas Sikhs, o Sendero Luminoso, o Khmer Verde, a Renascença Afegã, a ala radical das Mães Contra a Máquina, a Igreja Reunificada da Reunificação, a Omega Sete, os Quiliastas do Juízo Final (embora Billy Jo Rankin desmentisse qualquer ligação com o assunto e afirmasse que as confissões eram feitas pelos ímpios numa tentativa condenada ao fracasso para desacreditar Deus), pela Broederbond, por El Catorce de Febrero, pelo Exército Secreto do Kuomitang, pela Liga Sionista, pelo partido de Deus e pela recém-ressuscitada Frente de Libertação Simbionesa. Na sua maioria, estas organizações não dispunha dos meios necessários para executar a sabotagem; a extensão da lista era apenas um indicativo de como a oposição à Máquina alastrara. A Ku-Klux-Klan, o partido Nazi Americano, o partido Nacional-Socialista Democrático e um punhado de outras organizações de mentalidade semelhante abstiveram-se e não reivindicaram a responsabilidade no sucedido. Uma minoria influente dos seus membros acreditava que a Mensagem tinha sido enviada pelo próprio Hitler. Segundo uma versão, ele fora levado para fora da Terra pela tecnologia de foguetões alemã em Maio de 1945 e, nos anos intermédios, os nazis tinham feito um progresso significativo. — Não sei aonde a Máquina ia — disse a presidente passados alguns meses —, mas, se era a algum lugar nem que fosse só com metade da chaladice deste planeta, provavelmente a viagem não teria, de qualquer modo, valido a pena. Segundo a reconstituição feita pela Comissão de Inquérito, um dos tubos de érbio fora partido ao meio por uma explosão; os dois fragmentos em forma de casamata tinham descido de uma altura de vinte metros e sido também propulsionados lateralmente a uma velocidade considerável. Uma parede interior sustentadora de peso tinha sido atingida e cedera sob o impacto. Morreram onze pessoas e ficaram feridas quarenta e oito. Foi destruído um certo número de componentes importantes da Máquina e, como uma explosão não se contava entre os protocolos dos testes prescritos pela Mensagem, a explosão devia ter danificado componentes aparentemente não afetados. Quando não se fazia a mínima idéia quanto ao funcionamento de uma coisa, era imprescindível ter muito cuidado com a sua construção. Apesar da profusão de organizações que reivindicaram sofregamente o crédito pela sabotagem, nos Estados Unidos as suspeitas concentraram-se imediatamente em dois dos poucos grupos que não tinham reivindicado a responsabilidade: os extraterrestres e os Russos. Conversas acerca de Máquinas do Fim do mundo voltaram a encher o ar. Os extraterrestres tinham concebido a Máquina para explodir catastroficamente quando montada, mas, por sorte no dizer de alguns, tínhamos sido descuidados na montagem e somente uma pequena carga — talvez o detonador da Máquina do Fim do Mundo — explodira. Insistiam em que se parasse a construção antes que fosse demasiado tarde e se enterrassem os componentes sobreviventes em minas de sal muito afastadas umas das outras. Mas a Comissão de Inquérito encontrou provas de que a Tragédia da Máquina, como o caso veio a tornar-se conhecido, era de origem mais terrestre. Os tubos tinham uma cavidade elipsoidal central de propósito desconhecido e a sua parede interior era forrada por uma intricada rede de finos fios de gadolínio. Essa cavidade fora cheia de explosivo plástico ligado a um dispositivo de relógio, materiais que não constavam da relação das peças da Máquina. O tubo tinha sido executado, a cavidade forrada e o produto final testado e selado numa instalação da Hadden Cybernetics em Terre Haute, Indiana. A instalação dos fios de gadolínio tinha sido demasiado complicada para ser feita à mão; tornaram-se necessários servo-mecânicos robóticos, que, por sua vez, tinham exigido a construção de uma fábrica importante. O custo da construção da fábrica fora totalmente suportado pela Hadden Cybernetics, mas haveria outras, e mais lucrativas, aplicações para os seus produtos. Os três outros tubos de érbio do mesmo lote foram inspecionados e não se encontrou qualquer explosivo plástico. Equipes soviéticas e japonesas tinham efetuado uma série de experiências de auscultação remota antes de ousarem abrir os seus tubos de érbio. Alguém introduzira cuidadosamente uma carga tamponada e um detonador de relógio na cavidade, perto do fim do processo de construção em Terre Haute. Uma vez fora da fábrica, o tubo — e os de outros lotes — tinha sido transportado por comboio especial, e sob guarda armada, para Wyoming. O momento da explosão e a natureza da sabotagem sugeriam alguém com conhecimento da construção da Máquina; fora um trabalho feito no interior. Mas a investigação pouco progrediu. Houvera diversas dúzias de pessoas — técnicos, analistas de controle de qualidade, inspetores que selaram o componente para o transporte — que poderiam ter tido a oportunidade de cometer a sabotagem, se não os meios e a motivação. Os que falharam nos testes do polígrafo tinham álibis de pedra e cal. Nenhum dos suspeitos se descaiu com uma confissão num momento desprevenido, no bar mais próximo. Nenhum começou a gastar mais do que os seus meios permitiam. Nenhum «cedeu» sob o interrogatório. Apesar do que se qualificou de esforços vigorosos da parte das agências responsáveis pelo cumprimento da lei, o mistério permaneceu por desvendar. Os que consideravam os Soviéticos culpados argumentavam que o seu móbil fora impedir os Estados Unidos de ativar a sua Máquina primeiro. Os Russos possuíam a competência técnica necessária para efetuar a sabotagem e, claro, o conhecimento minucioso dos protocolos e da prática da construção da Máquina de ambos os lados do Atlântico. Assim que o desastre ocorreu, Anatoly Goldmann, antigo discípulo de Lunacharsky que estava a trabalhar como agente de ligação soviético em Wyoming, comunicou urgentemente com Moscovo e disse-lhes que desmontassem todos os seus tubos de érbio. Aparentemente, esta conversa — que tinha sido rotineiramente escutada pela NSA — pareceu demonstrar a inexistência de qualquer envolvimento russo, mas alguns argumentaram que o telefonema fora um estratagema para desviar as suspeitas, ou que Goldmann não tivera conhecimento antecipado da sabotagem. O argumento foi aproveitado por aqueles que, nos Estados Unidos, se sentiam inquietos com a recente redução das tensões entre as duas superpotências nucleares. Compreensivelmente, Moscovo ficou indignado com a sugestão. Na realidade, os Soviéticos estavam a encontrar mais dificuldades na construção da sua Máquina do que era do conhecimento geral. Utilizando a Mensagem descriptografada, o Ministério da Indústria Meio-Pesada fez progressos consideráveis na extração de minério, metalurgia, nas máquinas e ferramentas e similares. A nova microeletrônica e a nova cibernética eram mais difíceis, e a maior parte desses componentes para a Máquina soviética estavam a ser produzidos, sob contrato, noutros lugares da Europa e do Japão. Mais difícil ainda para a indústria nacional soviética era a química orgânica, muita da qual exigia técnicas desenvolvidas na biologia molecular. Fora desferido um golpe quase fatal na genética soviética quando, na década de 1930, Estaline decretara que a moderna genética mendeliana era ideologicamente inadequada e declarara cientificamente ortodoxa a genética excêntrica de um agrônomo politicamente sofisticado chamado Trofim Lysendo. A duas gerações de inteligentes estudantes soviéticos não foi ensinado essencialmente nada das bases fundamentais da hereditariedade. Agora, sessenta anos volvidos, a biologia molecular e a engenharia genética soviéticas estavam relativamente atrasadas e poucas descobertas importantes nessa matéria se deviam a cientistas soviéticos. Algo similar acontecera, mas abortivamente, nos Estados Unidos, onde, por razões teológicas, tinham sido feitas tentativas para impedir os estudantes de escolas públicas de aprenderem o que dizia respeito à evolução, a idéia central da biologia moderna. A razão era transparente, visto uma interpretação fundamentalista da Bíblia ser largamente considerada incompatível com o processo evolutivo. Felizmente para a biologia molecular americana, os fundamentalistas não eram tão influentes nos Estados Unidos como Estaline fora na União Soviética. O relatório da National Intelligence preparado para a presidente sobre a questão concluía pela inexistência de provas de envolvimento soviético. Pelo contrário, em virtude de terem paridade com os Americanos no número de tripulantes, os Soviéticos tinham fortes incentivos para apoiar a conclusão da Máquina americana. «Se a nossa tecnologia está no nível três», explicou o diretor da Central Intelligence, «e a do nosso adversário no nível quatro, ficamos felizes quando cai do céu tecnologia do nível quinze. Desde que tenhamos igual acesso a ela e recursos adequados.» Poucos funcionários do Governo americano acreditavam que os Soviéticos fossem os causadores da explosão, e a presidente disse isso mesmo publicamente em mais de uma ocasião. Mas os velhos hábitos custam a morrer. «Nenhum grupo excêntrico, por muito bem organizado que esteja, desviará a humanidade deste objetivo histórico,» declarou a presidente. Na prática, porém, tornara-se muito mais difícil conseguir um consenso nacional. A sabotagem insuflara vida nova a todas as objeções, razoáveis ou desrazoáveis, que anteriormente tinham sido levantadas. Só a perspectiva de. os Soviéticos completarem a sua Máquina manteve o projeto americano ativo. A mulher quisera que o funeral de Drumlin se confinasse a uma cerimônia familiar, mas nisso, como em muitas outras coisas, as suas boas intenções foram ignoradas. Físicos, páras-mergulhadores, fãs de hang-ding, funcionários governamentais, entusiastas do mergulho autônomo, radioastrônomos, os divers, aquaplanadores e a comunidade mundial SETI, todos quiseram comparecer. Durante algum tempo encararam a idéia de realizar os serviços religiosos na Catedral de São João Evangelista, na cidade de Nova Iorque, por ser a única igreja do país de tamanho adequado. Mas a mulher de Drumlin obteve uma pequena vitória e a cerimônia foi efetuada ao ar livre na cidade natal do marido, em Missoula, Montana. As autoridades tinham concordado porque Missoula simplificava os problemas de segurança. Embora Valerian não tivesse ficado gravemente ferido, os seus médicos aconselharam-no a não assistir ao funeral; apesar disso, ele proferiu um dos elogios fúnebres, numa cadeira de rodas, O gênio especial de Drumlin consistia em saber que perguntas fazer, disse Valerian. Abordara o problema da SETI ceticamente, porque o ceticismo se encontrava no coração da ciência. Mas, quando se tornara evidente que estava a ser recebida uma Mensagem, ninguém se devotara mais a decifrá-la nem revelara para isso mais recursos. O secretário-adjunto da Defesa, Michael Kitz, em representação da presidente, sublinhou as qualidades pessoais de Drumlin — o seu entusiasmo, a sua preocupação com os sentimentos dos outros, a sua inteligência brilhante, as suas aptidões atléticas. Não fora aquele trágico e cobarde acidente, e Drumlin teria ficado na história como o primeiro americano a visitar outra estrela. Dela não haveria nenhuma peroração, dissera Ellie a Der Heer. Nem entrevistas à imprensa. Talvez algumas fotografias — compreendia a importância de algumas fotografias. Não confiava em si, não tinha a certeza de que diria as coisas certas. Durante anos fora uma espécie de porta-voz, para o público, da SETI, de Argus e depois da Mensagem e da Máquina. Mas aquilo agora era diferente. Precisava de algum tempo para entender tudo bem. Tanto quanto lhe parecia, Drumlin morrera ao salvar-lhe a vida. Vira a explosão antes de os outros a ouvirem, lobrigara a massa de vários centos de quilogramas de érbio descrevendo um arco na direção deles. Com os seus reflexos rápidos, saltara para a empurrar para trás, para o outro lado do poste. Mencionara essa possibilidade a Der Heer, que respondera: Drumlin estava provavelmente a saltar para se salvar a si próprio e calhou, apenas, encontrares-te no seu caminho. A observação era dura; pretenderia também agradar-lhe? Ou talvez, continuara Der Heer, ao sentir que lhe desagradara, Drumlin tivesse sido atirado ao ar pela onda de choque provocada pelo érbio ao atingir a plataforma de montagem. Mas ela tinha a certeza absoluta. Vira tudo. A preocupação de Drumlin fora salvar-lhe a vida. E salvara. Tirando algumas pequenas escoriações, ficara fisicamente ilesa. Valerian, que estivera completamente protegido pelo poste, ficara com ambas as pernas fraturadas por uma parede que ruíra. Ela fora afortunada em mais de um aspecto. Nem sequer perdera os sentidos. O seu primeiro pensamento, assim que compreendera o que acontecera, não tinha sido para o seu antigo professor David Drumlin, horrivelmente esmagado diante dos seus olhos; não tinha sido de espanto ante a perspectiva de Drumlin ter dado a sua vida pela dela; não tinha sido o atraso que de tudo aquilo resultaria para o Projeto da Máquina. Não. Límpido, claro, o seu primeiro pensamento tinha sido: Posso ir, eles terão de me enviar, não há mais ninguém, tenho de ir eu. Contivera-se imediatamente. Mas já tarde demais. Ficou apavorada com o seu envolvimento pessoal, com o egoísmo mesquinho que revelara a si mesma naquele momento de crise. Não importava que Drumlin tivesse tido fraquezas semelhantes. Sentia-se horrorizada por descobri-las, ainda que fugazes, dentro de si mesma — tão… veementemente, tão azafamadamente, planejando futuros cursos de ação, esquecida de tudo, exceto dela própria. O que mais detestou foi a ausência absoluta de generosidade do seu ego: não apresentava quaisquer justificações, não dava quartel, atirava-se de cabeça. Era imoral, doentio. Ela sabia que seria impossível arrancá-lo, raiz e ramo. Teria de trabalhar nele pacientemente, de discutir com ele chamando-o à razão, de desviar-lhe a atenção, talvez até mesmo de ameaçá-lo. Quando os investigadores chegaram à cena do desastre, mostrou-se incomunicativa. «Lamento não poder dizer-lhes muito. Nós três caminhávamos juntos na área de montagem e, de súbito, houve uma explosão e foi tudo pelos ares. Sinto não poder ajudar. Gostaria de poder.» Disse claramente aos seus colegas que não queria falar do assunto e refugiou-se no seu apartamento durante tanto tempo que eles mandaram um grupo de reconhecimento saber dela. Tentou recordar todos os cambiantes do incidente. Tentou reconstituir a sua conversa antes de entrarem na área de montagem, o que ela e Drumlin tinham dito durante a viagem de automóvel a Missoula, o que Drumlin lhe parecera quando o tinha conhecido no princípio da sua carreira de pós-graduação. Pouco a pouco descobriu que houvera uma parte dela que desejara a morte dele — antes mesmo de se tornarem competidores para o lugar americano na Máquina. Odiava-o por tê-la diminuído na presença dos outros estudantes; nas aulas, por se ter oposto ao Projeto Argus, pelo que lhe dissera no momento seguinte à reconstituição do filme de Hitler. Desejara-lhe a morte. E agora ele morrera. Obedecendo a um certo raciocínio — que reconheceu imediatamente como tortuoso —, considerava-se culpada. Ele teria estado, sequer, ali, se não fosse ela. Com certeza que sim, respondeu a si mesma; qualquer outra pessoa teria descoberto a Mensagem e Drumlin ter-lhe-ia saltado para cima. Por assim dizer. Mas não o teria ela — porventura através da sua própria insensibilidade científica — instigado a envolver-se mais profundamente no Projeto da Máquina? Passo a passo, examinou as possibilidades. Se eram desagradáveis, aprofundava-as com particular insistência; escondia-se ali alguma coisa. Pensou em homens, homens que por qualquer razão admirara. Drumlin. Valerian. Der Heer. Joss. Jesse… Staughton?… O seu pai. — Doutora Arroway? Sentiu-se gratamente arrancada à sua meditação por uma mulher loura e robusta, de meia-idade e vestido azul estampado. O seu rosto pareceu-lhe de certo modo familiar. A tarjeta identificativa, de pano, no busto farto, dizia: H. Bork, Goteborg. H — Doutora Arroway, lamento a sua… a sua perda. O David disse-me tudo a seu respeito. Claro! A lendária Helga Bork, companheira de mergulho autônomo de Drumlin em tantas e tão enfadonhas sessões de exibição de slides para estudantes pós-graduados. Quem, perguntou a si própria pela primeira vez, tirara aquelas fotografias? Convidaria um fotógrafo para os acompanhar nos seus encontros subaquáticos? — Ele disse-me quanto eram íntimos, os dois. Que está esta mulher a tentar dizer-me? Ter-lhe-á o Drumlin insinuado… Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. — Desculpe, doutora Bork, neste momento não me sinto muito bem. De cabeça baixa, a outra apressou-se a afastar-se. Estavam no funeral muitos que ela desejava ver: Vaygay, Arkhangelsky, Gotsridze, Baruda, Yu, Xi, Devi… E Abonneba Eda, de quem se falava cada vez mais como do quinto membro da tripulação — se as nações tivessem uma ponta de bom senso, pensou Ellie, e se alguma vez houvesse uma coisa como uma Máquina completada. Mas a sua histamina social estava estourada e naquele momento ela não poderia suportar encontros demorados. Por um lado, receava o que fosse capaz de dizer. Quanto do que dissesse seria para bem do projeto e quanto para satisfazer as suas próprias necessidades? Os outros mostraram-se compassivos e compreensivos. No fim de contas, ela fora a pessoa que se encontrava mais perto de Drumlin quando o tubo de érbio o atingira e fizera em polpa. CAPÍTULO XVI Os anciãos do ozônio O deus que a ciência reconhece deve ser um deus exclusivamente de leis universais, um deus de negócio grossista, e não retalhista. Não pode conciliar os seus processos com a conveniência dos indivíduos.      WILLIAM JAMES. The Varieties of Religious Experience (1902) A poucas centenas de quilômetros de altitude, a Terra enche metade do nosso céu e a faixa de azul que se estende de Mindanau a Bombaim, e que os nossos olhos abarcam num único relance, é capaz de nos despedaçar o coração, de tão bela. A nossa Terra, pensamos. Aquele é o meu mundo. Foi dali que vim. Toda a gente que conheço, toda a gente de quem alguma vez ouvi falar, cresceu ali em baixo, debaixo daquele azul implacável e extraordinário. Corremos para leste de horizonte a horizonte, de alvorecer a alvorecer, dando a volta ao planeta em hora e meia. Passado pouco tempo ficamos a conhecê-lo, examinamos as suas idiossincrasias e anomalias. Conseguimos ver tanto a olho nu! A Florida estará em breve de novo à vista. Aquele sistema de tempestade tropical que vimos na última órbita, a rodopiar e a correr sobre as Caraíbas, terá chegado a Fort Lauderdale? Estarão libertas de neve, este Verão, algumas das montanhas do Hindu Kush? Temos tendência para admirar os recifes cor de água-marinha do mar de Coral. Olhamos para o banco de gelo do Antártico ocidental e perguntamo-nos se o seu colapso inundaria realmente todas as cidades costeiras do planeta. À luz do dia, porém, é difícil ver qualquer sinal de habitação humana. Mas à noite, tirando a aurora polar, tudo quanto vemos é devido a humanos, ao fervilhar e tremeluzir a toda a volta do planeta. Aquela faixa de luz é a parte oriental da América do Norte, contínua de Boston a Washington, uma megalópoles de fato, se não de nome. Além arde o gás natural da Líbia. As luzes ofuscantes da frota japonesa de pesca do camarão movimentaram-se na direção do mar da China Meridional. Em cada órbita a Terra conta-nos novas estórias. Podemos ver uma erupção vulcânica na Kamchatka, uma tempestade de areia sariana a aproximar-se do Brasil, tempo gélido extemporâneo na Nova Zelândia. Começamos a pensar na Terra como um organismo, uma coisa viva. Começamos a preocupar-nos com ela, a interessar-nos por ela, a desejar-lhe bem. As fronteiras nacionais são tão invisíveis como meridianos de longitude, ou os trópicos de Câncer e Capricórnio. As fronteiras são arbitrárias. O planeta é real. O vôo espacial, conseqüentemente, é subversivo. Se tem a sorte suficiente de se encontrar em órbita terrestre, a maioria das pessoas, após um pouco de meditação, tem pensamentos similares. As nações que tinham instituído o vôo espacial haviam-no feito largamente por razões nacionalistas; constituía uma pequena ironia o fato de quase todos quantos penetravam no espaço terem o espantoso vislumbre de uma perspectiva transnacional, da Terra como um mundo. Não era difícil imaginar um tempo em que a lealdade predominante seria para com esse mundo azul, ou mesmo para com um aglomerado de mundos aninhados à volta da estrela anã amarela próxima, à qual os humanos, outrora ignorantes de que toda a estrela é um sol, tinham aposto o artigo definido; o Sol. Somente agora, quando muitas pessoas entravam no espaço por longos períodos e lhes era concedido um pouco de tempo para reflexão, somente agora o poder da perspectiva planetária começava a sentir-se. Um número significativo desses ocupantes da órbita terrestre baixa eram, como viera a descobrir-se, influentes lá em baixo, na Terra. Tinham — desde o princípio, desde antes de humanos terem entrado no espaço — enviado animais lá para cima. Amebas, moscas-da-fruta, ratos, cães e macacos tinham-se tornado audazes veteranos do espaço. À medida que vôos espaciais de duração cada vez mais longa se tornaram possíveis, descobriu-se uma coisa inesperada. Não exercia nenhum efeito sobre microrganismos e pouco efeito sobre moscas-da-fruta; mas, no tocante aos mamíferos, segundo parecia, a gravidade zero aumentava o período de duração da vida. Em dez ou vinte por cento. Se uma pessoa vivia em zero, o seu corpo despendia menos energia a combater a força da gravidade, as suas células oxidavam-se mais devagar e a pessoa vivia mais tempo. Alguns médicos afirmavam que os efeitos seriam muito mais pronunciados em seres humanos do que em ratos. Pairava no ar um tenuíssimo aroma de imortalidade. A taxa de novos cancros descera oitenta por cento nos animais orbitais, em comparação com um grupo de controle na Terra. A leucemia e os carcinomas linfáticos desciam noventa por cento. Havia até alguns indícios, talvez ainda não, estatisticamente, significativos, de que a taxa de remissão espontânea de doenças neoplásicas era muito maior em gravidade zero. Meio século atrás, o químico alemão Otto Warburg alvitrara que a oxidação era a causa de muitos cancros. O menor consumo celular de oxigênio no estado de ausência de peso parecia de súbito muito atraente. Pessoas que em décadas anteriores teriam feito uma peregrinação ao México em busca de laetrile clamavam agora por um bilhete para o espaço. Mas o preço era exorbitante. Quer como medicina preventiva, quer como medicina clínica, o vôo espacial estava ao alcance de muito poucos. De súbito, somas de dinheiro até então inauditas ficaram disponíveis para investimento em estações orbitais civis. Mesmo no fim do Segundo Milênio havia hotéis de aposentadoria rudimentares a algumas centenas de quilômetros de altitude. Além da despesa existia, evidentemente, uma grave desvantagem; as lesões vasculares e osteológicas progressivas tornariam impossível voltar alguma vez ao campo gravitacional da superfície da Terra. Mas, para alguns dos anciãos ricos, isso não constituía impedimento importante. Em troca de outra década de vida, sentiam-se felizes por poderem retirar-se para o céu e, eventualmente, morrer lá. Havia quem se preocupasse com o fato de se tratar de um investimento imprudente da riqueza limitada do planeta; eram demasiadas as necessidades urgentes e as justas queixas dos pobres e desprovidos de poder para que se gastasse essa riqueza a paparicar os ricos e poderosos. Era temerário, diziam, permitir que uma classe privilegiada emigrasse para o espaço, deixando as massas para trás, na Terra — um planeta que se tornava efetivamente pertença de proprietários absentistas. Outros professavam tratar-se de uma dádiva de Deus: os proprietários do planeta estavam a agrupar-se em bandos e a partir; lá em cima, argumentavam, não podiam fazer tanto mal, nem pouco mais ou menos, como cá em baixo. Quase ninguém antevia o resultado principal, a transferência de uma perspectiva planetária viva para aqueles que podiam fazer o maior bem. Passados alguns anos restavam poucos nacionalistas em órbita terrestre. O confronto nuclear global levanta reais problemas àqueles com uma propensão para a imortalidade. Havia industriais japoneses, grandes armadores gregos, príncipes herdeiros sauditas, um ex-presidente, um antigo secretário-geral do partido, um barão de magnatas escroques chinês e um patrão de traficantes de heroína retirado. No Ocidente, além de um punhado de convites promocionais, existia apenas um critério para obtenção de residência georbital: tinha de se poder pagar. A estalagem soviética era diferente; chamava-se estação espacial e o antigo secretário-geral encontrava-se lá, dizia-se, para «investigação gerontológica». De modo geral, as massas não se sentiam ressentidas. Um dia, imaginavam, também iriam. Os que se encontravam em órbita terrestre tendiam a ser circunspectos, cuidadosos, calados. As suas famílias e os que os serviam tinham qualidades pessoais semelhantes. Eram o foco da atenção discreta de outras pessoas ricas e poderosas que ainda estavam na Terra. Não faziam declarações públicas, mas as suas opiniões permeavam gradualmente o pensamento de líderes em todo o mundo. A redução continuada das armas nucleares pelas cinco potências nucleares era uma coisa que os venerandos em órbita apoiavam. Sem alardes, tinham endossado a construção da Máquina em virtude do seu potencial para unificar o mundo. Ocasionalmente, organizações nacionalistas escreviam a respeito de uma imensa conspiração em órbita terrestre, de bonzões tremelicantes que vendiam as suas mães-pátrias. Havia panfletos que se afirmavam transcrições estenográficas de uma reunião a bordo do Methuselah, em que tinham estado presentes representantes de outras estações espaciais privadas, os quais para lá tinham sido transportados para o efeito. Era apresentada uma lista de «itens de ação», concebida para insuflar terror no coração do mais morno patriota. Os panfletos eram espúrios, anunciou a Timesweek, que lhes chamou «Os protocolos dos anciãos do ozônio». Nos dias que antecederam imediatamente o lançamento, Ellie tentou passar algum tempo — freqüentemente logo após o alvorecer — em Cocoa Beach. Pedira emprestado um apartamento que dava para a praia e para o oceano Atlântico. Levava consigo bocados de pão e treinava-se a atirá-los às gaivotas. Elas tinham habilidade para apanhar pedaços em vôo, com uma vantagem de campo mais ou menos equivalente, segundo os seus cálculos, à de um externo campista de basebol da primeira divisão. Havia momentos em que vinte ou trinta gaivotas pairavam no ar, apenas um metro ou dois acima da sua cabeça. Batiam vigorosamente as asas para se manterem no seu lugar, de bico aberto, tensas, na previsão do aparecimento miraculoso de comida. Roçavam umas pelas outras num parente movimento ao acaso, mas o efeito geral era um padrão estacionário. No caminho de regresso reparou numa pequena e, na sua humildade, perfeita fronde de palmeira caída no fim da praia. Apanhou-a e levou-a para o apartamento, a sacudir cuidadosamente a areia com os dedos. Hadden convidara-a para uma visita à sua casa longe de casa, ao seu castelo no espaço. Chamava-lhe Methuselah. Ela não pôde falar do convite a ninguém, fora do Governo, em virtude da paixão de Hadden por se manter afastado da atenção pública. Na realidade, ainda não era do conhecimento geral que ele fora residir em órbita, se mudara para o céu. Todos os participantes do Governo a quem Ellie falou do convite se mostraram favoráveis. O conselho de Der Heer foi: «A mudança de cenário far-te-á bem.» A presidente era claramente a favor da visita, pois apareceu rapidamente um lugar disponível no próximo vaivém, o já idoso STS Intrepid. A passagem para uma casa de repouso em órbita efetuava-se geralmente por transporte comercial. Estava a ser submetido a provas de qualificação de vôo final um veículo muito maior não reutilizável. Mas a esquadra de vaivens, embora a envelhecer, era ainda o cavalo de carga das atividades espaciais do Governo dos EUA, tanto militares como civis. — Soltam-se mosaicos às mãos-cheias quando reentramos e depois voltamos a colá-los quando descolamos — explicou-lhe um dos pilotos-astronautas. Além de uma saúde geral boa, não havia quaisquer exigências quanto á condição física para o vôo. Os veículos comerciais tinham tendência para subir cheios e regressar vazios. Em contrapartida, os vôos de vaivens esgotavam a lotação tanto na ida como na volta. Antes da sua última aterragem, na semana anterior, o Intrepid encontrara-se com o Methuselah e acostara, a fim de trazer dois passageiros de regresso à Terra. Ellie reconheceu-lhes os nomes: um era um desenhista de sistemas de propulsão e o outro um criobiólogo. Perguntou a si mesma o que teriam ido fazer a Methuselah. — Verá — continuou o piloto —, será como cair de um tronco derrubado. Quase ninguém detesta e a maioria das pessoas adora. Ela adorou. Apertada no interior do veículo com o piloto, dois especialistas missionários, um militar de lábios cerrados e um funcionário do Internal Revenue Service, acumulou o prazer de uma descolagem impecável com a embriaguez da sua primeira experiência em gravidade zero, uma experiência mais demorada do que a viagem no elevador de alta desaceleração no World Trade Center, em Nova Iorque. Uma órbita e meia depois encontravam-se com Methuselah. Dali a dois dias, o transporte comercial Narnia trá-la-ia para baixo. O Castelo — Hadden insistia em chamar-lhe assim — girava lentamente, efetuando uma revolução completa em cada noventa minutos, de modo que o mesmo lado estava sempre voltado para a Terra. O gabinete de Hadden apresentava um panorama magnificente na antepara voltada para a Terra — não se tratava de um écran de televisão, mas sim de uma verdadeira janela transparente. Os fótons que ela estava a ver tinham sido projetados pelos nevados Andes apenas uma fração de segundo antes. A não ser nas proximidades da periferia da janela, onde o plano inclinado através do grosso polímero era mais longo, não se notava praticamente nenhuma distorção. Havia muita gente que conhecia, até mesmo pessoas que se consideravam religiosas, para quem o sentimento de reverência era um embaraço. Mas era preciso ser feita de pau, pensou, para parar diante daquela janela e não o experimentar. Deveriam enviar jovens poetas e compositores, artistas plásticos, cineastas e pessoas profundamente religiosas, mas sem estarem completamente dependentes das burocracias sectárias. Aquela experiência podia ser facilmente transmitida, achava, à gente comum da Terra. Que pena não ter ainda sido tentado a sério. A sensação era… numinosa. — Habituamo-nos — disse-lhe Hadden —, mas não nos cansamos. De vez em quando ainda é inspiradora. Abstêmio como sempre, fazia render uma cola de dieta. Ela recusara a oferta de qualquer coisa mais forte. O preço do etanol em órbita devia ser elevado. — Claro que sentimos a falta de coisas: longos passeios a pé, nadar no oceano, velhos amigos que aparecem sem serem anunciados… Mas eu nunca fui muito dessas coisas. E, como vê, os amigos podem vir cá acima fazer uma visita. — O que é imensamente dispendioso. — Uma mulher vem visitar Yamagishi, o meu vizinho da ala contígua. Na segunda terça-feira de cada mês, quer chova quer faça sol. Depois apresento-lho. É um tipo e tanto. Criminoso de guerra classe A… mas só pronunciado, compreende, nunca condenado. — Qual é a atração? — perguntou Ellie. — Você não pensa que o mundo está prestes a terminar. Que faz aqui em cima? — Gosto da vista. E há algumas subtilezas jurídicas. Ela olhou-o, um pouco agastada. — Sabe, uma pessoa na minha situação — novas invenções, novas indústrias — está sempre muito à beirinha de infringir uma ou outra lei. Geralmente isso acontece porque as leis antigas não acertaram o passo com a nova tecnologia. Arriscamo-nos a perder uma quantidade do nosso tempo em litígios. É uma coisa que reduz a nossa eficiência. Ao passo que nada disto — fez um gesto largo, abarcando tanto o Castelo como a Terra — é pertença de nenhuma nação. Este Castelo pertence-me a mim, ao meu amigo Yamagishi e a alguns outros. Nunca poderia haver nada de ilegal em fornecer-me alimentos e o necessário para a satisfação de necessidades materiais. No entanto, e apenas por uma questão de segurança, estamos a trabalhar em sistemas ecológicos fechados. Não existe nenhum tratado de extradição entre este Castelo e qualquer das nações lá de baixo. Enfim, pesados os prós e os contras, é melhor para mim estar cá em cima… «Não quero que pense que fiz alguma coisa verdadeiramente ilegal. Mas estamos a fazer tantas coisas novas que é inteligente jogar pelo seguro. Por exemplo, há pessoas que acreditam realmente que eu sabotei a Máquina, quando na verdade eu gastei uma quantidade absurda do meu próprio dinheiro a tentar construí-la. E você sabe o que eles fizeram a Babilônia. Os investigadores do meu seguro pensam que devem ter sido as mesmas pessoas que atuaram tanto em Babilônia como em Terre Haute. Parece que tenho muitos inimigos. Não compreendo por quê. Acho que fiz muito bem às pessoas. De qualquer modo, globalmente, é melhor para mim estar cá em cima. «Mas era da Máquina que queria falar-lhe. Foi horrível, aquela catástrofe do tubo de érbio no Wyoming. Lamento sinceramente o que aconteceu ao Drumlin. Era um gajo teso. E deve ter sido um grande choque para você. Tem a certeza de que não quer uma bebida? Mas a ela bastava-lhe olhar para a Terra e escutar. — Se eu não estou desencorajado a respeito da Máquina — prosseguiu Hadden —, não percebo por que motivo você há-de estar. Provavelmente receia que nunca venha a haver uma máquina americana, preocupa-a que haja demasiada gente que queira que ela falhe. A presidente está preocupada com a mesma coisa. E aquelas fábricas que construímos não são linhas de montagem. Temos estado a fazer produtos por encomenda. Vai ser dispendioso substituir todas as partes danificadas. Mas você está principalmente a pensar que talvez tenha começado por ser tudo uma má idéia. Que talvez tenhamos sido idiotas por avançarmos tão depressa. Portanto, examinemos tudo demorada e cuidadosamente. Mesmo que você não esteja a pensar assim, a presidente está. Mas, se não o fizermos em breve, receio que nunca o façamos. E há ainda outra coisa: não creio que o convite fique em aberto para sempre. —:É curioso que tenha dito isso. Era precisamente do que Valerian, Drumlin e eu própria estávamos a falar antes do acidente… da sabotagem — corrigiu. — Queira continuar. — Sabe, os religiosos — a maior parte deles — pensam realmente que este planeta é uma experiência. É, nisso que as suas crenças se resumem. Um deus qualquer está sempre a consertar e a esquadrinhar, a envolver-se com mulheres de negociantes, a dar tábuas de leis em montanhas, a ordenar-nos que mutilemos os nossos filhos, a informar as pessoas das palavras que podem dizer e das que não podem dizer, a fazer com que as pessoas se sintam culpadas por se divertirem e coisas assim. Por que não deixam os deuses as coisas em paz? Toda esta intervenção denuncia incompetência. Se Deus não queria que a mulher de Lot olhasse para trás, por que motivo não a fez obediente para que ela fizesse o que o marido lhe dissesse? Se não tivesse feito Lot uma parva tão grande, talvez ela Lhe tivesse prestado mais atenção. Se Deus é onipotente e onisciente, por que não começou por fazer o universo de modo que ele saísse da maneira que Ele queria? Por que está constantemente a reparar e a protestar? Não, há uma coisa que a Bíblia torna evidente: o Deus bíblico é um construtor de má qualidade. Não presta na concepção e não presta na execução. Estaria desempregado se houvesse alguma concorrência. «É por isso que não acredito que sejamos uma experiência. Poderia haver uma quantidade de planetas experimentais no Universo, lugares onde deuses-aprendizes fossem pôr à prova as suas aptidões. Que pena Rankin e Joss não terem nascido num desses planetas! Mas neste planeta — apontou de novo para a janela — não há nenhuma micro-intervenção. Os deuses não passam por cá para consertar as coisas quando nós fazemos borrada. Olhe para a história humana e verá que é evidente que temos estado entregues a nós mesmos. — Até agora — disse ela. — Deus ex machina? É isso que pensa? Acha que os deuses tiveram finalmente pena de nós e nos mandaram a Máquina? — É mais Machina ex deo, ou lá como se diz em bom latim. Não, não penso que nós sejamos a experiência. Penso que somos o controle, o planeta pelo qual ninguém se interessou, o lugar onde ninguém interveio. Um mundo de calibração que se deteriorou. É isso que acontece se eles não intervêm. A Terra é uma lição objetiva para os deuses aprendizes. «Se vocês se esforçarem realmente», dizem-lhes, «farão qualquer coisa como a Terra.» Mas, claro, seria um desperdício deixar destruir um mundo perfeitamente bom. Por isso, nos dão uma espreitadela de vez em quando, pelo sim, pelo não. Talvez nessas alturas tragam consigo os deuses que se esforçaram. A última vez que deram uma vista de olhos andávamos nós a brincar nas savanas, a tentar correr mais depressa do que os antílopes. «Muito bem, está porreiro», disseram. «Estes tipos não nos vão causar problemas nenhuns. Dêem-lhes outra espreitadela daqui a mais dez milhões de anos. Mas, para jogarmos pelo seguro, vigiem-nos pelas radiofreqüências.» «Até que um dia soa um alarme. Uma mensagem da Terra. «O quê? Eles já têm televisão? Vejamos o que estão a tramar.» Estádio olímpico. Bandeiras nacionais. Ave de rapina. Adolph Hitler. Milhares de pessoas a ovacionar. «Ora esta!», exclamam. Conhecem os sinais de advertência. Rápidos como um raio, dizem-nos: Eh, vocês, acabem com isso. Têm aí um planeta perfeitamente bom. Desorganizado, mas operacional. Olhem, construam antes esta Máquina. Estão preocupados conosco. compreendem que estamos numa vertente a descer. Pensam que devemos ter pressa de ser consertados. E eu penso o mesmo. Temos de construir a Máquina. Ellie sabia o que Drumlin teria pensado de argumentos daquele gênero. Apesar de muito do que Hadden acabara de dizer coincidir com o seu próprio pensamento, estava farta daquelas especulações enganosas e convencidas quanto ao que os Veganianos tinham em mente. Queria que o projeto continuasse, que a Máquina fosse completada e ativada, que o novo estádio da história humana começasse. Ainda desconfiava das suas próprias motivações, ainda se mantinha prudente mesmo quando a mencionavam como possível membro da tripulação de uma Máquina completada. Por isso, a demora no reatamento da construção trabalhava a seu favor, dava-lhe tempo para deslindar os seus próprios problemas. — Jantaremos com Yamagishi. Gostará dele. Confesso-lhe, no entanto, que estamos um pouco preocupados a seu respeito. À noite mantém a pressão parcial do seu oxigênio muito baixa. — Que quer dizer? — Bem, quanto mais baixo o conteúdo de oxigênio no ar, mais tempo vivemos. Pelo menos é isso o que os médicos nos dizem. Por essa razão, temos todos de decidir qual será a quantidade de oxigênio nos nossos aposentos. Durante o dia não a podemos descer muito abaixo dos vinte por cento, pois, de contrário, ficamos grogues. Prejudica o funcionamento mental. Mas de noite, pelo menos estamos a dormir, podemos baixar a pressão parcial do oxigênio. Existe, no entanto, um perigo: o de a baixarmos demasiado. A de Yamagishi está reduzida a catorze por cento, nos tempos que correm, porque ele quer viver eternamente. Em conseqüência disso, não está lúcido antes da hora do almoço. — Eu tenho sido assim toda a minha vida, com vinte por cento de oxigênio — replicou ela, a rir. — Ele agora está a experimentar drogas nootrópicas para evitar o atordoamento. Você sabe, coisas como o Piracetam. Melhoram, sem dúvida nenhuma, a memória. Não sei se tornam uma pessoa efetivamente mais inteligente, mas é isso que eles dizem. Assim, o Yamagishi anda a tomar uma quantidade enorme de nootrópicos e a respirar oxigênio insuficiente de noite. — Por isso tem um comportamento de idiota? — Idiota? É difícil dizer. Não conheço muitos criminosos de guerra da classe A com noventa e dois anos. — É por essa razão que todas as experiências precisam de um controle — comentou ela, e ele sorriu. Mesmo com a sua avançada idade, Yamagishi apresentava o porte ereto que adquirira durante o seu longo período de serviço no Exército Imperial. Era um homem pequeno, completamente calvo, com um bigode branco que não dava nas vistas e uma expressão fixa e benigna no rosto. — Encontro-me aqui por causa dos quadris — explicou. — Estou informado acerca do cancro e do período de duração da vida, mas encontro-me aqui por causa dos quadris. Na minha idade, os ossos fraturam-se com facilidade. O barão Tsukuma morreu em conseqüência de ter caído do futon para o tatami[17 - Tapete japonês de palha de arroz coberto por uma esteira de junco, usado nos quartos japoneses. (N. da T.)]. Uma queda de meio metro. Meio metro. E os seus ossos fraturaram-se. Em g zero os quadris não se fraturam. Parecia uma idéia muito sensata. Tinham sido feitas algumas cedências gastronômicas, mas o jantar foi de surpreendente elegância. Criara-se uma pequena tecnologia especializada para jantares em ambientes com ausência de peso. Os utensílios de servir tinham tampas, os copos eram cobertos e tinham palhinhas. Alimentos como nozes ou flocos de cereais secos eram proibidos. Yamagishi aconselhou o caviar a Ellie. Era um dos poucos alimentos ocidentais, explicou-lhe, cujo preço por quilograma, na Terra, era superior ao do envio para o espaço. A coesão dos ovos individuais do caviar constituía um acaso afortunado. Tentou imaginar milhares de ovos separados em queda livre individual, a enevoar os corredores daquele lar e repouso orbital. De súbito lembrou-se de que a sua mãe também estava num lar de repouso, várias ordens de magnitude mais modesto do que aquele. Por sinal, orientando-se pelos Grandes Lagos, visíveis naquele momento do lado de fora da janela, conseguia localizar o lugar onde a mãe se encontrava. Podia dispor de dois dias para tagarelar em órbita terrestre com rapazes maus milhares de vezes milionários, mas não dispunha de um quarto de hora para fazer um telefonema à mãe? Prometeu a si mesma que lhe telefonaria assim que aterrasse em Cocoa Beach. Um comunicado oriundo da órbita terrestre, pensou, poderia parecer novidade excessiva para o lar de cidadãos idosos de Janesville, Wisconsin. Yamagishi interrompeu-lhe os pensamentos para a informar de que era o homem mais velho do espaço. Desde sempre. Até mesmo o ex-primeiro-ministro chinês era mais novo. Despiu o casaco, arregaçou a manga direita, fletiu o bíceps e pediu a Ellie que apalpasse o músculo. Momentos depois desfazia-se em pormenores animados e quantitativos das obras de caridade meritórias às quais dera grandes contribuições. Ela tentou conversar cortesmente. — Isto aqui em cima é muito plácido e sossegado. Deve estar a apreciar a sua estada aqui. Dirigira a observação delicada a Yamagishi, mas foi Hadden quem respondeu: — Não é inteiramente isento de acontecimentos. De vez em quando há uma crise e temos de agir rapidamente. — Explosão solar, muitíssimo má. Torna uma pessoa estéril — elucidou Yamagishi. — Sim, se há uma grande explosão solar monitorizada por telescópio, dispomos de cerca de três dias antes de as partículas carregadas atingirem o Castelo. Por isso, os residentes permanentes, como Yamagishi-san e eu, vão para o abrigo contra tempestades. Muito espartano, muito restrito. Mas tem um escudo anti-radiação suficiente para fazer a sua diferença. Claro que há sempre alguma radiação secundária. O problema é que todo o pessoal não permanente e todos os visitantes têm de partir nesse espaço de três dias. Esse gênero de emergência pode sobrecarregar a frota comercial. Às vezes temos de recorrer à NASA ou aos Soviéticos para recolherem essa gente. Nem imagina as pessoas que temos de mandar embora a correr em emergências de explosão solar! Mafiosos, diretores de serviços de informação, homens e mulheres bonitos… — Por que será que tenho a sensação de que o sexo ocupa um lugar cimeiro na lista de importações da Terra? — perguntou Ellie com certa relutância. — Oh, ocupa, ocupa! Há montes de razões para isso. A clientela, a localização… Mas a razão principal é a g zero. Com g zero podemos fazer coisas aos oitenta anos que nunca julgamos possíveis aos vinte. Devia gozar umas férias cá em cima… com o seu namorado. Pode considerar o convite definitivo. — Noventa — disse Yamagishi. — Perdão? — Podemos fazer aos noventa anos coisas que não sonhamos aos vinte. É isso o que Yamagishi-san está a dizer. É por isso que toda a gente quer vir cá para cima. Enquanto tomavam o café, Hadden voltou ao tópico da Máquina. — Yamagishi-san e eu somos sócios, juntamente com algumas outras pessoas. Ele é o presidente de administração honorário das Yamagishi Industries. Como sabe, trata-se do principal empreiteiro dos testes dos componentes da Máquina efetuados em Hokkaido. Agora imagine o nosso problema. Por exemplo: há três grandes cápsulas esféricas, umas dentro das outras. São feitas de uma liga de nióbio, têm padrões peculiares talhados nelas e destinam-se obviamente a girar a grande velocidade em direções ortogonais, no vácuo. Chamam-se benzels. Claro, você sabe tudo isso. Que acontece se fazemos um modelo em escala dos três benzels e lhes imprimimos uma rotação muito rápida? Que acontece? Todos os físicos entendidos pensam que não acontece nada. Mas, evidentemente, ninguém fez a experiência. Esta experiência precisa. Por isso, ninguém sabe de fato. Suponha que acontece alguma coisa quando toda a Máquina é ativada. Depende da velocidade da rotação? Depende da composição dos benzels? Do padrão dos entalhes? É uma questão de escala? Por isso temos estado a construir essas coisas e a testá-las — modelos em escala e cópias de tamanho natural. Queremos fazer girar a nossa versão dos benzels grandes, os que serão acoplados aos outros componentes das duas Máquinas. Suponhamos que não acontece nada então. Depois quereríamos acrescentar componentes adicionais, um por um. Continuaríamos a acoplá-los, um pequeno trabalho de integração de sistemas em cada passo, e depois talvez chegasse uma altura em que, ao acrescentarmos um componente, que não seria o último, a Máquina fizesse qualquer coisa que nos deixasse descalços. Estamos apenas a tentar imaginar como a Máquina funciona. Compreende aonde quero chegar? — Quer dizer que têm estado a montar secretamente uma cópia idêntica da Máquina no Japão? — Bem, não se trata exatamente de um segredo. Estamos a testar os componentes individuais. Ninguém disse que só os podemos testar um de cada vez. Por conseqüência, eis o que Yamagishi e eu propomos: mudamos o plano das experiências em Hokkaido. Fazemos agora sistemas de integração totais e, se não resultar nada, faremos depois os testes componente a componente. De qualquer modo, o dinheiro já foi todo distribuído. «Pensamos que serão necessários meses — talvez mesmo anos — para o esforço americano recuperar. E não achamos que os Russos, possam fazê-la mesmo nesse tempo. O Japão é a única possibilidade. Não precisamos de o anunciar imediatamente. Não temos de tomar já uma decisão quanto a ativar a Máquina. Estamos apenas a testar componentes. — Vocês dois podem tomar, sozinhos, essa decisão? — Oh, encontra-se perfeitamente dentro daquilo a que chamam as responsabilidades que nos foram atribuídas! Calculamos que podemos recuperar e voltar ao ponto em que a construção da Máquina de Wyoming estava em seis meses. Claro que teremos de ter muito mais cuidado no capítulo da sabotagem. Mas, se os componentes estão fixos, a Máquina também estará: é a modos que difícil chegar a Hokkaido. Depois, quando tudo estiver verificado e pronto, podemos perguntar ao Consórcio Mundial da Máquina se quer experimentá-la. Se a tripulação estiver disposta a isso, aposto que o Consórcio alinhará. Que lhe parece, Yamagishi-san? Yamagishi não ouvira a pergunta. Cantava baixinho, para consigo, Queda Livre, uma canção muito em voga, cheia de pormenores eloqüentes quanto a cair em tentação em órbita terrestre. Que não sabia a letra toda, explicou, quando a pergunta foi repetida. Imperturbável, Hadden continuou: — Alguns dos componentes terão sido submetidos a rotação, ou colocados, ou qualquer coisa. Mas em qualquer caso precisarão de passar nos testes prescritos. Não pensei que isso seria suficiente para a assustar e fazer desistir. Quero dizer, pessoalmente. — Pessoalmente? Que o leva a pensar que eu vou? Para começar, ninguém me convidou e, além disso, há uma quantidade de fatores novos. — É muito grande a probabilidade de a Comissão Selecionadora a convidar e a presidente concordará. Entusiasticamente. Então — acrescentou, a sorrir maliciosamente —, não quer passar a vida inteira na parvónia, pois não? Estava enevoado sobre a Escandinávia e o mar do Norte e o canal da Mancha apresentava-se coberto por uma teia arrendada, quase transparente, de nevoeiro. — Vai, sim. — Yamagishi estava de pé, de braços rigidamente esticados ao longo do corpo. Fez-lhe uma vênia profunda e acrescentou: — Falando em nome dos vinte e dois milhões de empregados das empresas que controlo, tive muito gosto em conhecê-la. Dormitou intermitentemente no cacifo para dormir que lhe destinaram. Estava folgadamente preso a duas paredes, para que, ao voltar-se em g zero, ela não fosse contra nenhum obstáculo. Acordou quando todos pareciam ainda dormir e caminhou, agarrando-se a uma sucessão de pegas, até chegar diante da grande janela. Estavam sobre o lado noturno. A Terra encontrava-se mergulhada em escuridão, embora desse a impressão de uma espécie de manta de retalhos salpicados de luz — valorosa tentativa dos seres humanos para compensarem a opacidade do planeta quando o seu hemisfério estava oculto do Sol. Vinte minutos depois, ao nascer do Sol, decidiu que, se a convidassem, responderia afirmativamente. Hadden aproximou-se por trás dela e assustou-a um nadinha. — Admito que parece formidável. Estou cá em cima há anos e continua a parecer-me formidável. Mas não a incomoda que haja uma nave espacial à sua volta? Olhe, imagine uma experiência que ainda ninguém teve. Veste um fato espacial, não há nada a prendê-la, nenhuma nave espacial a envolvê-la. Talvez o Sol esteja atrás de si e você se encontre rodeada de estrelas por todos os lados. Talvez a Terra esteja por baixo de si. Ou talvez qualquer outro planeta. Pessoalmente, tenho uma preferência por Saturno. Ali está você, a flutuar no espaço, como se fizesse realmente parte do cosmo. Hoje em dia, os fatos espaciais comportam consumíveis suficientes para durar horas. A nave espacial que a largou pode ter partido há muito tempo. Talvez tenha encontro marcado consigo dentro de uma hora. Talvez não. O melhor seria se a nave não voltasse. As suas últimas horas cercada por espaço, estrelas e mundos. Se tivesse uma doença incurável, ou quisesse apenas proporcionar a si mesma um derradeiro prazer verdadeiramente belo, como poderia alguma coisa ultrapassar isso? — Fala a sério? Quer comercializar esse… esquema? — Bem, é demasiado cedo para comercializar. Talvez não seja exatamente a maneira certa de tratar o assunto. Digamos apenas que estou a pensar num estudo de exeqüibilidade. Ellie resolveu não falar a Hadden da sua decisão e ele também não tocou no assunto. Mais tarde, quando o Narnia chegou ao ponto de encontro e iniciou a atracação ao Methuselah, Hadden chamou-a de parte. — Dissemos que Yamagishi é a pessoa mais idosa que se encontra cá em cima. Bem, se falarmos de permanentemente cá em cima — não me refiro a pessoal, astronautas e dançarinas —, eu sou a pessoa mais nova. Bem sei que tenho um interesse investido na resposta, mas existe a possibilidade clínica definitiva de a g zero me manter vivo durante séculos. Compreenda, estou empenhado numa experiência sobre a imortalidade. «Não abordo este assunto para me vangloriar. Estou a abordá-lo por uma razão prática. Se nós conseguimos imaginar maneiras de prolongar o período de duração da nossa vida, pense no que aquelas criaturas de Vega devem ter feito. Provavelmente são imortais, ou quase. Sou uma pessoa prática e tenho pensado muito na imortalidade. Talvez tenha pensado mais longa e mais seriamente nela do que qualquer outra pessoa. E posso dizer-lhe uma coisa certa a respeito de imortais: eles são muito cuidadosos. Não abandonam as coisas ao acaso. Investiram demasiado esforço para se tornarem imortais. Não sei que aspecto têm, não sei o que querem de si, mas, se alguma vez os vir, só tenho um conselho prático a dar-lhe: qualquer coisa que lhe pareça canja, garantida, será considerada por eles um risco inaceitável. Se tiver de fazer alguma negociação lá em cima, não se esqueça do que lhe estou a dizer. CAPÍTULO XVII O sonho das formigas A fala humana é como uma chaleira rachada na qual percutimos ritmos rudimentares, para ursos dançarem ao seu compasso, enquanto anelamos por fazer música que comova as estrelas.      GUSTAVE FLAUBERT. Madame Bovary (1857) Teologia popular… é uma incoerência maciça derivada a ignorância… Os deuses existem porque a própria natureza imprimiu na mente dos homens uma concepção deles.      CÍCERO. De Natura Deorum, 16 Ellie estava a acondicionar apontamentos, fitas magnéticas e uma fronde de palmeira, para embarque para o Japão, quando recebeu a notícia de que a mãe tivera uma trombose. Imediatamente a seguir, um correio do projeto entregou-lhe uma carta. Era de John Staughton e não continha preliminares de cortesia: «A tua mãe e eu falamos muitas vezes das tuas deficiências e das tuas fraquezas. Era sempre uma conversa difícil. Quando eu te defendia (e, embora possas não acreditar, isso acontecia com freqüência), ela dizia-me que eu era barro nas tuas mãos. Quando te criticava, dizia-me que me metesse na minha vida. Mas quero que saibas que a tua falta de disposição para a visitares nestes últimos anos, desde essa história de Vega, foi uma fonte de sofrimento constante para ela. Costumava dizer às suas amigas daquela horrível casa de saúde para a qual teimou em ir que a visitarias em breve. Disse-lhes isso durante anos. «Em breve.» Planejou como exibiria a sua famosa filha, por que ordem te apresentaria àquele bando decrépito. Provavelmente não gostarás de saber isto e eu digo-to com mágoa. Mas é para teu próprio bem. O teu comportamento foi mais doloroso para ela do que qualquer outra coisa que jamais lhe aconteceu, até mesmo que a morte do teu pai. Agora podes ser uma figurona importante, o teu holograma pode correr mundo, podes ser tu cá, tu lá com políticos, etc., mas como ser humano não aprendeste nada desde o liceu…» Com os olhos cheios de lágrimas, começou a amarrotar a carta e o sobrescrito, mas sentiu no seu interior um bocado de papel rígido, um holograma parcial feito de uma antiga fotografia bidimensional por uma técnica de extrapolação de computador. Dava uma leve, mas agradável, sensação de poder ver à volta de arestas e cantos. Era uma fotografia que nunca vira antes. A mãe, mulher jovem e encantadora, sorria-lhe da fotografia, com um braço naturalmente passado pelo ombro do pai de Ellie, que parecia ter a barba por fazer. Pareciam ambos radiosamente felizes. Com um ímpeto de angústia, remorso e fúria contra Staughton e um pouco de autocompaixão, Ellie enfrentou a evidente realidade de que nunca mais voltaria a ver qualquer das pessoas daquela fotografia. A mãe jazia imóvel na cama. A sua expressão era singularmente neutra, não registrava nem alegria nem mágoa, simplesmente… uma espécie de espera. O seu único movimento era um pestanejar ocasional. Não se percebia se ouvia ou compreendia o que Ellie dizia. Esta pensou em esquemas de comunicação. Não pôde evitá-lo, o pensamento surgiu-lhe sem que o solicitasse: um pestanejo para «sim» dois pestanejos para «não». Ou ligar um encefalógrafo com um tubo de raio catódico que a mãe pudesse ver e ensiná-la a modular as suas ondas beta. Mas aquela era a sua mãe, não Alpha Lyrae, e do que ela precisava era de ternura, não de algoritmos de decifração. Pegou-lhe na mão e falou durante horas. Falou, falou, acerca da mãe, do pai, da sua infância. Recordou o tempo em que era uma garotinha a tentar os primeiros passos entre os lençóis acabados de lavar e se sentia erguida no ar, levantada para o céu. Falou de John Staughton. Pediu desculpa de muitas coisas. Chorou um pouco. O cabelo da mãe estava despenteado e ela procurou uma escova e alindou-a um pouco. Observou o rosto enrugado e reconheceu o seu próprio rosto. Os olhos da mãe, afundados e úmidos, olhavam fixamente, apenas com um pestanejar ocasional para — parecia — muito longe. — Sei de onde vim — disse-lhe Ellie docemente. Quase imperceptivelmente, a mãe abanou a cabeça de um lado para o outro, como se lamentasse todos aqueles anos em que ela e a filha tinham estado afastadas. Ellie deu-lhe um apertozinho na mão e teve a impressão de sentir outro em resposta. A vida da mãe não estava em perigo, disseram-lhe. Se se verificasse alguma modificação no seu estado, telefonariam imediatamente para o seu escritório em Wyoming. Dentro de poucos dias poderiam mandá-la do hospital de novo para o lar, onde, garantiram-lhe, havia os meios adequados para a tratar. Staughton parecia acabrunhado, com uma intensidade de ternura pela mãe que ela nunca imaginara existisse nele. Telefonaria com freqüência, prometeu-lhe Ellie. O austero átrio de mármore ostentava, talvez incongruentemente, uma estátua verdadeira — não uma holografia — de uma mulher nua, no estilo de um Praxíteles. Subiram num elevador Otis-Hitachi, onde a segunda língua era o inglês, e não o braille, e ela viu-se introduzida numa sala imensa onde se encontravam pessoas inclinadas para processadores de palavras. Batia-se no teclado uma palavra em niragana, o alfabeto fonético japonês de cinqüenta e uma letras, e no écran aparecia o ideograma chinês correspondente em kanji. Havia centenas de milhares desses ideogramas, ou caracteres, armazenados nas memórias dos computadores, embora apenas três mil ou quatro mil fossem geralmente necessários para ler um jornal. Em virtude de muitos caracteres de significados completamente diferentes serem exprimidos pela mesma palavra falada, todas as traduções possíveis em kanji eram impressas, por ordem de probabilidade. O processador de palavras tinha uma sub-rotina contextual em que os caracteres candidatos também eram colocados em bicha, digamos, de acordo com o cálculo do computador do significado pretendido. Raramente se enganava. Numa linguagem para a qual, até recentemente, nunca houvera uma máquina de escrever, o processador de palavras estava a fazer uma revolução nas comunicações — uma revolução que não era inteiramente admirada pelos tradicionalistas. Na sala de conferências sentaram-se em cadeiras baixas — uma concessão evidente aos gostos ocidentais — à volta de uma mesa lacada baixa, e foi servido chá. No campo visual de Ellie, para lá da janela, ficava a cidade de Tóquio. Andava a passar muito tempo diante de janelas, pensou. O jornal era o Asashi Shimbun — Noticias do Sol Nascente —, e foi com interesse que ela verificou que um dos repórteres políticos era uma mulher, uma raridade pelos padrões dos media americanos e soviéticos. O Japão estava empenhado numa reavaliação nacional do papel das mulheres. Os privilégios tradicionais masculinos estavam a capitular lentamente, no que parecia um combate rua a rua, do qual não havia comunicados. Ainda na véspera, o presidente de uma firma chamada Nanoelectronics se lhe lamentara de que não havia na cidade de Tóquio uma rapariga que ainda soubesse colocar um obi[18 - Faixa tradicional usada pelas mulheres e crianças japonesas. (N. da T.)]. Como acontecera com os laços já feitos e prontos a usar, um simulacro facilmente ajustável tinha conquistado o mercado. As mulheres japonesas tinham coisas melhores que fazer do que passar todos os dias meia hora a envolver-se num obi e a pregueá-lo. A repórter vestia um austero saia-casaco de trabalho, com a bainha da saia a chegar-lhe às barrigas das pernas. A fim de garantir a segurança, não eram autorizadas visitas de profissionais da imprensa no estaleiro da Máquina, em Hokkaido. Em vez disso, quando membros da tripulação ou funcionários ligados ao projeto iam à ilha principal de Honshu, agendavam, por rotina, uma série de entrevistas com media noticiosos japoneses e estrangeiros. Como sempre, as perguntas eram unilineares. Os repórteres de todo o mundo abordavam o assunto da Máquina quase da mesma maneira, dando, evidentemente, algum desconto às idiossincrasias locais. Estava satisfeita com o fato de, após as «decepções» americana e soviética, estar a ser construída uma Máquina no Japão? Sentia-se isolada na ilha setentrional de Hokkaido? Preocupava-a o fato de os componentes da Máquina que estavam a ser utilizados em Hokkaido terem sido testados para além das estritas recomendações da Máquina? Antes de 1945, aquele bairro da cidade pertencera à Armada Imperial e, na realidade, imediatamente adjacente, ela via o telhado do Observatório Naval, cujas duas cúpulas prateadas abrigavam telescópios ainda utilizados para funções de acerto horário e calendariais. Brilhavam ao sol do meio-dia. Por que motivo faziam parte da Máquina um dodecaedro e as três cápsulas esféricas chamadas benzels? Sim, os repórteres compreendiam que ela não soubesse. Mas que pensava? Explicou que numa questão daquela natureza seria estouvado ter uma opinião na ausência de provas. Eles insistiram e ela defendeu as virtudes da tolerância pela ambigüidade. Se houvesse perigo genuíno, enviariam robots em lugar de pessoas, como um perito de inteligência artificial japonês recomendara? Ela levaria consigo alguns objetos pessoais? Alguns retratos de família? Microcomputadores? Uma faca do Exército suíço? Ellie reparou em duas figuras que emergiam de um alçapão no telhado do observatório vizinho. Visores obscureciam-lhes o rosto. Vestiam os fatos de proteção acolchoados, cinzento-azulados, do Japão medieval. Brandindo varas de madeira mais altas do que eles, inclinaram-se um diante do outro, pararam durante o tempo de um batimento cardíaco e depois desferiram e apararam golpes durante meia hora. As respostas de Ellie aos repórteres tornaram-se um pouco formais; estava fascinada pelo espetáculo que se desenrolava diante dos seus olhos. Mais ninguém parecia, no entanto, reparar. As varas deviam ser pesadas, pois o combate cerimonial era lento, como se eles fossem guerreiros do fundo do oceano. Conhecera o Dr. Lunacharsky e a Dra. Sukhavati muitos anos antes da recepção da Mensagem? E quanto ao Dr. Eda? E Mr. Xi? Que pensava deles, das suas realizações? Como se estavam os cinco a entender? Sinceramente, sentia-se maravilhada por fazer parte de um grupo tão seleto. Quais eram as suas impressões quanto à qualidade dos componentes japoneses? Que podia dizer a respeito do encontro dos Cinco com o imperador Akihito? As suas conversas com dirigentes xintoístas e budistas faziam parte de um esforço geral do Projeto da Máquina para tomar conhecimento dos pontos de vista das figuras religiosas mundiais antes de a Máquina ser ativada, ou tratara-se apenas de um gesto de cortesia para com o Japão como país anfitrião? Pensava que o engenho podia ser um Cavalo de Tróia ou uma Máquina do Fim do Mundo? Nas suas respostas, Ellie tentou ser cortês, sucinta e não suscitar polêmicas. O funcionário de relações públicas do Projeto da Máquina que a acompanhara estava visivelmente satisfeito. Bruscamente, a entrevista terminou. Desejavam-lhe, e aos seus colegas, o maior êxito, disse o chefe da redação. Tinham toda a esperança de voltar a entrevistá-la quando regressasse. Esperavam que depois visitasse freqüentemente o Japão. Os seus anfitriões sorriam e inclinavam-se. Os guerreiros de fatos acolchoados tinham regressado ao interior do edifício pelo alçapão do telhado. Ellie viu os membros da sua segurança, de olhos atentos, do lado de fora da porta agora aberta da sala de conferências. Enquanto saíam, interrogou a repórter a respeito das aparições do Japão medieval. — Ah, sim! — respondeu a mulher. — São astrônomos da Guarda Costeira. Praticam kendo na hora do almoço, todos os dias. Podemos acertar o relógio por eles. Xi nascera na Longa Marcha e, quando jovem, lutara contra o Kuomitang, durante a Revolução. Servira como oficial dos serviços de informação na Coréia e eventualmente ascendera a uma posição de autoridade na tecnologia estratégica chinesa. Mas na Revolução Cultural tinha sido publicamente humilhado e condenado a exílio interno, embora mais tarde tivesse sido reabilitado com todas as honras. Um dos crimes de Xi aos olhos da Revolução Cultural fora o de admirar algumas das antigas virtudes confucianas, e especialmente uma passagem da Grande Sabedoria que durante séculos todos os chineses, mesmo aqueles com uma instrução rudimentar, tinham sabido de cor. Fora nessa passagem, dissera Sun Yat-sen, que se baseara o seu próprio movimento revolucionário nacionalista, no início do século XX: Os antigos que desejaram ilustrar virtude preclara através do reino começavam por organizar bem as suas próprias propriedades. Desejando organizar bem as suas próprias propriedades, começavam por ordenar as suas famílias. Desejando ordenar as suas famílias, começavam por cultivar a sua pessoa. Desejando cultivar a sua pessoa, começavam por corrigir o coração. Desejando corrigir o coração, começavam por procurar ser sinceros nos seus pensamentos. Desejando ser sinceros nos seus pensamentos, começavam por alargar ao máximo o seu conhecimento. Tal alargamento do seu conhecimento residia na investigação das coisas. Assim, acreditava Xi, a busca do conhecimento era de importância fulcral para o bem-estar da China. Mas os Guardas Vermelhos tinham pensado de outro modo. Durante a Revolução Cultural, Xi fora colocado como trabalhador numa empobrecida herdade coletiva na província de Ningxia, perto da Grande Muralha, região com uma rica tradição muçulmana, onde, enquanto lavrava um campo pouco prometedor, encontrou um capacete de bronze, complicadamente ornamentado, da dinastia de Han. Quando reintegrado na liderança, desviara a sua atenção das armas estratégicas para a arqueologia. A Revolução Cultural tentara cortar uma tradição cultural chinesa contínua de cinco mil anos. A réplica de Xi foi ajudar a construir pontes para o passado da nação. Dedicou cada vez mais a sua atenção à escavação da cidade funerária subterrânea de Xian. Tinha sido lá que se fizera a grande descoberta do exército de terracota do imperador ao qual a própria China devia o nome. O seu nome oficial era Qin Shi Huangdi, mas, através dos caprichos da transliteração, acabara por se tornar largamente conhecido no Ocidente por Chin. No século III a.C., Qin unificou o país, construiu a Grande Muralha e, compassivamente, decretou que, aquando da sua morte, modelos de terracota em tamanho natural substituíssem os membros da sua corte — soldados, criados e nobres — que, de acordo com a tradição anterior, teriam de ser sepultados vivos com o seu corpo. O exército de terracota era composto por sete mil e quinhentos soldados, aproximadamente uma divisão. Cada um deles tinha feições faciais distintas. Via-se que estavam representadas pessoas de toda a China. O imperador unificara numa nação muitas províncias separadas e guerreando-se. Uma sepultura próxima continha o corpo quase perfeitamente preservado da marquesa de Tai, uma funcionária de categoria inferior da corte do imperador. A tecnologia da conservação dos corpos — via-se claramente a expressão severa do rosto da marquesa, porventura refinada por décadas passadas a admoestar os criados — era imensamente superior à do antigo Egito. Qin simplificara a escrita, codificara as leis, construíra estradas, completara a Grande Muralha e unificara o país. Também confiscara armas. Embora fosse acusado de chacinar eruditos que criticavam a sua política e de queimar livros porque algum do conhecimento era desestabilizador, ele assegurava que eliminara a corrupção endêmica e instituíra a paz e a ordem. Xi recordou a Revolução Cultural. Imaginou conciliar essas tendências em conflito no coração de uma única pessoa. A arrogância de Qin atingira proporções espantosas — para castigar uma montanha que o ofendera, mandara despi-la de vegetação e pintá-la de vermelho, a cor usada por criminosos condenados. Qin era grande, mas também era louco. Poderia alguém unificar um conjunto de nações diversas e litigiosas sem ser um pouco louco? Era preciso ser mesmo maluco para o tentar, sequer, dissera Xi, risonho, a Ellie. Com uma fascinação crescente, Xi organizou escavações maciças em Xian. Pouco a pouco convenceu-se de que o próprio Qin ali jazia igualmente à espera, perfeitamente conservado, nalgum grande túmulo próximo do exército de terracota exumado. Nas proximidades, segundo antigos registros, estava também enterrada, debaixo de um grande monte, uma maqueta pormenorizada da nação chinesa no ano de 210 a.C., com todos os templos e pagodes meticulosamente representados. Os rios, dizia-se, eram feitos de mercúrio, com a barca miniatural do imperador a navegar perpetuamente no seu domínio subterrâneo. Quando se descobriu que o solo de Xian estava contaminado de mercúrio, a excitação de Xi aumentou. Xi desenterrara um relato contemporâneo que descrevia uma grande cúpula que o imperador encomendara para cobrir aquele reino em miniatura, chamado como o verdadeiro Reino Celeste. Como o chinês escrito praticamente não mudara em dois mil e duzentos anos, ele conseguira ler pessoalmente o relato, sem a intervenção de um perito em lingüística. Um cronista do tempo de Qin falara diretamente a Xi. Eram muitas as noites em que este adormecia a tentar visionar a grande Via Láctea que dividia a abóbada do céu no túmulo coberto por uma cúpula do grande imperador, e a noite incendiada de cometas que tinham aparecido aquando do seu passamento, para honrar a sua memória. A procura do túmulo de Qin e da sua maquete do universo tinha ocupado Xi na última década. Ainda não os encontrara, mas a sua busca prendera a imaginação da China. Dizia-se a seu respeito: «Há mil milhões de pessoas na China, mas há só um Xi.» Numa nação que ia afrouxando lentamente as repressões impostas ao individualismo, considerava-se que ele exercia uma influência construtiva. Qin, era evidente, vivera obcecado pela imortalidade. O homem que dera o seu nome à nação mais populosa da Terra, o homem que construíra a que fora então a maior estrutura do planeta, receava, podia-se vaticinar com segurança, vir a ser esquecido. Por isso, mandou erigir mais estruturas monumentais; preservou, ou reproduziu para os séculos vindouros, os corpos e os rostos dos seus cortesãos; construiu o seu próprio e ainda esquivo túmulo e a maqueta do mundo, e enviou repetidas expedições ao mar Oriental em busca do elixir da vida. Queixava-se amargamente da despesa quando dava início a cada nova viagem. Numa dessas missões participaram dezenas de juncos capazes de navegar no oceano e uma tripulação de três mil jovens, homens e mulheres. Nunca voltaram e o seu destino é desconhecido. A água da imortalidade era inalcançável. Exatamente cinqüenta anos depois, a cultura aquática do arroz e a metalurgia do ferro apareceram subitamente no Japão, progressos que modificaram profundamente a economia japonesa e criaram uma classe de aristocratas guerreiros. Xi alegava que o nome nipônico escolhido para o Japão refletia claramente a origem chinesa da cultura japonesa: a Terra do Sol Nascente. Onde teria de se estar, perguntava Xi, para o Sol nascer sobre o Japão? Conseqüentemente, o próprio nome do jornal diário que Ellie acabava de visitar era, sugeria Xi, um lembrete da vida e do tempo do imperador Qin. Ellie pensou que, por contraste, Qin transformava Alexandre o Grande num fanfarrão de pátio de recreio escolar. Bem, quase. Se Qin vivera obcecado pela imortalidade, Xi vivia obcecado por Qin. Ellie falou-lhe da sua visita a Sol Hadden em órbita terrestre e concordaram que, se o imperador Qin estivesse vivo nos últimos anos do século XX, seria em órbita terrestre que se encontraria. Ela apresentou Xi a Hadden por videofone e depois deixou-os falar a sós. O excelente inglês de Xi fora apurado durante a sua recente participação na transferência da colônia da coroa britânica de Hong-Kong para a República Popular da China. Ainda estavam a falar quando Methuselah se pôs, e tiveram de continuar através da rede de satélites de comunicações em órbita geossíncrona. Deviam ter-se entendido bem. Pouco depois, Hadden pediu que a ativação da Máquina fosse sincronizada de modo que ele estivesse por cima nesse momento. Queria Hokkaido na mira do seu telescópio, disse, quando a ocasião chegasse. — Os budistas acreditam ou não em Deus? — perguntou Ellie quando iam a caminho para jantar com o abade. — A posição deles parece ser — respondeu Valerian secamente — que o seu Deus é tão grande que nem sequer precisa de existir. Enquanto atravessavam velozmente a região, falaram a respeito de Utsumi, o abade do mosteiro budista zen mais famoso do Japão. Alguns anos atrás, em cerimônias comemorativas do 50º aniversário da destruição de Hiroxima, Utsumi proferira um discurso que atraíra as atenções mundiais. Estava bem relacionado na vida política japonesa e agia como uma espécie de conselheiro espiritual do partido político dirigente, embora passasse a maior parte do seu tempo em atividades monásticas e religiosas. — O pai dele também foi abade de um mosteiro budista — lembrou Sukhavati. Ellie arqueou as sobrancelhas. — Não fique tão surpreendida. O casamento era-lhes permitido, como ao clero ortodoxo russo. Não é verdade, Vaygay? — Isso foi antes do meu tempo — respondeu ele, um pouco distraído. O restaurante erguia-se num bosque de bambus e chamava-se Ungetsu: a Lua Enevoada — e, efetivamente, a Lua estava enevoada no céu do princípio da noite. Os seus anfitriões japoneses tinham tratado o necessário para que não houvesse outros comensais. Ellie e os companheiros descalçaram os sapatos e, em palmilhas de meias, entraram numa pequena sala de jantar de onde se desfrutava uma paisagem de troncos de bambu. O abade tinha a cabeça rapada e envergava uma vestimenta preta e prateada. Saudou-os num inglês coloquial perfeito, e o seu chinês, segundo Xi disse mais tarde a Ellie, também era aceitável. O ambiente era repousante, a conversa descontraída. Cada prato constituía uma pequena obra de arte, uma jóia comestível. Ela compreendeu de que maneira a nouvelle cuisine tinha as suas origens na tradição culinária japonesa. Se, em vez disso, as iguarias fossem trazidas apenas para serem admiradas e nunca para serem comidas, teria ficado igualmente satisfeita. Ver e comer, simultaneamente, era um antegosto do Paraíso. Ellie estava sentada defronte do abade e ao lado de Lunacharsky. Outros fizeram perguntas acerca da espécie — ou, pelo menos, do reino — deste ou daquele acepipe. Entre o sushi e as nozes de gingkon, a conversa desviou-se, por assim dizer, para a missão. — Mas por que comunicamos? — perguntou o abade. — Para trocar informação — respondeu Lunacharsky, aparentemente a prestar toda a atenção aos seus recalcitrantes pauzinhos. — Mas por que desejamos trocar informação? — Porque nos alimentamos de informação. A informação é necessária à nossa sobrevivência. Sem informação morremos. Lunacharsky estava atento a uma noz de gingkon que escorregava dos pauzinhos todas as vezes que tentava levá-la à boca. Baixou a cabeça para se encontrar com os pauzinhos a meio caminho. — Acredito — continuou o abade — que comunicamos levados pelo amor ou pela compaixão. — Pegou com os dedos numa das suas nozes de gingkon e meteu-a naturalmente na boca. — Pensa então — perguntou Ellie — que a Máquina é um instrumento de compaixão? Pensa que não existe risco nenhum? — Posso comunicar com uma flor — prosseguiu ele, como se lhe respondesse. — Posso falar com uma pedra. Não teríeis dificuldade nenhuma em compreender os seres — é esta a palavra apropriada? — de qualquer outro mundo. — Sou perfeitamente capaz de acreditar que a pedra comunique consigo — redargüiu Lunacharsky, a mastigar a noz, depois de seguir o exemplo do abade. — Mas admira-me que possa comunicar com a pedra. Como nos convenceria de que é capaz de comunicar com uma pedra? O mundo está cheio de erro. Como podemos saber que não está a enganar-se a si mesmo? — Ah; ceticismo científico! — O rosto do abade iluminou-se num sorriso que Ellie achou absolutamente cativante; era inocente, quase infantil. — Para comunicar com uma pedra tem de se tornar muito menos… preocupado. Não deve pensar tanto, falar tanto. Quando digo que comunico com uma pedra, não estou a falar de palavras. Os cristãos dizem: «Ao princípio era o Verbo.» Mas eu estou a falar de uma comunicação muito mais anterior, muito mais fundamental do que essa. — É só o Evangelho de S. João que fala do Verbo — observou Ellie… com certo pedantismo, pensou, assim que as palavras lhe saíram da boca. — Os evangelhos sinópticos anteriores não dizem nada a esse respeito. Trata-se, na realidade, de um acréscimo oriundo da filosofia grega. A que gênero de comunicação pré-verbal se refere? — A sua pergunta é feita de palavras. Pede-me que utilize palavras para descrever o que não tem nada a ver com palavras. Deixe-me ver… Há uma estória japonesa chamada O Sonho das Formigas. Passa-se no Reino das Formigas. É uma estória comprida e não lha vou contar agora. Mas o que pretende dizer é o seguinte: para compreender a linguagem das formigas, uma pessoa tem de se tornar numa formiga. — Linguagem das formigas é, na realidade, uma linguagem química — disse Lunacharsky, a olhar vivamente para o abade. — Elas depositam vestígios moleculares específicos para indicar o caminho que tomaram para encontrar comida. Para compreender a linguagem das formigas preciso de um cromatógrafo de gases ou de um espectômetro de massa. Não preciso de me tornar uma formiga. — Talvez essa seja a única maneira que conheceis de vos tornardes uma formiga — comentou o abade, sem olhar para ninguém em particular. — Dizei-me, porque estudais os sinais deixados pelas formigas? — Bem — respondeu Ellie —, creio que um entomólogo diria que é para compreender as formigas e a sociedade das formigas. Os cientistas sentem prazer em compreender. — Essa é apenas outra maneira de dizer que eles amam as formigas. Ellie reprimiu um pequeno calafrio. — Sim, mas os que financiam os entomólogos dizem uma coisa diferente. Dizem que é para controlar o comportamento das formigas, para as fazer sair de uma casa que infestaram, por exemplo, ou para compreender a biologia do solo para a agricultura. Poderia fornecer uma alternativa aos pesticidas. Suponho que se pode dizer que há nisso algum amor pelas formigas — conjeturou Ellie. — Mas é também no nosso interesse próprio — interveio Lunacharsky. — Os pesticidas são igualmente venenosos para nós. — Por que estão a falar de pesticidas no meio de um jantar como este? — disparou Sukhavati, do outro lado da mesa. — Sonharemos o sonho das formigas noutra ocasião — disse o abade docemente a Ellie, e repetiu aquele sorriso perfeito, imperturbado. Calçados de novo com a ajuda de calçadeiras com um metro de comprimento, dirigiram-se para a sua pequena frota de automóveis, enquanto as criadas que tinham servido o jantar e a proprietária sorriam e se inclinavam cerimoniosamente. Ellie e Xi observaram o abade a entrar para uma limusine com alguns dos seus anfitriões japoneses. — Perguntei-lhe se, visto poder falar com uma pedra, podia comunicar com os mortos — disse Xi. — E que respondeu ele? — Disse que com os mortos era fácil. As suas dificuldades eram com os vivos. CAPÍTULO XVIII Superunificação Um mar alteroso! Estendida por cima de Sado, A Via Láctea.      Matsuo Basho — Poema Talvez tivessem escolhido Hokkaido por causa da sua fama de divergência. O clima exigia técnicas de construção que eram extremamente inconvencionais pelos padrões japoneses e a ilha era também a pátria dos Ainos, o peludo povo aborígine ainda desprezado por muitos japoneses. Os Invernos eram tão rigorosos como os de Minesota ou de Wyoming. Hokkaido apresentava certas dificuldades logísticas, mas encontrava-se, por assim dizer, fora do caminho no caso de uma catástrofe, visto estar fisicamente separada das outras ilhas japonesas. No entanto, não estava de modo nenhum isolada, agora que ficara concluído o túnel de cinqüenta e um quilômetros que a ligava a Honshu — o qual era o túnel submarino mais comprido do mundo. Hokkaido parecera suficientemente segura para o teste de componentes individuais, mas fora manifestada preocupação quanto à montagem propriamente dita da Máquina na ilha. Aquela era, como as montanhas que cercavam as instalações testemunhavam eloqüentemente, uma região que ia emergindo de vulcanismo recente. Havia uma montanha que crescia à média de um metro por dia. Até os Soviéticos — as ilhas Sacalinas ficavam apenas a quarenta e três quilômetros de distância, do outro lado de Soya, ou estreito de La Pérouse — tinham manifestado alguns receios a esse respeito. Mas perdido por cem, perdido por mil. Por tudo quanto sabiam, até uma Máquina construída do lado mais distante da Lua poderia fazer a Terra ir pelos ares quando ativada. A decisão de construir a Máquina era o fato-chave na avaliação dos perigos; onde a coisa seria construída era uma consideração absolutamente secundária. Em princípios de Junho, a Máquina estava mais uma vez a tomar forma. Na América era ainda motivo de controvérsia política e sectária; e, aparentemente, havia problemas técnicos graves com a Máquina soviética. Mas, aí — numas instalações muito mais modestas do que as de Wyoming —, os tubos de érbio tinham sido montados e o dodecaedro completado, embora não tivesse sido feita nenhuma comunicação pública a esse respeito. Os antigos pitagóricos, que tinham sido quem primeiro descobrira o dodecaedro, haviam decidido ser a sua própria existência um segredo, sendo rigorosas as penalidades aplicadas a quem o desvendasse. Por isso, talvez fosse lógico que este dodecaedro do tamanho de uma casa, a metade do mundo de distância e dois mil e seiscentos anos depois, fosse conhecido apenas por poucos. O diretor do projeto japonês decretara alguns dias de repouso para toda a gente. A cidade mais próxima de tamanho razoável era Obihiro, um bonito lugar na confluência dos rios Yubetsu e Tokachi. Alguns foram esquiar em faixas de neve não derretida do monte Asahi; outros represaram regatos termais com uma parede de rocha improvisada, para se aquecerem com a decomposição de elementos radiativos engendrados pela explosão de alguma supernova verificada milhares de milhões de anos antes. Um pequeno número de elementos do Projeto foi às corridas de Bamba, nas quais possantes cavalos de tiro puxavam pesados trenós lastrados sobre faixas paralelas de terra de cultivo. Mas, para uma celebração a sério, os Cinco foram de helicóptero a Sapporo, a maior cidade de Hokkaido, situada a menos de duzentos quilômetros de distância. Por um acaso auspicioso, chegaram a tempo de assistir ao Festival de Tanabata. O risco de segurança era considerado pequeno, pois o essencial para o êxito do projeto era a própria Máquina, muito mais do que aquelas cinco pessoas. Não tinham sido submetidas a nenhum treino especial, além do estudo minucioso da Mensagem, da Máquina e dos instrumentos miniaturizados que levariam com elas. Num mundo racional seriam fáceis de substituir, pensava Ellie, embora os impedimentos políticos para a seleção de cinco seres humanos aceitáveis por todos os membros do Consórcio Mundial da Máquina tivessem sido consideráveis. Xi e Vaygay tinham, disseram, «assuntos inacabados» a debater, os quais só podiam ser acabados com a ajuda de saquê. Por isso, ela, Devi Sukhavati e Abonneba Eda deram consigo, guiados pelos seus anfitriões japoneses, a percorrer uma das ruas transversais da Alameda Odori, passando por esmerados arranjos de serpentinas e lanternas, quadros de folhas, tartarugas e pavões e engraçadas caricaturas representando um jovem e uma jovem em trajos medievais. Entre dois edifícios estava esticado um grande bocado de lona de vela, na qual tinha sido pintado um pavão emproado. Ellie olhou para Eda, com a sua larga vestimenta de linho bordado e o seu barrete alto e rígido, e para Sukhavati, com outro espantoso sari de seda, e sentiu-se encantada na sua companhia. Até àquele momento, a Máquina japonesa passara todos os testes prescritos e tinha-se chegado a consenso quanto a uma tripulação que não era meramente — ainda que imperfeitamente — representativa da população do planeta, mas que incluía indivíduos genuínos não moldados pelos manda-chuvas oficiais de cinco nações. Cada um deles era de certo modo um rebelde. Eda, por exemplo. Ali estava ele, o grande físico, o homem que descobrira aquilo a que se chamava superunificação — uma teoria superior que incluía como casos especiais física que percorria toda a escala, desde a gravitação aos quarks. Era um cometimento comparável aos de Isaac Newton ou Albert Einstein, e Eda estava a ser comparado a ambos. Nascera muçulmano, na Nigéria, o que por si só não era invulgar, mas era aderente de uma facção islâmica não ortodoxa chamada a Ahamadiyah, que incluía os sufis. Os sufis, explicara depois da noite passada com o abade Utsumi, eram para o islamismo o. que zen era para o budismo. Ahmadiyah proclamava «uma idade da caneta, e não da espada». Apesar do seu comportamento sereno; até mesmo humilde, Eda era um adversário veemente do conceito mais muçulmano da gihad, guerra santa, e apelava, ao invés, para uma permuta livre de idéias mais vigorosa. Nesse aspecto constituía um embaraço para muito do Islã conservador e houvera oposição à sua participação na tripulação da Máquina da parte de algumas nações islâmicas. Estas tão-pouco estavam sós. Um laureado negro com o Prêmio Nobel — considerado ocasionalmente a pessoa mais inteligente da Terra era de mais para alguns que tinham mascarado o seu racismo como uma concessão às novas civilidades sociais. Quando, quatro anos antes, Eda visitara Tyrone Free na prisão, verificara-se uma acentuada exaltação do orgulho entre os Negros americanos e surgira um novo paradigma para os jovens. Eda trouxe à tona o pior que há nos racistas e o melhor que existe em todos os outros. — O tempo necessário para trabalhar em física é um luxo — disse a Ellie. — Há muita gente que poderia fazer o mesmo se tivesse a mesma oportunidade. Mas, quando se têm de correr as ruas em busca de comida, não se dispõe de tempo suficiente para a física. É minha obrigação melhorar as condições de vida dos jovens cientistas do meu país. À medida que, lentamente, se fora tornando um herói nacional na Nigéria, fora falando cada vez mais em corrupção, na idéia «justa» de se ter direito a certos privilégios, na importância da honestidade na ciência e em tudo o mais, em como a Nigéria poderia ser uma grande nação. Tinha uma população igual à que os Estados Unidos haviam tido na década de 1920, dizia. Era rica em recursos naturais e as suas muitas culturas constituíam uma força. Se a Nigéria conseguisse superar os seus problemas, argumentava, seria um farol para o resto do mundo. Em todas as outras coisas procurava o sossego e o isolamento, mas nestas questões manifestava-se. Muitos nigerianos, homens e mulheres — muçulmanos, cristãos e animistas, os jovens, mas não somente eles — tomavam essa visão a sério. Das muitas características notáveis de Eda, talvez a mais admirável fosse a sua modéstia. Raramente expendia opiniões. As suas respostas à maioria das perguntas diretas eram lacônicas. Só nos seus escritos — ou na linguagem falada depois de as pessoas o conhecerem bem — era possível vislumbrar a sua profundidade. No meio de toda a especulação a respeito da Mensagem e da Máquina e, do que aconteceria após a sua ativação, Eda contribuíra apenas com um comentário: há uma estória segundo a qual em Moçambique os macacos não falam porque sabem que, se proferirem uma só palavra, aparece um homem que os põe a trabalhar. Numa tripulação tão loquaz era estranho haver alguém tão taciturno como Eda. Como muitos outros, Ellie prestava atenção especial até mesmo às suas observações mais casuais. Ele descrevia como «erros idiotas» a sua primeira, e apenas parcialmente bem sucedida, versão da superunificação. O homem estava na casa dos trinta anos e era, Ellie e Devi concordavam a esse respeito, devastadoramente atraente. Ellie também sabia que ele era casado, e feliz, apenas com uma mulher, que, naquele momento, se encontrava com os filhos de ambos em Lagos. Um estrado de renovos de bambu que tinham sido plantados para ocasiões semelhantes estava adornado, engalanado, na verdade sobrecarregado com milhares de tiras de papel colorido. Homens e mulheres, especialmente jovens, aumentavam a estranha folhagem. O Festival de Tanabata é único no Japão pela sua celebração do amor. Havia representações da estória central em tabuletas de painéis múltiplos e numa performance num improvisado palco ao ar livre: duas estrelas estavam apaixonadas, mas separadas pela Via Láctea. Só uma vez por ano, no sétimo dia do sétimo mês do calendário lunar, os amantes se conseguiam encontrar — desde que não chovesse. Ellie olhou para cima, para o azul-cristalIno daquele céu alpino, e desejou felicidades aos apaixonados. O jovem astro masculino, dizia a lenda, era uma espécie de cozerboy japonês e representado pela estrela anã A7 Altair. O feminino era uma tecelã e representado por Vega. Pareceu singular a Ellie que Vega fosse personagem principal de um festival japonês poucos meses antes da ativação da Máquina. Mas, se estudarmos culturas suficientes, provavelmente encontraremos lendas interessantes acerca de todas as brilhantes estrelas do céu. A lenda era de origem chinesa e Xi aludira-lhe, quando ela o ouvira anos atrás, no primeiro encontro do Consórcio Mundial da Mensagem, em Paris. Na maioria das grandes cidades, o Festival de Tanabata estava em declínio. Os casamentos combinados tinham deixado de constituir a norma e a angústia dos amantes separados já não tocava uma corda tão sensível como noutros tempos. Mas, nalguns lugares — Sapporo, Sendai e poucos outros —, o Festival tornava-se mais popular de ano para ano. Em Sapporo revestia-se de especial pungência devido à indignação ainda muito disseminada contra os casamentos nipônico-ainenses. Havia na ilha toda uma indústria doméstica de detetives que, mediante o pagamento de certo preço, investigavam os parentes e antepassados de possíveis cônjuges para os filhos de quem os incumbia de tal missão. A ancestralidade aino ainda era considerada fundamento para rejeição sumária. Devi, recordando o jovem marido de tantos anos antes, mostrava-se particularmente mordaz. Sem dúvida, Eda ouvira uma ou duas histórias acerca do mesmo assunto, mas não se pronunciava. O Festival de Tanabata da cidade de Sendai, na ilha de Honshu, era naquele momento um dos programas principais da Televisão Japonesa para pessoas que raramente podiam agora ver as verdadeiras Altair ou Vega. Ellie perguntou a si mesma se os Veganianos continuariam a transmitir eternamente a Mensagem para a Terra. Em parte devido ao fato de a Máquina estar a ser concluída no Japão, recebeu atenção considerável no comentário televisivo que acompanhava o Festival de Tanabata daquele ano. Mas os Cinco, como por vezes agora os tratavam, não tinham sido convidados para aparecer na Televisão Japonesa e a sua presença ali em Sapporo, para assistirem ao Festival, não era do conhecimento geral. Apesar disso, Eda, Sukhavati e ela foram prontamente reconhecidos e regressaram à Alameda Obori acompanhados por aplausos corteses e dispersos de transeuntes. Muitos também se inclinavam numa vênia. Um alto-falante, no exterior de uma loja de música, transmitia ruidosamente um número de rock-and-roll que Ellie identificou: tratava-se de I Wanna Ricochet Off You, pelo grupo musical negro Ruído Branco. A apanhar o sol da tarde via-se um cão velho, de olhos remelosos, que abanou levemente a cauda quando ela se aproximou. Os comentadores japoneses falavam de Machindo, o Caminho da Máquina — a crescente perspectiva comum da Terra como um planeta e de todos os humanos compartilhando um direito igual no seu futuro. Algo parecido fora proclamado nalgumas religiões, mas de modo nenhum em todas. Praticantes desses credos ressentiam-se com a introspecção que estava a ser atribuída a uma Máquina alienígena. Se a aceitação de uma nova introspecção do nosso lugar no universo representa uma conversão religiosa, pensava Ellie, então a Terra estava a ser varrida por uma revolução teológica. Até os quiliastas americanos e europeus tinham sido influenciados pelo Machindo. Mas, se a Máquina não funcionasse e a Mensagem parasse, quanto tempo, perguntava-se, duraria a introspecção? Mesmo que tivéssemos cometido algum erro de interpretação ou construção, considerou, mesmo que nunca viéssemos a compreender mais nada a respeito dos Veganianos, a Mensagem demonstrava, sem qualquer sombra de dúvida, que havia outros seres no universo e que eles eram muito mais avançados do que nós. Isso, parecia-lhe, ajudaria a manter o planeta unificado durante uns tempos. Perguntou a Eda se alguma vez tivera uma experiência religiosa transformadora. — Tive — respondeu ele. — Quando? — Às vezes era preciso instigá-lo a falar. — Quando travei conhecimento com Euclides. E também quando compreendi pela primeira vez a gravitação newtoniana. E as equações de Maxwell e a relatividade geral. E durante o meu trabalho sobre a superunificação. Tive a sorte de ter muitas experiências religiosas. — Não — protestou ela. — Sabe a que me refiro. Independentemente da ciência. — Nunca — respondeu de imediato. — Nunca independentemente da ciência. Falou-lhe um pouco da religião em que nascera. Não se considerava preso por todos os seus dogmas, disse, mas sentia-se bem nela. Pensava que poderia fazer muito bem. Era uma seita relativamente nova — contemporânea dos Cientistas Cristãos ou das Testemunhas de Jeová —, fundada por Mirza Ghulam Ahmad, no Punjabe. Aparentemente, Devi sabia alguma coisa acerca de Ahmadiyah como seita proselitizadora. Fora particularmente bem sucedida na África Ocidental. As origens da religião estavam envoltas em escatologia. Ahmad afirmara ser o Mahdi, a figura que os Muçulmanos esperam que apareça no fim do mundo. Também afirmara ser Cristo que voltava, uma encarnação de Krishna é um buruz, ou reaparecimento de Maomet. Entretanto, quiliastas cristãos tinham contaminado a Ahmadiyah e o reaparecimento de Ahmad estava iminente, segundo alguns dos fiéis. O ano de 2008, centenário da morte de Ahmad, estava a ser considerado uma data provável para o seu Regresso Final como Mahdi. O fervor messiânico global, em ora titubeante, parecia estar, de modo geral, a alastrar ainda mais, e Ellie confessou a sua preocupação com as predileções irracionais da espécie humana. — Num Festival do Amor — respondeu-lhe Devi — não devia ser tão pessimista. Em Sapporo houvera uma abundante queda de neve e o costume local de fazer esculturas de neve e gelo de animais e figuras mitológicas fora atualizado: tinha sido meticulosamente esculpido um imenso dodecaedro, que foi mostrado regularmente, como uma espécie de ícone, no telejornal da noite. Depois de dias quentes, impróprios da estação, viam-se os escultores do gelo a acamar, a desbastar e a esmagar, para reparar os estragos. Que a ativação da Máquina pudesse, de uma maneira ou de outra, desencadear um apocalipse global, tornara-se um receio agora mencionado com freqüência. O Projeto da Máquina respondia ao público com garantias confiantes, aos governos com afirmações serenas, e ia dando ordens para manter secreta a data da ativação. Alguns cientistas propunham que a ativação se fizesse em 17 de Novembro, num anoitecer em que se previa a mais espetacular chuva de meteoros do século. Era um simbolismo agradável, diziam. Mas Valerian argumentava que, se a Máquina deixasse a Terra nessa altura, ter de voar através de uma nuvem de lixo cometário constituiria um risco adicional e desnecessário. Por isso, a ativação sofreu um adiamento de algumas semanas, até ao fim do último mês de mil novecentos e qualquer coisa. Embora esta data não fosse literalmente a viragem do Milênio, mas sim um ano antes, foram planeadas celebrações em escala grandiosa por aqueles que não estavam para se dar ao trabalho de compreender as convenções calendariais, ou que desejavam celebrar a vinda do Terceiro Milênio em dois Dezembros consecutivos. Apesar de os extraterrestres não poderem ter sabido quanto pesaria cada membro da tripulação, especificavam com pormenores minuciosos a massa de cada componente e a massa total permissível. Sobrava muito pouco para equipamento de concepção terrestre. Tal fato servira alguns anos atrás como argumento para uma tripulação constituída exclusivamente por mulheres, para que a margem destinada a equipamento pudesse ser aumentada; mas a sugestão fora rejeitada como ridícula. Não havia lugar para fatos espaciais. Tinham de se contentar com a esperança de que os Veganianos se tivessem lembrado de que os humanos tinham propensão para respirar oxigênio. Virtualmente sem nenhum equipamento próprio, com as suas diferenças culturais e o desconhecimento do destino, era evidente que a missão poderia acarretar grande risco. A imprensa mundial discutia esse fato com freqüência; os Cinco, nunca. Insistia-se com a tripulação para que levasse uma variedade de máquinas fotográficas, espectrômetros e supercomutadores supercondutores, tudo miniaturizado, além de bibliotecas microfilmadas. Tinha lógica e não tinha. Não havia a bordo da Máquina instalações para dormir, cozinhar ou sanitárias. Eles levariam apenas um mínimo de provisões, parte delas atafulhadas nas algibeiras dos fatos-macaco. Devi levaria um estojo médico rudimentar. Na parte que lhe tocava, Ellie pensava levar apenas uma escova de dentes e uma muda de roupa interior. Se podem conduzir-me a Vega numa cadeira, raciocinava, provavelmente poderão fornecer também os acessórios necessários. Se precisasse de uma máquina fotográfica, disse aos funcionários do Projeto, limitar-se-ia a pedi-la aos Veganianos. Havia um grupo de opinião, aparentemente sério, segundo o qual os Cinco deveriam ir nus; visto que não tinha sido especificado nenhum vestuário, não deveria ser incluído nenhum, já que poderia perturbar de qualquer modo o funcionamento da Máquina. Ellie e Devi, entre muitos outros, sentiram-se divertidas e observaram que não existia nenhuma prescrição contra o uso de vestuário, coisa que era um costume humano popular evidente na transmissão dos Jogos Olímpicos. Os Veganianos sabiam que nós usávamos roupa, protestaram Xi e Vaygay. As únicas restrições diziam respeito à massa total. Deveríamos também, perguntaram, tirar as próteses dentárias e deixar os óculos em terra? O seu ponto de vista colheu, em parte devido à relutância de muitas nações em estarem associadas a um projeto que culminasse tão indecorosamente. Mas a discussão originou um certo humor malicioso entre a imprensa, os técnicos e os Cinco. — Por essa ordem de idéias — disse Lunacharsky —, não está realmente especificado que devem ir seres humanos. Talvez eles achassem cinco chimpanzés igualmente aceitáveis. Até uma simples fotografia bidimensional de uma máquina alienígena poderia ter um valor incalculável, disseram a Ellie. E imaginasse uma fotografia dos próprios alienígenas. Queria fazer o favor de reconsiderar e levar uma máquina fotográfica? Der Heer, que naquela altura se encontrava em Hokkaido com uma grande delegação americana, pediu-lhe que levasse as coisas a sério. As paradas eram excessivamente altas para… Mas ela lançou-lhe um olhar tão fulminante que ele não completou a frase. Na sua mente, Ellie sabia o que ele ia dizer: para comportamento infantil. Surpreendentemente, Der Heer agia como se tivesse sido ele a parte ofendida no relacionamento de ambos. Contou tudo a Devi, que não se mostrou inteiramente do seu lado. Der Heer, disse, era «muito querido». Eventualmente, Ellie acedeu a levar uma videocâmara ultraminiaturizada. No manifesto que o projeto exigia, sob a rubrica «Objetos pessoais,» escreveu: «fronde de palmeira, 0,811 k.» Der Heer foi encarregado de a chamar à razão. — Sabes que há um esplêndido sistema de captação de imagens de infravermelho que podes levar e que pesa apenas dois terços de um quilograma. Por que hás-de querer levar o ramo de uma árvore? — Uma fronde. É uma fronde de palmeira. Sei que cresceste em Nova Iorque, mas deves saber o que é uma palmeira. Vem tudo no Ivanhoe. Não o leste no liceu? No tempo das cruzadas, peregrinos que faziam a longa viagem à Terra Santa traziam no regresso a fronde de uma palmeira, para mostrar que lá tinham realmente estado. Destinava-se a manter o seu moral elevado. Não me importa o muito avançados que possam ser. A Terra é a minha Terra Santa. Levar-lhes-ei uma fronde para lhes mostrar de onde vim. Der Heer limitou-se a abanar a cabeça. Mas, quando ela explicou as suas razões a Vaygay, este disse: «Compreendo isso muito bem.» Ellie recordou-se das preocupações de Vaygay e da estória que ele lhe contara em Paris a respeito do droshky enviado à aldeia pobre. Mas essa não era de modo nenhum a preocupação dela. Compreendeu que a fronde de palmeira tinha outro propósito. Precisava de qualquer coisa que lhe recordasse a Terra. Tinha medo de ser tentada a não regressar. No dia anterior àquele em que a Máquina deveria ser ativada recebeu um pequeno embrulho que fora entregue pessoalmente no estaleiro de construção em Wyoming e reenviado para ali por mensageiro. Não tinha nenhum endereço de remetente nem, no interior, nenhum bilhete ou qualquer assinatura. O embrulhinho continha um medalhão de ouro suspenso de um fio. Concebivelmente, podia ser usado como um pêndulo. Ambos os lados do medalhão tinham uma inscrição gravada, pequena, mas legível. De um lado, lia-se: Hera, majestosa rainha De vestes douradas, Dominava Argos, Cujos olhares se estendiam Através do mundo. No anverso leu: Esta é a resposta dos defensores de Esparta ao comandante do exército romano: «Se sois um deus, não molestareis aqueles que nunca vos fizeram mal. Se sois um homem, avançai… e encontrareis homens iguais a vós». E mulheres. Ela adivinhou quem lho enviara No dia seguinte, Dia da Ativação, fizeram uma sondagem de opinião do pessoal superior acerca do que aconteceria. A maioria pensava que não aconteceria nada, que a Máquina não funcionaria. Um número mais pequeno estava convencido de que os Cinco iriam, fosse como fosse, parar muito rapidamente ao sistema de Vega, não obstante a relatividade contrariar tal hipótese. Outros aventaram, variadamente, que a Máquina era um veículo para explorar o sistema solar, a partida mais dispendiosa da história, uma sala de aula, uma máquina do tempo, ou uma cabina telefônica galáctica. Um cientista escreveu: «Cinco substitutos muito feios, com escamas verdes e dentes aguçados, materializar-se-ão muito lentamente nas cadeiras.» Esta era, de todas as respostas, a que mais se aproximava do cenário do Cavalo de Tróia. Outro — mas apenas outro — escreveu: «Máquina do Fim do Mundo.» Houve uma espécie de cerimônia. Fizeram-se discursos, serviu-se de comer e de beber. As pessoas abraçaram-se umas às outras. Algumas choraram serenamente. Só um punhado se mostrou francamente céptico. Pressentia-se que, se acontecesse alguma coisa na Ativação, a reação seria estrondosa. Havia uma sugestão de alegria em muitos rostos. Ellie conseguiu telefonar para o lar e dizer adeus à mãe. Disse a palavra para o bocal do telefone em Hokkaido e o som idêntico foi reproduzido no Wisconsym. Mas não houve resposta. A mãe, disse-lhe a enfermeira, estava a recuperar algumas funções motoras do lado atingido. Em breve talvez conseguisse dizer algumas palavras. Quando o telefonema terminou, Ellie estava a sentir-se quase despreocupada. Os técnicos japoneses usavam hachimai, faixas de pano à volta da cabeça, tradicionalmente postas quando se preparavam para um esforço mental, físico ou espiritual, e em especial para o combate. Estampada na faixa, uma reprodução convencional do mapa da Terra. Nenhuma nação ocupava uma posição predominante. Não houvera grande coisa no campo de recomendações nacionais. Tanto quanto ela sabia, ninguém fora incitado a reunir-se à volta da bandeira. Os governantes nacionais enviaram breves declarações em vídeotape. Ellie achou a da presidente particularmente interessante: — Isto não são instruções nem uma despedida. É apenas um até breve. Cada um de vós faz esta viagem em representação de mil milhões de almas. Representais todos os povos do planeta Terra. Se fordes transportados a qualquer outro lado, então vede por todos nós — não apenas a ciência, mas tudo quanto consigais aprender. Representais toda a espécie humana, passada, presente e futura. Aconteça o que acontecer, o vosso lugar na história está assegurado. Sois heróis do nosso planeta. Falai por todos nós. Sede judiciosos. E… voltai. Poucas horas depois entraram pela primeira vez na Máquina — um de cada vez, através de uma pequena câmara de vácuo. Acenderam-se luzes interiores ocultas, de muito baixa potência. Mesmo depois de a Máquina ter sido concluída e de ter passado todos os testes prescritos, haviam receado que os Cinco ocupassem os seus lugares prematuramente. Alguns membros do pessoal do projeto temiam que o simples fato de eles se sentarem pudesse induzir a Máquina a funcionar, mesmo com os benzels imobilizados. Mas eles ali estavam, e não estava a acontecer nada de extraordinário, por enquanto. Aquele era o primeiro momento em que ela conseguia recostar-se, um pouco hesitante, sem dúvida, no plástico moldado e acolchoado. Teria preferido chintz, revestimentos de chintz teriam sido perfeitos para aquelas cadeiras. Mas até isso, descobrira, era uma questão de orgulho nacional. O plástico parecia mais moderno, mais científico, mais sério. Conhecedores dos hábitos de fumar descuidado de Vaygay, tinham decidido que não poderiam entrar na Máquina nenhuns cigarros. Lunacharsky praguejara fluentemente em dez línguas. Chegada a altura entrou depois dos outros, após ter acabado de fumar o seu último Lucky Strike. Ofegou apenas um nadinha quando se sentou ao lado dela. Não havia cintos de segurança no desenho extraído da Mensagem e, por isso, não os havia também na Máquina. No entanto, alguns membros do pessoal do projeto tinham considerado temerário omiti-los. A Máquina vai a algum lado, pensou Ellie. Era um meio de transporte, uma passagem para outro lado… ou outro quando. Era um comboio de mercadorias a rodar e a apitar na noite. Se uma pessoa entrava nele, podia levá-la das sufocantes cidades de província da sua infância para as grandes cidades de cristal. Era descoberta e fuga e um fim da solidão. Todos os atrasos logísticos na construção e todas as discussões sobre a interpretação correta de algum subcodicilo das instruções a tinham mergulhado em desespero. Não era glória que procurava… Não era principalmente isso, não era muito isso… era, ao invés, uma espécie de libertação. Era uma maravilhómana. Na sua mente, era um homem de uma tribo montanhesa parado, de queixo descaído, embasbacado, diante da verdadeira Porta de Ishtar, da antiga Babilônia; Dorothy a captar os primeiros vislumbres dos pináculos abobadados da Cidade Esmeralda de Oz; um rapazinho dos confins mais escuros de Brooklyn transportado bruscamente para o Corredor das Nações da Feira Mundial de 1939, com Trylon e Perisphere acenando ao longe; era Pocahontas navegando estuário do Tamisa acima, com Londres estendida à sua frente de horizonte a horizonte. O seu coração cantava de antegozo. Descobriria, tinha a certeza, que mais era possível, o que podia ser realizado por outros seres, por seres grandiosos — seres que, parecia admissível, viajavam entre as estrelas quando os antepassados dos humanos ainda braquiavam de ramo em ramo à sarapintada luz do Sol da abóbada da floresta. Drumlin, como muitos outros que conhecera ao longo dos anos, chamara-lhe uma romântica incurável; e ela voltava a perguntar a si mesma por que seria que tanta gente considerava isso uma deficiência embaraçosa. O seu romantismo fora uma força impulsionadora na sua vida e uma fonte de deleites. Defensora e praticante do romance, ia a caminho para ver o Feiticeiro. Chegou um comunicado via rádio. Não havia quaisquer anormalidades de funcionamento, tanto quanto podia ser detectado pela bateria de instrumentação que tinha sido instalada fora da Máquina. A principal espera devia-se à evacuação do espaço entre e à volta dos benzels. Um sistema extraordinariamente eficiente estava a bombear o ar para atingir o vácuo mais elevado jamais conseguido na Terra. Ellie voltou a verificar o acondicionamento do seu sistema de videomicrocâmara e deu uma palmadinha na fronde da palmeira. Tinham-se acendido luzes fortes no exterior do dodecaedro. Duas das cápsulas esféricas giravam agora àquilo a que a Mensagem definira como velocidade crítica. Estavam já transformadas numa mancha, para os que observavam no exterior. O terceiro benzel atingiria o mesmo ponto dentro de um minuto. Estava a formar-se uma forte carga elétrica. Quando todas as três cápsulas esféricas, com os seus eixos mutuamente perpendiculares, atingissem a velocidade estipulada, a Máquina estaria ativada. Ou assim dissera a Mensagem. Ellie achou que o rosto de Xi revelava veemente determinação; o de Lunacharsky, uma calma deliberada; os olhos de Sukhavati estavam muito abertos, e Eda mantinha apenas uma atitude de serena atenção. Devi cruzou o olhar com o de Ellie e sorriu. Desejou ter tido um filho. Foi esse o seu último pensamento antes de as paredes tremeluzirem e se tornarem transparentes e, aparentemente, a Terra se abrir e engoli-la. PARTE III A GALÁXIA Por isso caminho em planaltos ilimitados e sei que existe esperança de harmonia do que Tu moldaste a partir do pó com coisas eternas.      Os Pergaminhos do Mar Morto CAPÍTULO XIX Singularidade nua … subir ao paraíso Pela escada da surpresa.      RALPH WALDO EMERSON Merlin H., Poemas (1847) Não é impossível que para algum ser infinitamente superior todo o universo possa ser como uma planície, sendo a distância entre planeta e planeta apenas como os poros de um grão de areia, e não sendo os espaços entre sistema e sistema maiores do que os intervalos entre um grão e o grão adjacente.      SAMUEL TAYLOR COLERIDGE. Omniania Estavam a cair. Os painéis pentagonais do dodecaedro tinham-se tornado transparentes. O mesmo acontecera ao teto e ao chão. Em cima e em baixo, Ellie conseguia distinguir a passamanaria do organossilicato e os tubos de érbio implantados, que pareciam movimentar-se. Os benzels tinham desaparecido, os três. O dodecaedro mergulhava, descia velozmente um comprido túnel escuro apenas com a largura suficiente para permitir a sua passagem. A aceleração parecia situar-se algures à volta de um g. Em conseqüência disso, Ellie, voltada para a frente, era empurrada para trás na cadeira, enquanto Devi, defronte dela, se inclinava ligeiramente a partir da cintura. Talvez devessem ter colocado cintos de segurança. Era difícil não encarar o pensamento de que tinham penetrado no manto da Terra, sido projetados para o seu núcleo de ferro em fusão. Ou talvez fossem direitos a… Tentou imaginar aquele singular meio de transporte como um ferry-boat no rio Estige. As paredes do túnel possuíam uma textura que lhe permitia ter uma noção da velocidade a que seguiam. Os padrões eram conjuntos heterogêneos irregulares de arestas suaves, sem nenhuma forma bem definida. As paredes não ficavam na memória pela sua aparência, mas apenas pela sua função. Até mesmo a poucas centenas de quilômetros abaixo da superfície da Terra, as rochas deveriam estar incandescentes de calor vermelho. Ali não havia nenhuma indicação disso. Nenhuns demônios de categoria subalterna orientavam o trânsito e não se encontravam em evidência armários com boiões de compota. De vez em quando, um vértice dianteiro do dodecaedro roçava na parede e soltavam-se flocos de um material desconhecido. O dodecaedro propriamente dito não parecia afetado por esses contatos. Em breve os seguia uma nuvem de partículas pequenas. Todas as vezes que o dodecaedro tocava na parede, Ellie sentia uma ondulação, como se qualquer coisa mole se tivesse afastado para minimizar o impacto. A tênue iluminação amarela era difusa, uniforme. Ocasionalmente, o túnel virava devagarinho e o dodecaedro acompanhava, obediente, a curvatura. Nada, que ela pudesse ver, vinha na sua direção. A velocidades daquelas, até uma colisão com um pardal ocasionaria uma explosão devastadora. E se aquilo fosse uma queda infinita num poço sem fundo? Sentia uma ansiedade física constante na boca do estômago. Mesmo assim, não teve segundos pensamentos. Buraco negro, pensou. Buraco negro. Estou a cair através do horizonte coincidente de um buraco negro na direção da singularidade temível. Ou talvez isto não seja um buraco negro e eu vá na direção de uma singularidade nua. É isso que os físicos lhe chamam, uma singularidade nua. Perto de uma singularidade, a causalidade podia ser violada, os efeitos podiam preceder as causas, o tempo podia fluir para trás e era improvável que uma pessoa sobrevivesse, quanto mais que se recordasse da experiência. Para um buraco negro em rotação, foi a sua memória buscar aos estudos que fizera anos atrás, não havia que evitar um ponto, mas sim uma singularidade anelar ou qualquer outra coisa ainda mais complexa. Os buracos negros eram terríveis. As forças de corrente gravitacional eram tão grandes que uma pessoa seria esticada até se transformar num fio fino comprido se cometesse o descuido de lá cair. Seria também literalmente esmagada. Felizmente, não havia ali nenhum sinal disso. Através das superfícies cinzentas transparentes que eram agora o teto e o chão, ela via um grande alvoroço de atividade. A matriz de organossilicato estava a ruir sobre si mesma nalguns lugares e a desdobrar-se noutros; os tubos de érbio embutidos giravam e rolavam. Tudo quanto se encontrava dentro do dodecaedro — incluindo ela própria e os seus companheiros — parecia muito natural. Bem, talvez um pouco agitado. Mas, por enquanto, ainda não eram finos fios compridos. Sabia que estava a fazer conjecturas ociosas. A física dos buracos negros não era o seu campo. Aliás, não compreendia como aquilo podia ter alguma coisa a ver com buracos negros, que eram ou primordiais — feitos durante a origem do universo — ou produzidos numa época posterior pelo colapso de uma estrela de maior massa do que a do Sol. Neste caso, a gravidade seria tão forte que — excetuando efeitos quantum — nem a luz podia escapar, embora o campo gravitacional permanecesse com certeza. Daí «buraco», daí «negro». Mas eles não tinham colapsado uma estrela, e ela não conseguia imaginar nenhuma maneira pela qual tivessem capturado um buraco negro primordial. De resto, ninguém sabia onde poderia estar escondido o buraco negro primordial mais próximo. Tinham apenas construído a Máquina e posto os benzels a girar. Olhou para Eda, que estava a calcular qualquer coisa num pequeno computador. Por condução óssea, conseguia sentir, assim como ouvir, um rugido de tom baixo todas as vezes que o dodecaedro roçava na parede, e por isso levantou a voz para ser ouvida: — Compreende o que se está a passar? — De maneira nenhuma — gritou ele em resposta. Quase posso provar que isto não está a acontecer. Conhece as coordenadas Boyer-Lindquist? — Não, lamento. — Eu depois explico-lhe. Sentiu-se grata por ele pensar que haveria um «depois». Ellie sentiu a desaceleração antes de poder vê-la, como se tivessem estado na vertente descendente de uma montanha-russa, tivessem nivelado e agora começassem a subir devagar. Imediatamente antes de a desaceleração se estabelecer, o túnel apresentara uma seqüência complexa de ondulações e saltos. Não havia nenhuma mudança perceptível quer na cor quer no brilho da luz circundante. Ela pegou na câmara, mudou para a objetiva de grande profundidade de foco e olhou para o mais longe que pôde à sua frente. Só conseguiu ver até à primeira saliência do tortuoso caminho. Ampliada, a textura da parede parecia complexa, irregular e, apenas momentaneamente, auto-luminosa. O dodecaedro reduzira a velocidade para um relativo passo de caracol. Não se avistava nenhum fim para o túnel. Perguntou a si mesma se chegariam aonde quer que fosse do seu destino. Talvez os desenhistas tivessem errado os cálculos. Talvez a Máquina tivesse sido imperfeitamente construída, apenas um nadinha fora das normas; talvez o que em Hokkaido parecera uma imperfeição tecnológica aceitável condenasse a missão ao malogro ali em… onde quer que era. Ou, pensou olhando para a nuvem de pequenas partículas que os seguia e ocasionalmente ultrapassava, talvez tivessem chocado com a parede uma vez mais do que a conta e houvessem perdido mais momentum do que aquele que fora tomado em consideração na concepção. O espaço entre o dodecaedro e as paredes parecia agora muito estreito. Talvez acabassem por encalhar irremediavelmente naqueles confins imensos e fossem enfraquecendo até o oxigênio se esgotar. Seria possível que os Veganianos se tivessem dado a todo aquele trabalho e esquecessem que precisamos de oxigênio? Não teriam reparado em toda aquela berraria dos nazis? Vaygay e Eda estavam profundamente mergulhados nos arcanos da física gravitacional — deformadores, renormalização de propagadores espectrais, vetores Killing tempo-similares, invariância de medição não abeliana, refocalização geodésica, tratamentos de supergravidade undécimodimensionais Kaluza-Klein e, claro, a própria e completamente diferente superunificação de Eda. Compreendia-se à primeira vista não estar uma explicação prontamente ao seu alcance. Ellie calculou que, dali a mais algumas horas, os dois físicos fariam alguns progressos a respeito do problema. A superunificação abarcava virtualmente todas as escalas e todos os aspectos da física conhecida na Terra. Era difícil acreditar que aquele… túnel não era, ele próprio, alguma solução até então não apercebida das equações de campo de Eda. — Alguém viu uma singularidade nua? — perguntou Vaygay. — Não sei qual é o seu aspecto — respondeu Devi. — Peço perdão. Provavelmente não estaria nua. Pressentiram alguma inversão de causalidade, alguma coisa bizarra — verdadeiramente louca—, porventura acerca do modo como estavam a pensar, alguma coisa como, por exemplo, ovos mexidos que se reconstituíam e voltavam a apresentar-se como claras e gemas? Devi olhou para Vaygay de pálpebras semicerradas. — Não há novidade — interveio Ellie, muito depressa, a pensar para consigo que Vaygay estava um pouco excitado. — São perguntas genuínas a respeito de buracos negros. Parecem apenas loucas, mas não são. — Não — respondeu Devi, devagar —, a não ser a própria pergunta. — Depois animou-se e acrescentou: — Na realidade, tem sido uma viagem maravilhosa. Concordaram todos. Vaygay estava eufórico. — Isto é uma versão muito forte de censura cósmica — dizia. — As singularidades são invisíveis mesmo dentro de buracos negros. — Ele está a brincar — observou Eda. — Uma vez dentro do horizonte coincidente, não há maneira nenhuma de escapar à singularidade do buraco negro. Apesar das palavras tranqüilizantes de Ellie, Devi olhava desconfiadamente tanto para Vaygay como para Eda. Os físicos tinham de inventar palavras e frases para conceitos muito afastados da experiência quotidiana. Era a sua maneira de evitar neologismos puros e, em vez disso, evocar, ainda que debilmente, qualquer lugar-comum análogo. A alternativa consistia em dar os nomes uns dos outros às descobertas e equações. O que também faziam. Mas, quando não sabíamos que estavam a falar de física, era muito natural ficarmos preocupados a respeito deles. Ellie levantou-se para se aproximar de Devi, mas, no mesmo momento, Xi chamou-lhes a atenção com um grito. As paredes do túnel estavam a ondular, a apertarem-se sobre o dodecaedro, a «espremê-lo» para a frente. Estava a estabelecer-se um ritmo agradável. Todas as vezes que o dodecaedro abrandava quase até parar, recebia outro apertão das paredes. Ellie experimentou um ligeiro enjôo resultante do movimento. Nalguns pontos, a passagem era difícil, as paredes trabalhavam esforçadamente, ondas de contração e expansão espraiavam-se túnel abaixo. Noutros pontos, em especial nas retas, saltavam, praticamente. Ellie distinguiu, a uma grande distância, um vago ponto luminoso, cuja intensidade crescia lentamente. Uma radiância azul-branca começou a inundar o interior do dodecaedro. Via-a refletir-se dos cilindros pretos de érbio, agora quase estacionários. Embora a viagem parecesse ter demorado apenas dez ou quinze minutos, o contraste entre a luz ambiente controlada, velada, da maior parte da viagem e o brilho que crescia em frente era impressionante. Corriam na sua direção, disparados túnel fora e acabando por irromper no que parecia espaço normal. Diante deles encontrava-se um imenso sol azul-branco, desconcertantemente próximo. Ellie compreendeu ato contínuo que era Vega. Sentiu relutância em olhá-lo diretamente através da objetiva de grande profundidade de foco; isso constituía uma temeridade até mesmo em relação ao Sol, uma estrela mais fria e mais baça. Mas pegou num bocado de papel branco e colocou-o de modo a ficar no plano focal da objetiva e projetar uma imagem luminosa da estrela. Viu dois grandes grupos de manchas solares e uma sugestão, pensou, uma sombra de algum do material do plano anelar. Pousou a câmara, estendeu o braço com a palma da mão para fora, de modo a cobrir apenas o disco de Vega, e foi recompensada com a visão de uma coroa brilhante alongando-se à volta da estrela; antes estivera invisível, detida no clarão de Vega. Ainda de palma aberta, observou o anel de resíduos que circundava a estrela. A natureza do sistema de Vega fora objeto de debate mundial desde a recepção da Mensagem de números primos. Atuando como atuava em representação da comunidade astronômica do planeta Terra, esperou não estar a cometer quaisquer erros graves. Videogravou numa grande variedade de flstops e velocidades de imagens. Tinham emergido quase no plano anelar, numa brecha circum-estelar livre de resíduos. O anel era extremamente delgado em contraste com as suas vastas dimensões laterais. Ellie conseguia distinguir leves gradações cromáticas dentro dos anéis, mas nenhuma das suas partículas individuais. Se tivessem alguma semelhança com os anéis de Saturno, uma partícula com poucos metros de diâmetro seria gigantesca. Talvez os anéis veganianos fossem inteiramente compostos por grãos de poeira, pedaços de rocha e estilhaços de gelo. Voltou-se para olhar para trás, para o lugar de onde tinham emergido, e viu um campo negro — um negrume circular, mais negro do que veludo, mais negro do que o céu noturno. Eclipsava a porção protegida do sistema anelar de Vega, que, tirando isso — onde não a obscurecia aquela sombria aparição —, era claramente visível. Enquanto observava mais atentamente através da objetiva, pareceu-lhe distinguir tênues clarões irregulares de luz vindos do seu próprio centro. Radiação hawking? Não, o seu comprimento de onda seria excessivamente longo. Ou luz do planeta Terra que ainda esguichava pelo tubo abaixo? Do outro lado daquele negrume ficava Hokkaido. Planetas. Onde estavam os planetas? Percorreu o plano anelar com a objetiva de grande profundidade de foco em busca de planetas nele embebidos — ou, pelo menos, da «terra» dos seres que tinham emitido a Mensagem. Em cada brecha nos anéis procurava um mundo-pastor cuja influência gravitacional tivesse limpado as alamedas de poeira. Mas não conseguiu encontrar nada. — Não encontra nenhuns planetas? — perguntou Xi. — Nada. Há alguns grandes cometas perto. Consigo ver-lhes a cauda. Mas nada que se pareça com um planeta. Deve haver milhares de anéis separados. Tanto quanto me parece, são constituídos por resíduos. Tenho a impressão de que o buraco negro abriu uma grande brecha nos anéis. É aí que estamos agora, a orbitar lentamente Vega. O sistema é muito jovem — apenas alguns centos de milhões de anos — e vários astrônomos foram de opinião de que era demasiado cedo para haver planetas. Mas, nesse caso, de onde veio a transmissão? — Talvez isto não seja Vega — sugeriu Vaygay. — Talvez o nosso sinal de rádio venha de Vega, mas o túnel conduza a outro sistema estelar. — Talvez, mas não deixa de ser uma coincidência divertida que a sua outra estrela tenha aproximadamente a mesma temperatura cromática que Vega — repare, vê-se que é azulada — e a mesma espécie de sistema de resíduos. É verdade que não posso conferir isso em comparação com as constelações, por causa da intensidade do brilho. Mas, mesmo assim, apostava dez contra um em como isto é Vega. — Mas então onde estão eles? — perguntou Devi. Xi, possuidor de uma visão aguda, estava a olhar fixamente para cima — através da matriz de organossilicato, para o exterior dos painéis pentagonais transparentes, para o céu que ficava muito acima do plano anelar. Não disse nada e Ellie seguiu o seu olhar. Havia realmente qualquer coisa ali, a brilhar ao sol e com um tamanho angular perceptível. Olhou através da objetiva de grande profundidade de foco. Tratava-se de um imenso poliedro irregular, com cada uma das faces coberta por… uma espécie de círculo? Disco? Prato? Taça? — Qiaomu, espreite por aqui e diga-nos o que vê! — Sim, estou a ver. Os seus correlativos… radiotelescópios. Milhares deles, parece-me, a apontar para muitas direções. Não é um mundo. É apenas um engenho. Observaram à vez através da objetiva. Ellie dominava a impaciência para olhar de novo. A natureza fundamental de um radiotelescópio era mais ou menos especificada pela física das ondas de rádio, mas ela sentia-se decepcionada com o fato de uma civilização capaz de fazer, ou até mesmo apenas de utilizar, buracos negros para uma espécie de transporte hiper-relativístico ainda utilizar radiotelescópios de concepção reconhecível, por muito maciça que fosse a escala. Parecia-lhe atrasado para os Veganianos… carecido de imaginação. Compreendia a vantagem de colocar os telescópios em órbita polar circum-estelar, segura, exceto duas vezes em cada revolução, no tocante a colisão com os resíduos do plano anelar. Mas radiotelescópios a apontar para todo o firmamento — milhares deles — davam a sugestão de uma exploração abrangente do espaço sideral, um Argus em força. Inúmeros mundos candidatos estavam a ser observados para captação de transmissão televisiva, radar militar e talvez outras variedades mais primitivas de radiodifusão desconhecidas na Terra. Detectariam tais sinais com freqüência — perguntou-se —, ou seria a Terra o seu primeiro êxito num milhão de anos de observação? Não se vislumbrava qualquer vestígio de comissão de boas-vindas. Uma delegação vinda das províncias seria tão comum que ninguém fora sequer encarregado de estar atento à sua chegada? Quando a objetiva voltou às suas mãos, teve grande cuidado com o enfoque, o flstop e o tempo de exposição. Queria um registro permanente, para mostrar à National Science Foundation como era a radioastronomia verdadeiramente a sério. Gostaria que houvesse uma maneira de determinar o tamanho do mundo poliédrico. Os telescópios cobriam-no como lapas numa baia. Um radiotelescópio em g zero podia ser essencialmente de qualquer tamanho. Depois de reveladas as fotografias poderia determinar o tamanho angular (talvez alguns minutos de arco), mas o tamanho linear, as dimensões reais, isso era impossível de determinar, a não ser que se soubesse a que distância se encontrava o objeto. Não obstante, ela pressentia que era imenso. — Se não há aqui mundos — dizia Xi —, então não há Veganianos. Ninguém aqui vive. Vega é apenas uma casa da guarda, um lugar para a patrulha da fronteira aquecer as mãos. «Aqueles radiotelescópios — acrescentou, e lançou uma olhadela para cima — são as torres de vigia da Grande Muralha. Quando se está limitado pela velocidade da luz, é difícil manter coeso um império galáctico. Ordena-se à guarnição que sufoque uma rebelião. Dez mil anos depois sabe-se o que aconteceu. Não serve. Demasiado lento. Por isso se dá autonomia aos comandantes da guarnição. Logo, adeus império. Mas aquelas — e agora apontou na direção da mancha que recuava e cobria o céu atrás deles —, aquelas são estradas imperiais. A Pérsia teve-as. Roma teve-as. A China teve-as. Conseqüentemente, não se está restrito à velocidade da luz. Com estradas pode manter-se um império coeso. Mas Eda, absorto em pensamentos, abanava a cabeça. Preocupava-o qualquer coisa relacionada com a física. Buraco negro, se disso se tratava realmente, podia agora ver-se a orbitar Vega numa faixa larga completamente livre de resíduos; tanto os anéis interiores como os exteriores lhe deixavam o caminho bem desimpedido. Custava a crer quanto era negro. Enquanto registrava videopanoramas curtos do anel de resíduos à sua frente, Ellie perguntava a si mesma se, um dia, ele formaria o seu próprio sistema planetário, com as partículas colidindo, aglutinando-se, tornando-se cada vez maiores, e com a ocorrência de condensações gravitacionais até, finalmente, apenas alguns mundos grandes orbitarem a estrela. Era muito semelhante à imagem que os astrônomos tinham da origem dos planetas que circundavam o Sol havia 4,5 mil milhões de anos. Não conseguia distinguir inomogeneidades nos anéis, lugares com uma protuberância discernível onde alguns dos resíduos se tivessem aparentemente concrecionado. O movimento do buraco negro à volta de Vega criava uma ondulação visível nas faixas de resíduos imediatamente adjacentes. O dodecaedro estava com certeza a deixar uma esteira mais modesta. Perguntou-se se aquelas perturbações gravitacionais, aquelas rarefações e condensações alastrantes, teriam algumas conseqüências a longo prazo, modificariam o padrão da subseqüente formação planetária. A ser assim, então a própria existência de algum planeta, dali a milhares de milhões de anos, poderia ser devida ao buraco negro e à Máquina… e, logo, à Mensagem, e, logo, ao Projeto Argus. Sabia que estava a sobrepessoalizar; se ela nunca tivesse vivido, qualquer outro radioastrônomo teria com certeza recebido a Mensagem, mas mais cedo, ou mais tarde. A Máquina teria sido ativada num momento diferente e o dodecaedro teria encontrado o seu caminho para ali noutra altura qualquer. Por isso, algum futuro planeta naquele sistema poderia dever-lhe a existência a ela. E, por simetria, ela impossibilitara a existência de algum outro mundo que poderia ter estado destinado a formar-se se ela nunca tivesse vivido. Era vagamente incômodo ser responsável, devido a ações inocentes, pelo destino de mundos desconhecidos. Tentou uma fotografia panorâmica, começando dentro do dodecaedro, saindo depois para os suportes que uniam os painéis pentagonais transparentes e avançando em seguida para a brecha nos anéis de resíduos em que eles, juntamente com o buraco negro, orbitavam. Acompanhou a brecha, flanqueada por dois anéis azulados, até uma distância cada vez maior. Havia qualquer coisa um pouco singular lá em cima, uma espécie de arqueamento no anel interior adjacente. — Qiaomu — pediu, estendendo-lhe a objetiva —, olhe para ali. Diga-me o que vê. — Onde? Ela apontou de novo. Passado um momento, ele localizou o lugar. Ellie percebeu-o por causa da sua ligeira, mas inequívoca, retenção da respiração. — Outro buraco negro — disse ele. — Muito maior. Estavam outra vez a cair. Agora o túnel era mais amplo e eles faziam melhor tempo. — Será isto? — Ellie deu consigo a gritar a Devi. Trazem-nos a Vega para nos exibirem os seus buracos negros. Deixam-nos dar uma olhadela aos seus radiotelescópios de um milhar de quilômetros de distância. Demoramo-nos aí dez minutos, atiram-nos para outro buraco negro e recambiam-nos para a Terra. Foi por isso que gastamos dois bilhões de dólares? — Talvez nós não contemos — dizia Lunacharsky. Talvez o verdadeiro objetivo fosse infiltrarem-se eles próprios na Terra. Ellie imaginou escavações noturnas sob as portas de Tróia. Eda, com os dedos das duas mãos esticados, recomendava calma. — Aguardemos, para ver — disse. — Este túnel é diferente. Por que haveria de pensar que regressa à Terra? — Não é Vega o nosso destino previsto? — perguntou Devi. — O método experimental. Vejamos onde emergimos a seguir. Neste túnel havia menos atrito com as paredes e menos ondulações. Eda e Vaygay discutiam um diagrama espaço-tempo que tinham desenhado nas coordenadas krusksl-Szekeres. Ellie não fazia idéia nenhuma daquilo de que falavam. O estágio de desaceleração, a parte da passagem que dava a sensação de subir, ainda era desconcertante. Desta vez, a luz ao fundo do túnel era cor de laranja. Emergiram a uma velocidade considerável no sistema de um contato binário, dois sóis tocando-se. As camadas exteriores de uma estrela gigante vermelha, velha e dilatada emanavam para a fotosfera de uma estrela anã amarela, de meia-idade e vigorosa, uma coisa parecida com o Sol. A zona de contato entre as duas estrelas era brilhante. Ela olhou à procura de anéis de resíduos, ou planetas, ou radiobservatórios em órbita, mas não encontrou nada. Isso não queria dizer grande coisa, pensou. Estes sistemas poderiam ter um número razoável de planetas que eu nunca o conheceria com esta insignificante objetiva de grande profundidade de foco. Projetou o sol duplo no bocado de papel e fotografou a imagem com uma objetiva de pequena profundidade de foco. Como não havia anéis, havia menos luz disseminada naquele sistema do que à volta de Vega; com a objetiva de ângulo largo conseguiu, depois de explorar um bocado, reconhecer uma constelação que se assemelhava suficientemente à Ursa Maior. Mas teve dificuldade em identificar as outras constelações. Como as estrelas brilhantes da Ursa Maior estão a algumas centenas de anos-luz da Terra, chegou à conclusão de que não tinham saltado mais de algumas centenas de anos-luz. Disse-o a Eda e perguntou-lhe o que pensava. — Que penso? Penso que isto é um metropolitano. — Um metropolitano? Lembrou-se da sensação de cair por momentos, parecera que nas profundas do Inferno — logo após a Máquina ter sido ativada. — Um metrô. Um comboio subterrâneo. Estas são as estações. As paragens. Vega, e este sistema, e outros. Embarcam e desembarcam passageiros nas paragens. Aqui mudamos de comboio. Eda apontou para o contato binário e ela reparou que a sua mão projetava duas sombras, uma antiamarela e outra antivermelha, como — foi a única imagem que lhe veio à cabeça — numa discoteca. — Mas nós, nós não nos podemos apear — continuou Eda. — Nós estamos numa carruagem fechada. Seguimos para o término, para o fim da linha. Drumlin apodara tais especulações de Fantasilândia e aquela era — tanto quanto ela podia saber — a primeira vez que Eda cedia à tentação. Dos Cinco, Ellie era a única astrônoma observacional, embora a sua especialidade não fosse o espectro óptico. Considerava sua obrigação acumular o máximo de dados possível nos túneis e no espaço-tempo quadrimensional comum em que periodicamente emergiam. O presumível buraco negro do qual saíam encontrava-se sempre em órbita à volta de uma estrela ou de um sistema de estrelas múltiplas. Eram sempre aos pares, sempre dois compartilhando a mesma órbita similar — um do qual eram ejetados e outro no qual iam cair. Não havia dois sistemas estreitamente semelhantes. Nenhum era muito parecido com o sistema solar. Todos forneciam percepções astronômicas instrutivas. Em nenhum deles se via nada parecido com um artefato — um segundo dodecaedro ou qualquer imenso projeto de engenharia para dividir um mundo e reconstituí-lo naquilo a que Xi chamara um engenho. Desta vez emergiram perto de uma estrela que mudava visivelmente a sua luminosidade (pôde deduzi-lo pela progressão de flstops necessários). Talvez fosse uma das estrelas Lyrae RR. Perto havia um sistema quíntuplo e depois uma anã castanha fracamente luminosa. Algumas encontravam-se no espaço aberto e outras embebidas em nebulosidade, cercadas por incandescentes nuvens moleculares. Ellie recordou a advertência. «Isto será deduzido da sua parte no Paraíso.» Nada tinha sido deduzido da parte dela. Apesar de um esforço consciente para manter uma calma profissional, o seu coração estava eufórico com aquela profusão de sóis. Desejou que cada um deles fosse a casa de alguém. Ou viesse a ser um dia. Mas depois do quarto salto começou a preocupar-se. Subjetivamente, e pelo seu relógio de pulso, parecia ter decorrido cerca de uma hora desde que tinham «deixado» Hokkaido. Se demorasse muito mais tempo, a ausência de certas instalações far-se-ia sentir. Provavelmente havia aspectos da fisiologia humana que não podiam ser deduzidos, mesmo depois de atenta observação televisiva, por uma civilização muito avançada. E, se os extraterrestres eram tão espertos, por que nos faziam dar tantos pequenos saltos? Enfim, talvez o salto para fora da Terra utilizasse equipamento rudimentar em virtude de apenas primitivos estarem a trabalhar de um lado do túnel. Mas depois de Vega? Por que não nos lançavam diretamente para onde quer que o dodecaedro ia? Todas as vezes que saía disparada de um túnel, Ellie sentia-se na expectativa. Que maravilhas a esperavam a seguir? Aquilo fazia-lhe lembrar um parque de diversões em escala muito grande, e deu consigo a imaginar Hadden a espreitar pelo seu telescópio para Hokkaido, no momento em que a Máquina fora ativada. Por muito gloriosas que fossem as vistas oferecidas pelos autores da Mensagem, e por muito que lhe agradasse a sensação de domínio possessivo do assunto quando explicava aos outros algum aspecto da evolução estelar, ao fim de certo tempo sentiu-se decepcionada. Teve de se esforçar para compreender a que se devia tal sentimento. Não tardou a consegui-lo: os extraterrestres estavam a fanfarronar. Parecia incrível. Denunciava qualquer deficiência de caráter. Enquanto mergulhavam por outro túnel abaixo, este mais largo e tortuoso do que os anteriores, Lunacharsky pediu a Eda uma opinião acerca do motivo por que as paragens do metropolitano se encontravam em sistemas estelares tão pouco prometedores: — Por que não à volta de uma única estrela, uma estrela jovem, de boa saúde e sem resíduos? — Porque — respondeu Eda —… claro que se trata apenas de uma opinião, como pediu… porque todos esses sistemas são habitados… — E eles não querem que os turistas assustem os nativos — comentou Sukhavati. Eda sorriu e acrescentou: — Ou o contrário. — Mas é isso que quer dizer, não é? Há uma espécie qualquer de ética e não interferência em planetas primitivos. Eles sabem que de vez em quando alguns dos primitivos poderiam utilizar o metropolitano… — E eles estão muito seguros dos primitivos — disse Ellie, a continuar o pensamento —, mas não podem estar absolutamente seguros. Por isso, deixam-nos viajar apenas nos metropolitanos que vão para os lugarejos no meio do mato. Os construtores devem ser uma malta muito cautelosa. Mas, sendo assim, por que motivo nos mandaram um comboio suburbano, e não um expresso? — Provavelmente é muito difícil construir um túnel expresso — opinou Xi, baseado em anos de experiência de escavações, e Ellie pensou no Túnel Honshu-Hokkaido, um dos orgulhos da engenharia civil da Terra, com os seus cinqüenta e um quilômetros de comprimento. Algumas das curvas eram agora muito acentuadas. Ela lembrou-se do seu Thunderbird e depois receou agoniar-se. Decidiu lutar o mais tempo que pudesse contra esse mal estar. O dodecaedro não dispunha dos tradicionais saquinhos para o enjôo aéreo. De repente encontraram-se numa reta e depois o céu apresentou-se coberto de estrelas. Para onde quer que olhasse havia estrelas, não a ninharia de alguns milhares ainda ocasionalmente reconhecidas a olho nu por observadores da Terra, mas uma imensa multitude — algumas, parecia, quase a tocarem as suas vizinhas mais próximas — a cercá-la em todas as direções, muitas delas coloridas de amarelo, azul ou vermelho — em especial de vermelho. O céu fulgurava com sóis vizinhos. Ellie conseguiu distinguir uma imensa nuvem espiralada de poeira, um disco de acreção a fluir aparentemente para um buraco negro de proporções espantosas, do qual saíam clarões de radiação, como relâmpagos de calor numa noite de Verão. Se aquilo era o centro da Galáxia, como ela suspeitava, devia estar banhado de radiação sincrotrônica. Desejou que os extraterrestres se tivessem lembrado quanto os humanos eram frágeis. E, como se nadasse para o seu campo de visão, à medida que o dodecaedro rotacionava, aproximava-se… um prodígio, uma maravilha, um milagre. Alcançaram-no quase antes de se aperceberem. Enchia metade do céu. Voavam já por cima dele. Na sua superfície havia centenas, talvez milhares, de portais iluminados, cada um de forma diferente. Muitos eram poligonais, ou circulares, ou com um corte transversal elíptico; alguns tinham apêndices salientes ou uma seqüência de círculos excêntricos sobrepostos. Ela percebeu que eram portos de atracação, milhares de diferentes portos de atracação — uns tendo apenas, talvez, metros de tamanho, enquanto outros tinham inequivocamente quilômetros de diâmetro, ou mais. Cada um eles, concluiu, era a réplica, o molde de uma máquina interestelar como aquela. Grandes criaturas em grandes máquinas tinham imponentes portos de entrada. Pequenas criaturas, como nós, tinham pequenos portos. Era um critério democrático, sem qualquer indício de civilizações particularmente privilegiadas. A diversidade dos portos sugeria poucas distinções sociais entre as diversas civilizações, mas implicava uma diversidade de seres e culturas de tirar o fôlego. Falassem da Grand Central Station! — pensou. A visão de uma Galáxia povoada, de um universo transbordante de vida e inteligência, deu-lhe vontade de chorar de alegria. Aproximavam-se de um porto iluminado de amarelo que, como Ellie conseguiu ver, tinha a forma exata do dodecaedro em que viajavam. Observou um porto de atracação próximo, onde uma coisa do tamanho do dodecaedro e com a forma aproximada de uma estrela-do-mar estava a encaixar-se suavemente no seu molde. Olhou para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo, para a curvatura quase imperceptível daquela grande estação situada no que calculava ser o centro da Via Láctea. Que orgulho para a espécie humana ser finalmente convidada para ali! Há esperança para nós, pensou. Há esperança! — Bem, não é Bridgeport. Disse as palavras em voz alta, quando a manobra de atracação se completou num silêncio perfeito. CAPÍTULO XX Grand Central Station Todas as coisas são artificiais, pois a natureza é a arte de Deus.      THOMAS BROWNE: On Dreams Religio Medici (1642) Os anjos precisam de um corpo simulado, não por eles próprios, mas por nós.      TOMAS DE AQUINO. Summa Theologica, f, 51, 2 O Demônio tem poder Para assumir uma forma agradável.      WILLIAM SHAKESPEARE. Hamlet A câmara de vácuo estava construída de maneira a acomodar apenas uma pessoa de cada vez. Quando tinham sido levantadas questões de prioridade — quanto a qual das nações seria a primeira representada no planeta de outra estrela —, os Cinco haviam levantado as mãos, escandalizados, e dito aos dirigentes do projeto não se tratar de uma missão desse gênero. Tinham evitado conscientemente discutir o assunto entre eles. Tanto a porta interior como a exterior da câmara de vácuo se abriram simultaneamente. Eles não tinham dado nenhuma ordem. Aparentemente, aquele setor da Grand Central estava adequadamente pressurizado e oxigenado. — Bem, quem quer sair primeiro? — perguntou Devi. De videocâmara na mão, Ellie esperava na bicha para sair, mas achou que a fronde de palmeira devia estar com ela quando pusesse os pés naquele novo mundo. Quando foi buscá-la, ouviu um grito de alegria vindo do exterior, provavelmente de Vaygay. Ellie correu para a brilhante luz solar. A soleira da porta exterior da câmara de vácuo estava cheia de areia. Devi, metida na água até aos tornozelos, chapinhava de brincadeira na direção de Xi. Eda tinha um grande sorriso rasgado no rosto. Era uma praia. Desfaziam-se ondas na areia. O céu azul ostentava alguns cumulus indolentes. Havia uma série de palmeiras irregularmente espaçadas, um pouco afastadas da beira de água. Brilhava um sol no céu. Um sol. Amarelo. Exatamente como o nosso, pensou Ellie. Pairava no ar um aroma tênue; cravo-de-cabecinha, talvez, e canela. Podia ser uma praia de Zanzibar. Tinham então feito uma viagem de trinta mil anos-luz para passear numa praia. Podia ser pior, pensou. Soprava uma brisa que provocava um pequeno redemoinho de areia à sua frente. Seria tudo aquilo apenas uma complicada simulação da Terra, talvez reconstruída a partir de dados trazidos por uma expedição de reconhecimento rotineira, um milhão de anos atrás? Ou teriam os Cinco empreendido aquela épica viagem somente para aperfeiçoarem o seu conhecimento de astronomia descritiva e serem depois abandonados sem-cerimônia num canto agradável da Terra? Quando se voltou, verificou que o dodecaedro desaparecera. Tinham deixado a bordo o supercomputador supercondutor e a sua biblioteca de referências, assim como alguns dos instrumentos. O fato preocupou-os durante cerca de um minuto. Estavam em segurança e tinham sobrevivido a uma viagem acerca da qual valia a pena escrever para casa. Vaygay olhou a fronde que Ellie insistira em trazer consigo para a colônia de palmeiras ao longo da praia e riu-se. — Chover no molhado — comentou Devi. Mas a fronde dela era diferente. Talvez ali tivessem espécies diferentes. Ou talvez a variedade local tivesse sido produzida por um fabricante desatento. Olhou para o mar. Veio-lhe irresistivelmente ao pensamento a imagem da primeira colonização do solo da Terra, havia cerca de quatrocentos milhões de anos. O que quer que aquilo fosse — o oceano Índico ou o centro da Galáxia —, os Cinco tinham feito uma coisa sem paralelo. Era verdade que o itinerário e os destinos estavam completamente fora da sua decisão. Mas eles tinham atravessado o oceano de espaço interestelar e iniciado o que seria com certeza uma nova era da história humana. Sentia-se muito orgulhosa. Xi descalçou as botas e arregaçou até aos joelhos as pernas do banal fato-macaco carregado de insígnias que os Governos tinham decidido que todos eles deviam usar. Avançou através da suave rebentação. Devi ocultou-se atrás de uma palmeira e saiu de lá de sari e com o fato-macaco dobrado num braço, o que lhe fez lembrar um filme de Dorothy Lamour. Eda pôs na cabeça o gênero de chapéu de tecido que constituía a sua marca visual em todo o mundo. Ellie videogravou-os em tomadas curtas e saltitantes. Pareceria, quando regressassem, exatamente um filme caseiro. Foi juntar-se a Xi e a Vaygay na rebentação. A água parecia quase tépida. Estava uma tarde agradável e, considerando todas as circunstâncias, gozaram uma mudança agradável do Inverno de Hokkaido, que tinham deixado havia pouco mais de uma hora. — Toda a gente trouxe qualquer coisa simbólica — comentou Vaygay —, menos eu. — Que quer dizer? — Sukhavati e Eda trouxeram peças de vestuário nacionais. Aqui o Xi trouxe um grão de arroz. — Efetivamente, Xi segurava o grão de arroz num saquinho de plástico entre o polegar e o indicador. — Você tem a sua fronde de palmeira — continuou Vaygay. — Mas eu… eu não trouxe nenhuns símbolos, nenhumas recordações da Terra. Sou o único materialista autêntico do grupo e tudo quanto trouxe está na minha cabeça. Ellie tinha pendurado o medalhão ao pescoço, debaixo do fato-macaco. Desabotoou a gola e puxou-o para fora. Vaygay reparou e ela deu-lho a ler. — De Plutarco, creio — disse ele, passado um momento. — Palavras valorosas, essas que os Espartanos proferiram. Mas, não esqueça, os Romanos venceram a batalha. Pelo tom da admonição, Vaygay devia ter pensado que o medalhão era uma prenda de Der Heer. Ela sentiu-se enternecida com a sua desaprovação de Ken — sem dúvida justificada pelos acontecimentos — e com a sua constante solicitude. Deu-lhe o braço. — Era capaz de matar por um cigarro — disse ele amigavelmente, e serviu-se do próprio braço para apertar o dela contra o flanco. Os Cinco sentaram-se juntos perto de uma pequena lagoa formada pela maré. O quebrar das ondas gerava um suave ruído branco que recordava a Ellie o Projeto Argus e os seus anos de escuta da estática cósmica. O Sol ultrapassara havia muito o zênite, sobre o oceano. Passou velozmente por eles um caranguejo lateralmente ágil, com os olhos a girar nas suas hastes. Com caranguejos, cocos e as limitadas provisões das suas algibeiras poderiam sobreviver confortavelmente durante algum tempo. Não havia na praia outras pegadas além das suas. — Nós achamos que eles fizeram o trabalho quase todo. — Vaygay explicava o que ele e Eda pensavam do que os Cinco tinham experimentado. — Tudo quanto o projeto fez foi um levíssimo franzido no espaço-tempo, para que eles tivessem qualquer coisa em que basear o seu túnel. Em toda aquela geometria multidimensional deve ter sido muito difícil detectar um minúsculo franzido no espaço-tempo. Mais difícil ainda ajustar-lhe um bocal. — Que está a dizer? Eles mudaram a geometria do espaço? — Mudaram. Estamos a dizer que, topologicamente, o espaço é não simplesmente conectado. É como… — sei que Abonneba não gosta desta analogia —… é como uma superfície bidimensional plana, a superfície inteligente, conectada por meio de um labirinto de tubagem com outra superfície bidimensional plana, a superfície estúpida. A única maneira de sair da superfície inteligente para a superfície estúpida num espaço e tempo razoável é através dos tubos. Agora imaginem que as pessoas da superfície inteligente descem um tubo com um bocal. Fazem um túnel entre as duas superfícies, desde que os estúpidos colaborem fazendo um pequeno franzido na sua superfície, de modo que o bocal possa ajustar-se. — Portanto, os tipos espertos enviam uma radiomensagem e dizem aos estúpidos como fazer um franzido. Mas, se são seres verdadeiramente bidimensionais, como poderiam fazer um franzido na sua superfície? — Acumulando uma grande quantidade de massa num lugar. — A resposta de Vaygay foi hesitante. — Mas não foi isso o que nós fizemos. — Bem sei, bem sei. Fosse como fosse, os benzels fizeram-no. — Compreendem — explicou Eda brandamente —, se os túneis são buracos negros, isso implica verdadeiras contradições. Há um túnel interior na solução exata de Herr das equações de campo de Einstein, mas é instável. A mínima perturbação fecha-lo-ia e converteria o túnel numa singularidade física através da qual nada poderia passar. Tentei imaginar uma civilização superior que controlaria a estrutura interna de uma estrela em colapso, para manter o túnel interior estável. É muito difícil. A civilização teria de monitorizar e estabilizar eternamente o túnel. Seria particularmente difícil como uma coisa do tamanho do dodecaedro a cair por ele. — Mesmo que Abonneba consiga descobrir uma maneira de manter o túnel aberto, há muitos outros problemas — disse Vaygay. — Demasiados. Os buracos negros acumulam problemas mais depressa do que acumulam matéria. Há as forças das correntes. Deveríamos ter sido esfrangalhados no campo gravitacional do buraco negro. Deveríamos ter sido esticados como as pessoas nos quadros de El Greco ou nas esculturas daquele italiano…? — Voltou-se para Ellie, para que ela preenchesse a lacuna. — Giacometti — sugeriu ela. — Era suíço. — Sim, como Giacometti. Depois, outros problemas: Pelas medidas da Terra, precisaríamos de uma quantidade infinita de tempo para passar através de um buraco negro e nunca poderíamos regressar à Terra, nunca. Talvez tenha sido isso que aconteceu. Talvez nunca regressemos. Além do mais, deveria ter havido um inferno de radiação próximo da singularidade. Esta é uma instabilidade mecânica quântica… — E, finalmente — continuou Eda —, um túnel tipo Kerry pode conduzir a grotescas violações da casualidade. Com uma insignificante mudança de trajetória dentro do túnel poderíamos emergir do outro extremo tão primitivamente na história do universo quanto consigamos imaginar — um psicossegundo depois o Big Bang, por exemplo. Esse seria um universo muito desorganizado. — Olhem, rapazes — disse Ellie —, não sou especialista em relatividade geral. Mas nós não vimos buracos negros? Não caímos neles? Não emergimos deles? Um grama de observação não vale uma tonelada de teoria? — Bem sei, bem sei — concordou Vaygay, levemente angustiado. — Tem de ser qualquer outra coisa. O nosso entendimento da física não pode estar tão atrasado. Pois não? Dirigiu a última pergunta, em tom um pouco lamentoso, a Eda, que se limitou a responder: — Um buraco negro naturalmente ocorrente não pode ser um túnel; têm singularidades intransponíveis nos seus centros. Com um sextante improvisado e os seus relógios de pulso mediram o tempo do movimento angular do Sol a pôr-se. Era de 3600 em vinte e quatro horas, pelo padrão da Terra. Antes de o Sol descer demasiado no horizonte desmontaram a câmara de Ellie e utilizaram a lente para acender lume. Ela conservou a fronde a seu lado, receosa de que alguém a atirasse descuidadamente para as chamas depois de escurecer. Xi revelou-se um perito em produzir fogo. Colocou-os na direção do vento e manteve o lume baixo. Gradualmente, as estrelas foram nascendo. Estavam todas ali, as constelações familiares à Terra. Ellie ofereceu-se para ficar algum tempo de guarda, a cuidar do lume, enquanto os outros dormiam. Queria ver Lira nascer. O que aconteceu passadas algumas horas. A noite estava excepcionalmente clara e Vega brilhava firme e luminosamente. Do movimento aparente das constelações através do céu, das constelações do hemisfério sul que conseguia distinguir e do posicionamento da Ursa Maior perto do horizonte setentrional deduziu que se encontravam em latitudes tropicais. Se tudo isto é uma simulação, pensou antes de adormecer, deram-se a um grande trabalho. Teve um pequeno e estranho sonho. Os Cinco estavam a nadar — nus, sem constrangimento, debaixo de água —, ora a boiar indolentemente junto de um coral armação-de-veado, ora deslizando para fissuras que no momento seguinte ficavam obscurecidas pela passagem de massas de algas. A certa altura, ela subiu à superfície. Viu passar uma nave com a forma de um dodecaedro a pouca altura acima da água. As paredes eram transparentes e no interior distinguiam-se pessoas vestindo dhotis e sarongs, lendo jornais e conversando despreocupadamente. Voltou a mergulhar para debaixo da superfície da água. Para o lugar que lhe pertencia. Embora o sonho parecesse prolongar-se durante muito tempo, nenhum deles tinha qualquer dificuldade em respirar. Inalavam e expiravam água. Não sentiam nenhum mal-estar — na verdade, nadavam tão naturalmente como se fossem peixes. Vaygay até se parecia um pouco com um peixe — talvez uma garoupa. A água deve ser tremendamente oxigenada, deduziu ela. No meio do sonho lembrou-se de um ratinho que vira uma vez num laboratório de fisiologia, perfeitamente satisfeito num frasco de água oxigenada, até a bater esperançadamente com as patinhas dianteiras. Uma cauda vermiforme estendia-se atrás dele. Tentou recordar quanto oxigênio era necessário, mas achou que dava muito trabalho. Cada vez pensava menos, achou. Não há problema. Realmente. Os outros tinham-se entretanto tornado distintamente pisciformes. As barbatanas de Devi eram translúcidas. Era obscuramente interessante, vagamente sensual. Desejou que continuasse, para poder entender alguma coisa. Mas até a pergunta a que queria responder lhe escapava. «Oh, respirar água tépida!», pensou. Que inventarão a seguir? Ellie acordou com um sentimento de desorientação tão profundo que raiava a vertigem. Onde estava? Wisconsin, Puerto Rico, Novo México, Wyoming, Hokkaido? Ou no estreito de Malaca? Depois lembrou-se. Não era claro o ponto da Galáxia da Via Láctea em que se encontrava, dentro de um espaço de trinta mil anos-luz; provavelmente, o recorde de desorientação de todos os tempos, pensou. Apesar de lhe doer a cabeça, riu-se; e Devi, que dormia ao lado dela, mexeu-se. Devido ao declive da praia — na tarde anterior tinham efetuado um reconhecimento numa distância de cerca de um quilômetro sem encontrar nenhum vestígio de habitação —, a luz direta do Sol ainda a não alcançara. Ellie estava deitada numa almofada de areia. Devi, que acordava naquele momento, dormira com a cabeça apoiada no fato-macaco enrolado. — Não acha que há alguma coisa de papa-açordice numa cultura que precisa de almofadas moles? — perguntou Ellie. — Naqueles que deitam a cabeça em jugos de madeira, à noite, nesses é que os apostadores batidos arriscam o seu dinheiro. Devi riu-se e deu-lhe os bons-dias. Ouviram gritar, de um ponto mais acima, na praia. Os três homens acenavam e chamavam-nas com gestos. Ellie e Devi levantaram-se e juntaram-se-lhes. A prumo, na areia, encontrava-se uma porta. Uma porta de madeira, com almofadas e um puxador de latão. Pelo menos parecia de latão. A porta tinha dobradiças de metal pintadas de preto e estava instalada entre duas ombreiras, uma padieira e uma soleira. Não tinha nenhuma placa com o nome. Não era em aspecto nenhum extraordinária. Para a Terra. — Agora dê a volta para a parte de trás — convidou Xi. Pela parte de trás, a porta não estava ali. Ellie via Eda, Vaygay e Xi, e Devi um bocadinho afastada; via a areia contínua, sem nenhuma interrupção, entre eles quatro e ela. Desviou-se para o lado, com os calcanhares molhados pelas ondas, e distinguiu uma única linha vertical escura com a espessura de uma lâmina. Sentiu relutância em tocar-lhe. Voltou de novo à parte de trás e confirmou que não havia quaisquer sombras ou reflexos no ar diante de si e depois andou para a frente. — Bravo! — exclamou Eda, a rir. Ellie virou-se e encontrou a porta fechada à sua frente. — Que viram? — perguntou. — Uma mulher encantadora passando através de uma porta fechada com dois centímetros de espessura. Vaygay parecia estar a sentir-se bem, apesar da falta de cigarros. — Tentaram abrir a porta? — perguntou Ellie. — Ainda não — respondeu Xi. Ela voltou a recuar, para admirar a aparição. — Parece uma coisa de… Como se chama aquele surrealista francês? — perguntou Vaygay. — René Magritte — respondeu ela. — Era belga. — Concordamos, presumo, que isto não é realmente a Terra — opinou Devi, abrangendo com um gesto oceano, praia e céu. — A não ser que estejamos no golfo Pérsico há três mil anos e haja gênios por aí — respondeu Ellie a rir. — Não a impressiona o cuidado da construção? — Pois sim, são muito bons, admito isso — concordou Ellie. — Mas para que serve? Para que se terão entregado a todo este trabalho minucioso? — Talvez tenham apenas a paixão de fazer as coisas bem feitas. — Ou talvez estejam apenas a exibir-se. — Não compreendo como poderiam conhecer as nossas portas tão bem — continuou Devi. — Pense nas muitas maneiras diferentes de fazer uma porta. Como podiam eles saber? — Pode ter sido pela televisão — respondeu Ellie. — Vega recebeu sinais de televisão da Terra até… deixe ver… até à programação de 1974. É evidente que podem mandar os clips interessantes para aqui, por mensageiro especial, num ápice. Provavelmente apareceram inúmeras portas na televisão entre 1936 e 1974. Muito bem — continuou, como se não fosse mudar de assunto —, que pensam que aconteceria se abríssemos a porta e entrássemos? — Se estamos aqui para sermos examinados — respondeu Xi —, do outro lado daquela porta talvez esteja o exame, porventura um para cada um de nós. Ele estava preparado. Ela também desejou estar. As sombras das palmeiras mais próximas projetavam-se agora na praia. Silenciosos, olharam uns para os outros. Pareciam os quatro ansiosos por abrir a porta e transpor o limiar. Só ela sentia alguma… relutância. Perguntou a Eda se ele gostaria de passar primeiro. Já agora, é conveniente pôr à frente o nosso melhor pé, pensou. Ele pôs o barrete, fez uma vênia ligeira, mas graciosa, voltou-se e dirigiu-se para a porta. Ellie correu para ele e beijou-o nas duas faces. Os outros também o abraçaram. Ele virou-se de novo, abriu a porta, entrou e desapareceu, volatizou-se, o pé avançado primeiro, a mão a balançar por último. Com a porta entreaberta, parecera haver apenas a continuação da praia e. das ondas atrás dele. A porta fechou-se. Ellie contornou-a, mas não havia nenhum vestígio de Eda. Seguiu-se Xi. Ellie sentiu-se confundida com a docilidade de todos eles, com a aceitação imediata de todos os convites anônimos que lhes tinham sido feitos. Podiam ter-nos dito aonde nos iam levar e para que era tudo isto, pensou. Isso podia ter feito parte da Mensagem, ou sido informação transmitida depois de a Máquina ser ativada. Podiam ter-nos dito que íamos atracar numa simulação de uma praia da Terra. Podiam ter-nos dito que esperássemos à porta. É evidente que, apesar de todos os seus talentos, os extraterrestres talvez saibam inglês imperfeitamente, tendo a televisão como único professor. O seu conhecimento de russo, mandarim, tamil e hausa seria ainda mais rudimentar. Mas eles tinham inventado a linguagem introduzida no manual de instruções da Mensagem. Por que não a usaram? Para conservarem o elemento surpresa? Vaygay viu-a de olhos fixos na porta fechada e perguntou-lhe se desejava entrar a seguir. — Obrigada, Vaygay. Tenho estado a pensar. Sei que é um pouco idiota, mas veio-me à cabeça… Por que temos de saltar através de todos os arcos que eles seguram para nós? Suponhamos que não fazemos o que eles pedem? — Ellie, é tão americana! Para mim, isto é como estar na minha terra. Estou habituado a fazer o que as autoridades sugerem… especialmente quando não tenho outra alternativa. Sorriu e girou agilmente nos calcanhares. — Não aceite conversa fiada nenhuma do grão-duque! — recomendou ela, quando ele saiu. Lá, muito no alto, uma gaivota piou. Vaygay deixara a porta entreaberta. Do outro lado continuava a haver apenas praia. — Está bem? — perguntou-lhe Devi. — Estou ótima. Palavra. Quero apenas ficar um momento comigo própria. Já os sigo. — Sério, estou a perguntar como médica. Sente-se bem? — Acordei com uma dor de cabeça e creio que tive uns sonhos muito fantasiosos. Não lavei os dentes nem bebi o meu café forte. Também não me importaria de ler o jornal da manhã. Tirando tudo isso, estou realmente bem. — Parece, de fato, que está. Por acaso, também tenho uma dorzita de cabeça. Cuide de si, Ellie. Fixe tudo na memória, para mo poder contar… quando nos voltarmos a encontrar. — Assim farei! — prometeu Ellie. Beijaram-se e desejaram-se mutuamente felicidades. Devi transpôs o limiar e desapareceu. A porta fechou-se atrás dela. Depois, Ellie teve a impressão de que captara um odor a caril. Lavou os dentes com água salgada. Fizera sempre parte da sua natureza um certo pendor para a meticulosidade, para o extremo asseio. Bebeu leite de coco como pequeno-almoço. Cuidadosamente, limpou toda a areia acumulada nas superfícies exteriores do sistema de microcâmara e do seu minúsculo arsenal de videocassetes em que registrara maravilhas. Lavou a fronde de palmeira na rebentação, como fizera no dia em que a encontrara em Cocoa Beach, pouco antes de partir para Methuselah A manhã já estava quente e ela resolveu tomar banho. Com a roupa muito bem dobrada em cima da palmeira, mergulhou ousadamente na rebentação. Podem ser capazes de tudo, mas é pouco provável que os extraterrestres se sintam excitados pela vista de uma mulher nua, mesmo que ela esteja muito bem conservada, pensou. Tentou imaginar um microbiólogo excitado, levado a cometer crimes passionais depois de observar uma paramécia surpreendida em flagrante delito de mitose. Languidamente, flutuou de costas, a subir e a descer, com o seu ritmo lento faseado com a chegada de sucessivas cristas de ondas. Tentou imaginar milhares de… câmaras, mundos simulados, fosse o que fosse que aqueles eram, comparáveis — cada um deles uma cópia meticulosa da parte mais agradável do planeta natal de uma pessoa. Milhares deles, cada um com céu e tempo, oceano, geologia e vida indígena indistinguíveis dos originais. Parecia uma extravagância, embora também sugerisse que estava ao alcance do possível uma conseqüência satisfatória: fossem quais fossem os recursos disponíveis, não se fabricava uma paisagem àquela escala para cinco espécimes de um mundo condenado. Por outro lado… A idéia de extraterrestres como guardas de jardim zoológico tornara-se algo parecido com um clichê. E se aquela estação de grande tamanho, com a sua profusão de portos de atracação e ambientes, fosse realmente um zôo? «Vejam os animais exóticos nos seus habitats nativos» imaginou um pregoeiro de cabeça de caracol a gritar. Vêm turistas de toda a Galáxia, especialmente durante as férias escolares. E depois, quando há um exame, os chefes de estação transferem temporariamente as criaturas e os turistas, varrem a praia para apagar as pegadas e proporcionam aos primitivos que estão a chegar meio dia de repouso e recreio antes de a provação do exame começar. Ou talvez fosse assim que eles abasteciam os zôos. Ellie pensou nos animais fechados em jardins zoológicos terrestres que se dizia terem sentido dificuldade em se reproduzir no cativeiro. Deu uma cambalhota na água e mergulhou sob a superfície, num instante de constrangimento. Deu algumas braçadas fortes na direção da praia e, pela segunda vez em vinte e quatro horas, desejou ter tido um filho. Não estava ninguém por ali e não se lobrigava uma vela no horizonte. Algumas gaivotas percorriam a praia, aparentemente à procura de caranguejos. Desejou ter trazido pão para lhes dar. Depois de secar, vestiu-se e inspecionou de novo a porta. Estava ali, meramente à espera. Sentiu a mesma relutância em entrar. Mais do que relutância. Talvez medo. Afastou-se, sem a perder de vista. Sentada debaixo de uma palmeira, com os joelhos erguidos para o queixo, percorreu com o olhar a longa extensão de praia arenosa branca. Passados momentos levantou-se e espreguiçou-se um pouco. Com a fronde e a microcâmara numa das mãos, aproximou-se da porta e girou o puxador. A porta abriu-se um nadinha. Através da abertura viu as cristas brancas das ondas, ao largo. Empurrou mais um bocadinho e a porta abriu-se sem um gemido. A praia, serena e desinteressada, olhava para ela. Abanou a cabeça, voltou para trás e retomou a anterior postura pensativa. Pensou nos outros com curiosidade. Estariam agora, nalguma estranha instalação examinadora, a estudar avidamente as perguntas de múltipla opção de resposta? Ou tratar-se-ia de uma prova oral? E quem eram os examinadores? Sentiu a inquietação aumentar de novo. Outro ser inteligente — um ser que evoluíra independentemente nalgum mundo distante, em condições físicas alheias às da Terra e com uma seqüência de mutações genéticas fortuitas completamente diferentes… um tal ser não se assemelharia a ninguém que ela conhecia. Ou imaginava, sequer. Se aquela era uma estação de exame, então havia chefes de estação, e os chefes de estação tinham de ser totalmente, devastadoramente não humanos. Havia dentro dela, lá muito no fundo, um não sei quê que se incomodava com insetos, cobras, toupeiras de focinho estrelado. Era uma pessoa que sentia um pequeno calafrio — para falar claro, um tremor de repugnância — quando confrontada com seres humanos defeituosos, ainda que ligeiramente. Aleijados, crianças com a síndrome de Down, até mesmo o aspecto do parkinsonismo, despertavam nela, mal-grado a sua resolução intelectual em contrário, um sentimento de nojo, um desejo de fugir. De modo geral, fora capaz de conter o seu medo, embora receasse ter alguma vez magoado alguém por causa dele. Não gostava muito de pensar naquilo; adivinhava o seu próprio embaraço e desviava o pensamento para outro tópico. Mas agora preocupava-a a possibilidade de ser incapaz de enfrentar sequer — quanto mais de influenciar a favor da espécie humana — um ser extraterrestre. Na seleção não se tinham lembrado de examinar os Cinco acerca desse aspecto. Não houvera nenhum esforço para determinar se eles tinham medo de ratinhos, ou anões, ou marcianos. Fora coisa que não ocorrera, pura e simplesmente, às comissões selecionadoras. Perguntou a si mesma por que não teriam pensado nisso. Agora parecia-lhe um ponto de interesse bastante evidente. Fora um erro terem-na mandado. Talvez, quando confrontada com algum chefe de estação galáctico com cabelo feito de serpentes, ela se desgraçasse — ou, muito pior, fizesse desviar a graduação dada à espécie humana, no inimaginável exame que estava a ser feito, de «aprovado,» para «reprovado». Olhou, com um misto de apreensão e atração, para a porta enigmática, cujo limite inferior estava agora debaixo de água. A maré enchia. Surgiu uma figura na praia, a algumas centenas de metros de distância. Ao princípio julgou que fosse Vaygay, talvez despachado cedo do exame e que vinha dar-lhe a boa nova. Mas quem quer que era não vestia um fato-macaco do Projeto Máquina. Ademais, parecia uma pessoa mais jovem, mais vigorosa. Ellie estendeu a mão para a objetiva de grande profundidade de foco, mas hesitou, sem saber por quê. Levantou-se e protegeu os olhos do sol, com a mão em pala. Por um momento, por um momento apenas, parecera-lhe… Era claramente impossível. Eles não se aproveitariam de uma vantagem tão indecente sobre ela. Mas não pôde conter-se. Desatou a correr direita a ele pela areia dura da beira de água, com o cabelo a esvoaçar atrás de si. Ele tinha o mesmo aspecto da fotografia que vira recentemente, parecia vigoroso, feliz. Apresentava a barba crescida, de um dia. Ela lançou-se-lhe nos braços a soluçar. — Olá, Presh — disse ele, a afagar-lhe a parte de trás da cabeça com a mão direita. Era a sua voz. Reconheceu-a imediatamente. E o seu cheiro, o seu andar, o seu riso. O mesmo arranhar que a barba lhe causava na face. Tudo isso se combinou para esfrangalhar o seu autodomínio. Sentiu uma pedra maciça a ser forçada, levantada, e os primeiros raios de luz a penetrarem num túmulo antigo, quase esquecido. Engoliu em seco e tentou controlar-se, mas ondas de angústia aparentemente inesgotável jorravam dela e voltava a chorar. Ele estava pacientemente parado, a tranqüilizá-la com o mesmo olhar — lembrava-se agora — que lhe lançara do seu lugar no fundo da escada, durante a primeira descida a solo que ela fizera dos grandes degraus. Mais do que tudo, ansiara por voltar a vê-lo, mas reprimira esse sentimento, impacientara-se com ele, por ser tão claramente impossível de realizar. Chorou por todos os anos perdidos entre os dois. Na adolescência e quando jovem mulher, sonhara que ele a procurava para lhes dizer que a sua morte fora um engano, que estava realmente bem. E erguia-a, num vôo, nos braços. Mas ela pagava esses breves momentos de suspensão do sofrimento com o reacordar doloroso num mundo em que ele já não se encontrava. Apesar disso, considerara esses sonhos um tesouro e pagara de bom grado o preço exorbitante quando, na manhã seguinte, era obrigada a redescobrir a sua perda e a experimentar de novo a agonia que ela lhe causava. Esses momentos-fantasmas eram tudo quanto lhe restava dele. E agora ei-lo ali — não um sonho ou um fantasma, mas carne e sangue. Ou coisa muito parecida. Chamara-a das estrelas e ela acorrera. Abraçou-o com toda a sua força. Sabia que era um truque, uma reconstrução, uma simulação, mas era impecável, sem um defeito. Segurou-o um momento pelos ombros, de braços estendidos. Era perfeito. Era como se o seu pai tivesse morrido e ido para o Céu havia tantos anos, e finalmente — por aquele caminho nada ortodoxo — ela tivesse conseguido reunir-se-lhe. Soluçou e abraçou-o de novo. Precisou de um minuto para se dominar. Se tivesse sido Ken, por exemplo, ela teria pelo menos brincado com a idéia de que outro dodecaedro — talvez uma Máquina soviética reparada — estabelecera uma carreira posterior da Terra ao centro da Galáxia. Mas semelhante possibilidade não podia ser encarada nem por um momento em relação a ele. Os seus restos apodreciam num cemitério junto de um lago. Limpou os olhos, a rir e a chorar ao mesmo tempo. — A que devo então esta aparição… à robótica ou à hipnose? — Sou um artefato ou um sonho? Podias fazer essa pergunta a respeito de tudo. — Ainda hoje, não passa uma semana em que não pense que daria tudo, tudo quanto tenho, somente para passar de novo alguns minutos com o meu pai. — Pois aqui estou — respondeu ele alegremente, de mãos levantadas e descrevendo meia volta para que ela pudesse ter a certeza de que a parte de trás do seu corpo também ali estava. Mas era tão jovem, certamente mais jovem do que ela. Tinha morrido com trinta e seis anos apenas. Talvez aquela fosse a maneira de eles acalmarem os seus temores. Se era assim, eram muito… atenciosos. Ellie conduziu o pai para junto das suas poucas coisas, a enlaçá-lo pela cintura. Ele dava a sensação, sem dúvida nenhuma, de ser suficientemente substancial. Se havia sistemas de engrenagens interligadas e circuitos integrados debaixo da sua pele estavam bem escondidos. — Então como vamos indo? — inquiriu. A pergunta era ambígua. — Quero dizer… — Eu sei. Passaram muitos anos desde que receberam a Mensagem até chegarem aqui. — Classificam pela rapidez ou pela exatidão? — Nem por uma coisa, nem por outra. — Quer dizer que ainda não completamos o exame? Ele não respondeu. — Bem, explique-me — pediu, com certa angústia. Alguns de nós levamos anos a descriptografar a Mensagem e a construir a Máquina. Não me vai dizer tudo, explicar do que se trata? — Tornaste-te uma grande curiosa — disse ele, como se fosse realmente seu pai, como se estivesse a comparar as últimas recordações que conservava dela com a sua personalidade presente e ainda incompletamente desenvolvida. Despenteou-lhe o cabelo, com um gesto afetuoso. Ela também se recordava de que ele costumava fazer isso quando era pequena. Mas como podiam eles, a trinta mil anos-luz da Terra, conhecer os gestos afetuosos do pai, no Wisconsin distante no tempo e no espaço? De súbito adivinhou: — Sonhos — disse. — A noite passada, quando estávamos todos a sonhar, vocês estavam dentro das nossas cabeças, não é verdade? Extraíram tudo quanto nós sabemos. — Só fazemos cópias. Penso que tudo quanto costumava estar na tua cabeça ainda lá está. Olha bem. Diz-me se falta alguma coisa. Sorriu e continuou: — Havia tantas coisas que os vossos programas de televisão não nos diziam! Conseguíamos avaliar o vosso nível tecnológico muito bem e mais uma quantidade de coisas a vosso respeito. Mas há muito mais na vossa espécie do que isso, coisas que com certeza não conseguiríamos aprender indiretamente. Admito que possam sentir alguma intrusão na intimidade… — Está a brincar. — … mas temos tão pouco tempo! — Quer dizer que o exame terminou? Respondemos a todas as vossas perguntas a noite passada, enquanto dormíamos? E então? Ficamos aprovados ou reprovados? — Não se trata disso. Não é como o sexto ano do liceu. Ela freqüentava o sexto ano quando ele morrera. — Não nos vejam como qualquer xerife interestelar a abater civilizações fora da lei. Vejam-nos mais como o Gabinete de Recenseamento Galáctico. Nós recolhemos informação. Sei que pensam que ninguém tem nada a aprender com vocês, porque estão tecnologicamente tão atrasados. Mas há outros méritos numa civilização. — Que méritos? — Oh, música! Bondade carinhosa. (Gosto destas palavras.) Sonhos. Os humanos são muito bons a sonhar, embora nunca pudéssemos saber isso através da sua televisão. Há culturas em toda a Galáxia que permutam sonhos. — Funcionam como um centro de intercâmbio cultural interestelar? É disso que se trata? Não se importam se alguma civilização rapace e sanguinária descobre e aperfeiçoa o vôo espacial interestelar? — Eu disse que admiro a bondade carinhosa. — Se os nazis tivessem conquistado o mundo, o nosso mundo, e depois desenvolvessem o vôo espacial interestelar, vocês não teriam intervindo? — Ficarias surpreendida se soubesses como é raro acontecer uma coisa dessas. A longo prazo, as civilizações agressivas quase sempre se auto-destroem. Está na sua natureza. Não podem evitá-lo. Num caso desses, a nossa missão seria deixá-las em paz. Certificarmo-nos de que ninguém as incomodava. Deixá-las compreender o seu destino. — Então por que não nos deixaram em paz? Não estou a protestar, note. Sinto apenas curiosidade quanto ao modo como o Gabinete de Recenseamento Galáctico funciona. A primeira coisa que captaram de nós foi aquela transmissão do Hitler. Por que estabeleceram contato? — Claro que o quadro era alarmante. Compreendemos que vocês estavam metidos num grande sarilho. Mas a música disse-nos outra coisa. Beethoven disse-nos que havia esperança. Os casos marginais são a nossa especialidade. Pensamos que lhes seria útil uma pequena ajuda. Na realidade, só podemos oferecer uma pequena ajuda. Tu compreendes. Há certas limitações impostas pela causalidade. Tinha-se acocorado, a passar as mãos pela água, e agora estava a enxugá-las nas calças. — A noite passada olhamos para dentro de vocês. De todos os Cinco. Há muita coisa lá: sentimentos, recordações, instintos, comportamento aprendido, percepções, loucura, sonhos, amores. O amor é muito importante. Vocês são uma mistura interessante. — Tudo isso numa noite de trabalho? — Estava a provocá-lo um bocadinho. — Tínhamos de nos apressar. O nosso programa é muito apertado. — Por quê, está alguma coisa prestes a… — Não. Sucede apenas que, se não engendramos uma causalidade consistente, ela se desenvolve sozinha. Então é quase sempre pior. Ellie não fez a mais pequena idéia do que ele queria dizer. — «Engendrar uma causalidade consistente.» O meu pai nunca costumava falar assim. — Costumava, com certeza. Não te lembras como ele te falava? Era um homem muito lido, e desde pequenina que ele… eu… te falei como um igual. Não te lembras? Ela lembrava-se. Lembrava-se. Pensou na mãe num lar de idosos. — Que bonito medalhão — observou ele, exatamente com aquele ar de reserva paternal que ela sempre imaginara que o pai cultivaria se tivesse vivido para assistir à sua adolescência. — Quem to deu? — Ah, isto! — exclamou, a apalpar o medalhão. — Para falar verdade, é de alguém que não conheço muito bem. Pôs a minha fé à prova. Ele… Mas você já deve saber isso tudo. Ele voltou a sorrir. — Quero saber o que pensa de nós — disse Ellie, concisamente. — O que pensa de fato. Ele não hesitou um momento sequer. — Está bem. Penso que é extraordinário que se tenham saído tão bem como saíram. Praticamente, não têm nenhuma teoria de organização social, têm sistemas econômicos espantosamente atrasados, não têm nenhuma compreensão da engrenagem da predição histórica e têm muito pouco conhecimento a respeito de vocês próprios. Considerando a rapidez com que o vosso mundo está a mudar, é surpreendente que não tenham já ido pelos ares. É por isso que não queremos dá-los já por perdidos. Vocês, humanos, possuem um certo talento para a adaptabilidade… pelo menos no curto prazo. — É esse o problema, não é? — Esse é um problema. Verifica-se que, passado algum tempo, as civilizações possuidoras apenas de perspectivas a curto prazo desaparecem. Também cumprem o seu destino. Ellie queria perguntar-lhe o que ele sentia sinceramente a respeito dos humanos. Curiosidade? Compaixão? Nenhuma espécie de sentimento, eles faziam apenas parte de um dia de trabalho? No fundo do seu coração — ou do órgão interno equivalente, fosse ele qual fosse, que possuía —, sentia a respeito dela como ela sentia a respeito de… de uma formiga? Mas não foi capaz de perguntar. Tinha demasiado medo da resposta. Tentou fazer alguma idéia, pela entonação da voz e pelas nuances do que dizia, de quem estava ali disfarçado como seu pai. Ela tivera uma quantidade imensa de experiência direta com seres humanos; os chefes de estação tinham tido menos de um dia. Não seria capaz de discernir qualquer coisa da sua verdadeira natureza sob aquela fachada amigável e informativa? Mas não, não era. No conteúdo das suas palavras, ele não era, evidentemente, o seu pai, nem fingia ser. Mas em todos os outros aspectos parecia-se espantosamente com Theodore F. Arroway, 1924-60, vendedor de ferragens, marido e pai amante. Não fora um contínuo esforço de vontade, e ela estaria toda babosa, toda sentimental com aquela, aquela… cópia. Sabia-o. Uma parte do seu ser queria perguntar-lhe como tinham corrido as coisas desde que ele fora para o Céu. Quais eram as suas opiniões acerca de Advento e Êxtase? Preparava-se alguma coisa de especial para o Milênio? Havia culturas humanas que ensinavam a existência de uma vida além da morte dos abençoados em cumes de montanhas ou em nuvens, em cavernas ou oásis, mas ela não se lembrava de nenhuma que dissesse que, se uma pessoa era muito, muito boa, ia para a praia quando morria. — Dispomos de tempo para algumas perguntas antes… do que quer que temos de fazer a seguir? — Com certeza. Uma ou duas, pelo menos. — Fale-me do vosso sistema de transporte. — Posso fazer melhor do que isso. Posso mostrar-te. Agüenta firme agora. Uma ameba de negrume escorreu do zênite, obscurecendo o Sol e o céu azul. — Grande truque — comentou ela, ofegante. Debaixo dos seus pés estava a mesma praia arenosa, na qual ela enterrou os dedos. Por cima… estava o cosmo. Encontravam-se, parecia, muito alto, sobre a Galáxia da Via Láctea, a olhar para baixo, pela sua estrutura espiralada, e a cair na sua direção a uma velocidade impossível. Ele explicou-lhe em termos práticos, utilizando a linguagem científica familiar da própria Ellie para descrever essa imensa estrutura em forma de roda de pinos. Mostrou-lhe o Braço Espiral de Órion, no qual o Sol estava, naquela época, embebido. Interiormente em relação a ele, por ordem decrescente de significado mitológico, encontravam-se o Braço de Sagitário, o Braço Norma/Scutum e o Braço de Três Kiloparsec. Apareceu uma rede de linhas retas, representando o sistema de transporte que eles tinham utilizado. Lembrava os mapas iluminados do Metro de Paris, Eda tivera razão. Cada estação, deduziu Ellie, ficava num sistema estelar com um buraco negro duplo de massa baixa. Ela sabia que os buracos negros não podiam ter resultado de colapso estelar, da evolução normal de sistemas estelares maciços, porque eram demasiado pequenos. Talvez fossem primordiais, restos do Big Bang apresados por alguma nave estelar inimaginável e rebocados para a estação que lhes fora designada. Ou talvez tivessem sido feitos a partir do nada, desde o princípio. Desejou perguntar-lhe isso, mas a excursão avançava a uma velocidade estonteante. Havia um disco de hidrogênio incandescente a rotacionar à volta do centro da Galáxia e dentro dele um anel de nuvens moleculares a correr para o exterior, na direção da periferia da Via Láctea. Ele mostrou-lhe os movimentos ordenados no conjunto de nuvens moleculares gigante Sagitário B2, que durante décadas fora um terreno de caça de moléculas orgânicas complexas preferencialmente explorado pelos seus colegas radioastrônomos na Terra. Mais perto do centro encontraram outra nuvem molecular gigante e depois a Sagitário A Ocidental, uma intensa fonte de rádio que a própria Ellie observara em Argus. E imediatamente adjacentes, no próprio centro da Galáxia, apertados num apaixonado abraço gravitacional, um par de imensos buracos negros. A massa de um deles era de cinco milhões de sóis. Rios de gás com as dimensões de sistemas solares escorriam da sua bocarra. Dois colossais — Ellie pensou, agastada, nas limitações da linguagem da Terra —, dois supermaciços buracos negros orbitam-se um ao outro no centro da Galáxia. A existência de um fora conhecida, ou dela houvera, pelo menos, fortes suspeitas. Mas dois? Não deveria isso ter-se revelado como uma deslocação de linhas espectrais Doppler? Imaginou um letreiro da parte de baixo de um deles dizendo ENTRADA e da do outro SAÍDA. Naquele momento, a entrada estava a ser utilizada; a saída encontrava-se apenas ali. E era aí que se situava aquela estação — a Grand Central Station —, em toda a segurança no exterior dos buracos negros do centro da Galáxia. Milhões de jovens estrelas vizinhas tornavam o firmamento brilhante; mas as estrelas, o gás e a poeira estavam a ser devorados pelo buraco negro de entrada. — Vai ter a qualquer lado, não é verdade? — perguntou Ellie. — Claro. — Pode dizer-me onde? — Com certeza. Todo este material vai parar a Cygnus A. Cygnus A era uma coisa acerca da qual ela estava informada. Tirando apenas o resto de uma supernova próxima, em Cassiopéia, era a fonte de rádio mais brilhante do firmamento da Terra. Ela calculara que Cygnus A produzia num segundo mais energia do que o Sol em quarenta mil anos. A fonte de rádio encontrava-se a seiscentos milhões de anos-luz de distância, muito para além da Via Láctea, no seu reino das galáxias. Como acontecia com muitas fontes de rádio extragalácticas, dois enormes jatos de gás, viajando separados quase à velocidade da luz, faziam uma teia complexa de frentes de choque Rankine-Hugoniot com o rarefeito gás intergaláctico — e produziam, no processo, um farol de rádio que brilhava vivamente sobre a maior parte do universo. Toda a matéria daquela enorme estrutura, com quinhentos mil anos-luz de diâmetro, saía de um pequeno e quase insignificante ponto no espaço, exatamente a meio caminho entre os jatos. — Estão a jazer a Cygnus A? Lembrou-se vagamente de uma noite estival no Michigan, quando era rapariga. Receara cair no céu. — Oh, não somos apenas nós! Trata-se de um… projeto de cooperação de muitas galáxias. É isso o que fazemos principalmente: construção. Só um… só uns quantos de nós estamos ligados a civilizações emergentes. Em cada pausa ela sentira uma espécie de zunido na cabeça, aproximadamente na área do lobo parietal esquerdo. — Há projetos de cooperação entre galáxias? — perguntou. — Quantidades de galáxias, cada uma com uma espécie de administração central? Com centenas de milhares de milhões de estrelas em cada galáxia? E depois essas administrações cooperam umas com as outras? Para lançar milhões de sóis em Centauro… desculpe, em Cygnus A? Oh… Perdoe, estou completamente atordoada com a escala. Por que fariam tudo isto? Para quê? — Estás a pensar no universo como sendo um deserto. Há milhares de milhões de anos que não o é. Penso nele mais como… cultivado. Novo zunido. — Mas para quê? Que há lá para cultivar? — O problema básico é facilmente determinado. Não te deixes assustar pela escala. No fim de contas, és uma astrônoma. O problema consiste no fato de o universo estar a expandir-se e não existir nele matéria suficiente para deter a expansão. Ao fim de algum tempo, nada de novas galáxias, nada de novas estrelas, nada de novos planetas, nada de formas de vida recém-surgidas — apenas a mesma velharia de sempre. Está tudo a ficar caduco. tornar-se-á chato. Por isso, estamos a experimentar em Cygnus A a tecnologia para fazer algo novo. Poderá chamar-se-lhe uma experiência de renovação urbana. Mas o nosso programa experimental não se resume a isso. Um pouco mais para diante talvez queiramos isolar uma parte do universo e evitar que o espaço vá ficando cada vez mais vazio à medida que as eternidades passem. Claro que a maneira de o fazer é aumentando a densidade da matéria local. É trabalho bom e honesto. Como gerir uma loja de ferragens no Wisconsin. Se a Cygnus A se encontrava a seiscentos milhões de anos-luz de distância, então os astrônomos da Terra — ou, pela mesma ordem de idéias, de qualquer outro ponto da Via Láctea — estavam a vê-la como era havia seiscentos milhões de anos. Mas ela sabia que, na Terra, seiscentos milhões de anos atrás não existia praticamente, nem mesmo nos oceanos, vida suficientemente grande para se lobrigar. Eles eram velhos. Havia seiscentos milhões de anos, numa praia como aquela… Só que sem caranguejos, sem gaivotas, sem palmeiras. Tentou imaginar uma planta microscópica dada à costa, a tentar firmar-se debilmente logo acima da linha da água, enquanto aqueles seres estavam ocupados com galactogênese experimental e engenharia cósmica introdutória. — Têm estado a lançar matéria na Cygnus A nos últimos seiscentos milhões de anos? — Bem, o que vocês detectaram através da radioastronomia foram apenas algumas das nossas experiências de exeqüibilidade iniciais. Agora estamos muito mais adiantados. E em devido tempo, dali a mais umas centenas de milhões de anos, imaginou Ellie, radioastrônomos da Terra — se os houvesse — detectariam um processo substancial na reconstrução do universo à volta da Cygnus A. Preparou-se para novas revelações e prometeu a si mesma que não permitiria que a intimidassem. Havia uma hierarquia de seres numa escala que não imaginara. Mas a Terra tinha um lugar, uma importância nessa hierarquia; eles não se teriam dado a todo aquele trabalho para nada. O negrume recuou vertiginosamente para o zênite e desapareceu; Sol e céu azul voltaram. O cenário era o mesmo: rebentação, areia, palmeiras, porta de Magritte, microcâmara, fronde e o seu… pai. — Aquelas nuvens e aqueles anéis interestelares em movimento perto do centro da Galáxia… Não são devidos a explosões periódicas nestas imediações? Não é perigoso situar a estação aqui? — Episódicas, e não periódicas. Só acontece em pequena escala, nada que se pareça com o que estamos a fazer em Cygnus A. E é controlável. Sabemos quando vai acontecer e geralmente limitamo-nos a encolher-nos para nos protegermos. Se é verdadeiramente perigoso, então transferimos temporariamente a estação para qualquer outro lado. Tudo isto é rotina, compreendes? — Claro. Rotina. Foram vocês que construíram tudo? Refiro-me aos caminhos subterrâneos. Vocês e essoutros… engenheiros de outras galáxias? — Oh, não! Nós não construímos nenhuma dessas coisas. — Escapou-me alguma coisa. Ajude-me a compreender. — Parece acontecer o mesmo em toda a parte. No nosso caso, emergimos há muito tempo em muitos mundos diferentes da Via Láctea. Os primeiros dentre nós criaram o vôo espacial interestelar e eventualmente descobriram por acaso uma das estações de trânsito. Claro que não sabíamos o que era. Nem sequer tivemos a certeza se era artificial enquanto um de nós não teve a coragem suficiente para descer por ali abaixo. — Quem são os «nós»? Refere-se aos antepassados da sua… raça, da sua espécie? — Não, não. Somos muitas espécies, de muitos mundos. Eventualmente descobrimos um grande número de caminhos subterrâneos — de várias idades, com vários estilos de ornamentação e todos abandonados. A maioria encontrava-se ainda em bom estado de funcionamento. Nós limitamo-nos a fazer algumas reparações e algumas melhorias. — Não encontraram mais nenhuns artefatos? Nenhumas cidades mortas? Nenhuns registros do que aconteceu? Não restavam nenhuns construtores de caminhos subterrâneos? Ele abanou a cabeça. — Nenhuns planetas industrializados abandonados? Repetiu o gesto. — Houve uma civilização à escala galáctica que surgiu e desapareceu sem deixar nenhum vestígio, a não ser as estações? — É mais ou menos isso. E aconteceu o mesmo noutras galáxias. Há milhares de milhões de anos foram todos para qualquer outro lado. Não fazemos a mínima idéia para onde. — Mas para onde poderiam ter ido? Ele abanou a cabeça pela terceira vez, mas agora muito devagar. — Por conseqüência, vocês não são… — Não, nós somos apenas zeladores. Talvez um dia eles voltem. — Está bem, só mais uma — pediu ela, de indicador espetado diante do nariz, como provavelmente fora seu hábito aos dois anos de idade. — Só mais uma pergunta. — Seja — acedeu ele, tolerante. — Mas restam-nos poucos minutos. Ela olhou de novo para a porta e reprimiu um estremecimento ao ver um pequeno caranguejo quase transparente passar de lado. — Quero saber a respeito dos vossos mitos, das vossas religiões. Que os enche de respeitoso temor? Ou os que fazem o numinoso são incapazes de sentir isso? — Vocês também fazem o numinoso. Não, eu sei o que estás a perguntar. certamente que o sentimos. Compreendes naturalmente que me é difícil comunicar-te parte disto. Mas vou dar-te um exemplo do que pretendes saber. Não digo que o seja exatamente, mas dar-te-á um… Fez uma pausa momentânea e ela sentiu de novo um zunido, desta vez no lobo occipital esquerdo. Considerou a possibilidade de ele estar a rebuscar no meio dos neurônios dela. Ter-lhe-ia escapado alguma coisa na noite anterior? Se assim fora, sentia-se satisfeita. Significava que eles não eram perfeitos. — … sabor do nosso numinoso. Relaciona-se com pi, a razão entre o perímetro de uma circunferência e o seu diâmetro. Claro que tu sabes isso bem, e também sabes que nunca se pode chegar ao fim de pi. Não existe nenhuma criatura no universo, por muito inteligente que seja, que consiga calcular pi até ao último dígito — porque não existe nenhum último dígito, mas sim, apenas, um número infinito de dígitos. Os vossos matemáticos fizeram um esforço para o calcular até ao… Ela sentiu de novo o zunido. — … nenhum de vocês parece saber… digamos até ao centésimo nono lugar. Não ficarás surpreendida se te disser que outros matemáticos foram mais longe. Bem, eventualmente — suponhamos que no espaço da décima para a vigésima potência — acontece qualquer coisa. Os dígitos que variam fortuitamente desaparecem e durante um espaço de tempo incrivelmente longo só há uns e zeros. Distraidamente, ia desenhando um círculo na areia com o dedo grande do pé. Ela fez uma pausa com a duração de um batimento cardíaco antes de responder. — E os zeros e os uns param, finalmente? Regressam a uma seqüência fortuita de dígitos? — Apressou-se a acrescentar, ao notar um leve sinal de encorajamento da parte dele: — E o número de zeros e uns? É um produto de números primos? — Sim, e onze deles. — Está a dizer-me que há uma mensagem em onze dimensões profundamente oculta no número pi? Alguém no universo comunica por… matemática? Mas… ajude-me, está a ser-me realmente difícil compreendê-lo. A matemática não é arbitrária. Quero dizer, pi tem de ter o mesmo valor em todo o lado. Como se pode ocultar uma mensagem dentro de pi? Está embutida no tecido do universo? — Exatamente. Ela fitou-o, de olhos muito abertos. — É ainda melhor do que isso — prosseguiu ele. — Presumamos que só na aritmética de base dez aparece a seqüência de zeros e uns, embora se possa perceber que se passa algo de estranho em qualquer outra aritmética. Presumamos também que os seres que fizeram esta descoberta tinham dez dedos. Estás a ver a impressão que dá? É como se pi tenha estado à espera, há milhares de milhões de anos, de que apareçam matemáticos com dez dedos e computadores rápidos. Compreendes, a Mensagem foi a modos que dirigida a nós. — Mas isso é apenas uma metáfora, não é verdade? Não se trata realmente de pi e do décimo para o vigésimo lugar, pois não? Vocês não têm, de fato, dez dedos. — Não, de fato. — Sorriu-lhe de novo. — Pelo amor de Deus, que diz a Mensagem? Ele ficou um momento calado, levantou um indicador e depois apontou para a porta. Um pequeno grupo de pessoas saía excitadamente dela. Aparentavam um estado de espírito jovial, como se se tratasse da partida para um piquenique havia muito adiado. Eda acompanhava uma espantosa e jovem mulher de saia e blusa vivamente coloridas e com o cabelo cuidadosamente coberto pelo arrendado gele preferido pelas mulheres muçulmanas de Yorubaland; estava visivelmente transbordante de alegria por vê-la. Graças a fotografias que ele mostrara, Ellie reconheceu-a como sua mulher. Sukhavati dava a mão a um jovem de ar determinado e olhos grandes e sentimentais; Ellie presumiu que se tratava de Surindar Ghosh, o havia muito falecido estudante de Medicina e marido de Devi. Xi conversava animadamente com um homem baixo, vigoroso e de porte autoritário, que tinha bigode ralo e caído dos lados e envergava uma cabaia de rico brocado, suntuosamente adornada com contas. Ellie imaginou-o a superintender pessoalmente na construção do modelo funerário do Reino Médio, a gritar instruções aos que deitavam o mercúrio. Vaygay apresentou uma rapariga de onze ou doze anos, cujas tranças louras balançavam à cadência dos seus passos: — A minha neta, Nina… mais ou menos. A minha grã-duquesa. Devia tê-las apresentado antes, em Moscovo. Ellie abraçou a rapariga. Sentia-se grata por Vaygay não ter aparecido com Meera, a ecdisiasta. Observou a ternura do colega para com Nina e achou que gostava mais dele do que nunca. Durante todos os anos em que o conhecera, ele mantivera bem escondido aquele lugar secreto do seu coração. — Não tenho sido um bom pai para a mãe dela — confessou Vaygay. — Ultimamente, quase nunca vejo Nina. Ellie olhou em seu redor. Os chefes de estação tinham arranjado para cada um dos Cinco o que só podia ser descrito como os seus amores mais profundos. Talvez o tivessem feito apenas para tornar menos difíceis as barreiras de comunicação com outra espécie espantosamente diferente. Sentia-se satisfeita por nenhum deles estar a tagarelar agradavelmente com uma cópia exata de si próprio. «E se fosse possível fazer aquilo na Terra?», perguntou-se. Se, apesar de todo o nosso fingimento e dissimulação, fosse necessário aparecer em público com a pessoa que amássemos acima de todas as outras? Supondo que isso era um requisito prévio para discorrer socialmente na Terra. Mudaria tudo. Imaginou uma falange de membros de um sexo a rodear um membro solitário do outro. Ou cadeias de pessoas. Círculos. As letras H ou Q. Indolentes figuras de 8s. Podiam-se monitorizar afetos profundos com um relance de olhos, bastando apenas observar a geometria — uma espécie de relatividade geral aplicada à psicologia social. As dificuldades práticas de tal método seriam consideráveis, mas ninguém conseguiria mentir a respeito do amor. Os zeladores estavam com pressa, cortês, mas determinadamente com pressa. Não havia muito tempo para falar. A entrada para a câmara de vácuo do dodecaedro estava de novo visível, mais ou menos no mesmo lugar onde estivera quando tinham chegado. Por simetria, ou talvez devido a alguma lei de conservação interdimensional, a porta de Magritte desaparecera. Apresentaram toda a gente uns aos outros. Ellie sentiu-se idiota, em mais de um aspecto, ao explicar em inglês ao imperador Qin quem o pai era. Mas Xi traduziu obsequiosamente, e todos eles apertaram as mãos, com solenidade, como se aquele fosse o seu primeiro encontro, talvez num churrasco nos subúrbios. A mulher de Eda era uma grande beldade e Surindar Ghosh observava-a com uma atenção mais do que casual. Devi não parecia importar-se; talvez se sentisse meramente satisfeita com a exatidão minuciosa do simulacro. — Aonde foi quando transpôs a porta? — perguntou-lhe Ellie, docemente. — Maidenhall Way, 416 — respondeu Devi. A outra olhou-a sem compreender. — Londres, 1973. Com Surindar. Inclinou a cabeça na direção dele e acrescentou: — Antes da sua morte. Ellie perguntou a si mesma o que teria encontrado se tivesse transposto a porta da praia. Talvez Wisconsin no fim da década de cinqüenta. Ela não aparecera na hora prevista e, por isso, ele viera ao seu encontro. Fizera isso mais de uma vez no Wisconsin. Também tinham falado a Eda de uma mensagem profundamente inserida no interior de um número transcendente, mas na sua história não se tratara de pi nem de e, a base dos logaritmos naturais, mas sim de uma categoria de números de que ela nunca ouvira falar. Com uma infinidade de números transcendentes, nunca saberiam ao certo que número estudar quando regressassem à Terra. — Senti uma vontade imensa de ficar e trabalhar no caso — confessou ele a Ellie, brandamente —, e tive a percepção de que eles precisavam de ajuda… de um modo qualquer de pensar na decifração que lhes não tivesse ocorrido. Mas creio que se trata de uma coisa muito pessoal para eles. Não querem compartilhá-la com outros. Aliás, encarando a realidade, acho que não somos suficientemente inteligentes para lhes darmos uma ajuda. Não tinham eles decifrado a mensagem em pi? Os chefes de estação, os zeladores, os arquitetos de novas galáxias, não tinham decifrado uma mensagem que estivera debaixo da sua influência durante uma ou duas rotações galácticas? A mensagem seria assim tão difícil, ou estariam eles a…? — São horas de ir para casa — disse-lhe o pai. Foi dilacerante. Ela não queria ir. Tentou fitar a fronde de palmeira. Tentou fazer mais perguntas. — Que quer dizer com «ir para casa»? Quer dizer que vamos emergir algures no sistema solar? Como desceremos para a Terra? — Verás — respondeu-lhe ele. — Será interessante. Passou-lhe o braço pela cintura e conduziu-a na direção da porta aberta da câmara de vácuo. Era como na hora de ir para a cama. Podia ser engraçada, podia fazer perguntas inteligentes, e talvez eles a deixassem ficar levantada até um bocadinho mais tarde. Costumava dar resultado, pelo menos um pouco. — A Terra agora está ligada com isto cá em cima, não é verdade? Em ambos os sentidos. Se nós podemos voltar para casa, vocês podem descer até nós num ápice. Sabe, isso deixa-me tremendamente nervosa. Por que não se limitam a cortar a ligação? Comecemos por aí. — Lamento, Presh — respondeu ele, como se ela já tivesse ultrapassado descaradamente a hora de se deitar: as oito horas. Lamentaria ele isso, ou o fato de não estarem preparados para desatarraxar o túnel? — Durante algum tempo, pelo menos, o caminho estará aberto apenas para trânsito de entrada. Mas não esperamos usá-lo. Ela gostaria que a Terra estivesse isolada de Vega. Preferia uma margem de cinqüenta e dois anos entre comportamento inaceitável na Terra e a chegada de uma expedição punitiva. A ligação pelo buraco negro era inquietante. Eles podiam chegar quase instantaneamente, talvez apenas em Hokkaido, ou talvez em qualquer ponto da Terra. Era uma transição para aquilo a que Hadden chamara micro-intervenção. Fossem quais fossem as garantias que eles dessem, agora observar-nos-iam mais amiúde. Tinham-se acabado as espreitadelas para uma olhadela, a fim de ver como as coisas iam, com intervalos de alguns milhões de anos. Aprofundou mais o seu mal-estar. Como as circunstâncias se tinham tornado… teológicas. Ali estavam seres que viviam no céu, seres enormemente sabedores e poderosos, seres preocupados com a nossa sobrevivência, seres com um conjunto de perspectivas quanto ao modo como deveríamos comportar-nos. Repudiavam semelhante papel, mas era evidente que podiam aplicar recompensa e castigo, vida e morte, aos insignificantes habitantes da Terra. Em que é isto diferente, perguntou-se, da antiga religião? A resposta acudiu-lhe imediatamente ao espírito: era uma questão de prova. Nas suas videotapes, nos dados que os outros tinham adquirido, haveria evidência real da existência da estação, do que lá se passava, do sistema de trânsito dos buracos negros. Haveria cinco histórias independentes e mutuamente corroborativas, apoiadas por provas físicas convincentes. Isto era um fato, não música de ouvido e mistificação. Voltou-se para ele e deixou cair a fronde. Em silêncio, ele baixou-se e devolveu-lha. — Foi muito generoso da sua parte responder a todas as minhas perguntas. Posso responder a algumas que queira fazer? — Obrigado. Respondeste a todas as nossas perguntas a noite passada. — Acabou-se? Nenhuns mandamentos? Nenhumas instruções para os provincianos?. — As coisas não funcionam assim, Presh. Agora és crescida. Estás entregue a ti própria. Ele inclinou a cabeça, envolveu-a naquele seu sorriso, e ela lançou-se-lhe nos braços, com os olhos de novo cheios de lágrimas. Foi um abraço demorado. Por fim sentiu-o a soltar-lhe carinhosamente os braços. Eram horas de ir para a cama. Pensou levantar o indicador e pedir-lhe ainda mais um minuto. Mas não quis decepcioná-lo. — Adeus, Presh. Dá saudades à tua mãe. — Cuide de si — respondeu em voz fraca. Lançou um último olhar à praia do centro da Galáxia. Um casal de aves marinhas, talvez procelárias, estava suspenso numa coluna de ar em ascensão. Mantinham-se no ar quase sem um bater de asas. Mesmo à entrada da câmara de vácuo voltou-se e chamou-o. — Que diz a vossa Mensagem? O um em pi? — Não sabemos — respondeu ele, um pouco tristemente, e deu alguns passos na sua direção. — Talvez seja uma espécie de acidente estatístico. Ainda estamos a estudar o assunto. A brisa tornou-se mais forte e despenteou-a de novo. — Bem, dêem-nos uma apitadela quando descobrirem frisou. CAPÍTULO XXI Causalidade Como moscas para rapazes traquinas somos nós para os deuses Eles matam-nos por divertimento.      WILIAM SHAKESPEARE. King Lear, IV, I, 36 Quem é todo-poderoso deveria temer tudo.      PIERRE CORNEILL. Cinema (1640), ato IV, cena II Estavam loucos de alegria por voltar. Gritavam de contentamento, tontos de excitação. Passaram por cima das cadeiras. Abraçaram-se e deram palmadas nas costas uns dos outros. Estavam todos à beira das lágrimas. Tinham conseguido — mas não apenas isso: tinham regressado, tinham passado em segurança por todos os túneis. Bruscamente, no meio de uma saraivada de estática, o rádio começou a relatar o estado da Máquina. Todos os três benzels estavam a desacelerar. A carga elétrica acumulada estava a dissipar-se. Pelo comunicado, tornava-se evidente que o Projeto não fazia idéia nenhuma do que acontecera. Ellie perguntou a si mesma quanto tempo teria decorrido. Olhou para o relógio de pulso. Um dia, pelo menos, o que os colocava já no ano 2000. Muito apropriado. «Oh, só quero ver a cara deles quando ouvirem o que temos para lhes dizer!» pensou. Num gesto tranqüilizador, deu uma palmadinha no compartimento onde estavam acondicionadas as dúzias de videomicrocassetes. Como o mundo mudaria quando aquelas películas fossem reveladas! O espaço entre e à volta dos benzels fora repressurizado. As portas da câmara de vácuo estavam a abrir-se. Agora perguntavam-lhes, via rádio, como se sentiam. — Estamos ótimos! — gritou ela pelo seu microfone. — Deixem-nos sair. Nem acreditarão no que nos aconteceu. Os Cinco emergiram da câmara de vácuo, felizes, a saudar efusivamente os camaradas que os tinham ajudado a construir e a pôr a Máquina em funcionamento. Os técnicos japoneses saudaram-nos. Funcionários do Projeto avançaram direitos a eles. Devi disse tranqüilamente a Ellie: — Tanto quanto me apercebo, toda a gente usa exatamente a mesma roupa que usava ontem. Repare naquela horrível gravata amarela do Peter Valerian. — O, ele usa constantemente aquele trapo velho! — replicou Ellie. — Foi a mulher que lha deu. — Os relógios marcavam quinze horas e vinte minutos. A ativação ocorrera cerca das três horas da tarde anterior. Portanto, tinham estado ausentes apenas pouco mais de vinte e quatro horas… — Que dia é hoje? — perguntou, e eles olharam-na, sem compreender. Havia qualquer coisa que não batia certo. — Peter, pelo amor de Deus, que dia é hoje? — Que quer dizer? — perguntou Valerian, por sua vez. — É, hoje! Sexta-feira, 31 de Dezembro de 1999. Véspera de Ano Novo. É a isso que se refere? Você está bem, Ellie? Vaygay pedia a Archangelsky que o deixasse começar pelo princípio, mas só depois de lhe devolverem os seus cigarros. Funcionários ligados ao Projeto e representantes do Consórcio da Máquina convergiam à volta deles. Ellie viu Der Heer abrir caminho através do ajuntamento, na sua direção. — Da vossa perspectiva, que aconteceu? — perguntou ela quando, finalmente, ele ficou a uma distância que permitia conversarem. — Nada. O sistema de vácuo funcionou, os benzels giraram, acumularam uma grande carga elétrica, atingiram a velocidade prescrita e depois inverteu-se tudo. — Que queres dizer com esse «inverteu-se tudo»? — Os benzels perderam velocidade e a carga elétrica dissipou-se. O sistema foi repressurizado, os benzels pararam e vocês todos saíram. Demorou tudo aí uns vinte minutos e não conseguimos falar com vocês enquanto os benzels estiveram a girar. Experimentaram alguma coisa? Ela riu-se. — Ken, meu rapaz, tenho uma história para te contar. Houve uma festa para o pessoal do Projeto celebrar a ativação da Máquina e o importante Ano Novo. Ellie e os seus companheiros de viagem não estiveram presentes. Os programas de televisão estavam cheios de celebrações, paradas, exposições, retrospectivas, prognósticos e discursos otimistas de dirigentes nacionais. Ela ouviu vagamente as observações do abade Utsumi, beatífico como sempre. Mas não podia perder tempo. A Diretoria do Projeto chegara rapidamente à conclusão, a partir dos fragmentos das suas aventuras, que os Cinco tinham tido oportunidade de contar, de que qualquer coisa correra mal. Viram-se, por isso, levados apressadamente do meio das multidões agitadas de funcionários governamentais e do Consórcio para um interrogatório preliminar. Considerava-se prudente, explicaram funcionários do Projeto, que cada um dos Cinco fosse interrogado separadamente. Der Heer e Valerian orientaram o interrogatório de Ellie numa pequena sala de reuniões. Estavam presentes outros funcionários do Projeto, incluindo o antigo aluno de Vaygay, Anatoly Goldman. Ela deduziu que Bobby Bui, que falava russo, acompanhava os americanos durante o interrogatório de Vaygay. Escutavam-na cortesmente e de vez em quando Peter mostrava-se encorajador. Mas tinham dificuldades em acompanhar a seqüência dos acontecimentos. De certo modo, muito do que ela relatava preocupava-os. O seu entusiasmo não era contagioso. Era-lhes difícil aceitar que o dodecaedro estivera ausente vinte minutos — quanto mais um dia! — , pois o arsenal de instrumentos exteriores aos benzels filmara e gravara o acontecimento e não revelara nada de extraordinário. Tudo quanto acontecera, explicou Valerian, fora os benzels atingirem a velocidade prescrita, vários instrumentos de utilidade desconhecida apresentarem movimento no equivalente às suas agulhas, os benzels terem perdido velocidade e parado, e os Cinco terem saído num estado de grande excitação. Ele não disse exatamente a «tartamudear disparates», mas ela adivinhou a sua inquietação. Embora a tratassem com deferência, Ellie sabia o que estavam a pensar: a única função da Máquina fora produzir uma ilusão memorável em vinte minutos, ou — possivelmente — dar com os Cinco em malucos. Ela apresentou-lhes as videomicrocassetes, cada uma cautelosamente rotulada: «Sistema Anelar de Vega» por exemplo, ou «Instalação de Rádio(?) de Vega», «Sistema Quíntuplo», «Paisagem Estelar do Centro Galáctico» e uma com a inscrição de «Praia»: Introduziu-as uma após outra no modo «transmitir». Não continham nada. As cassetes estavam em branco. Ela não conseguia compreender o que correra mal. Aprendera com todo o cuidado a maneira de trabalhar com o sistema de videomicrocâmara e utilizara-o com êxito em experiências antes da ativação da Máquina. Até efetuara uma verificação do comprimento de película utilizado depois de terem deixado o sistema de Vega. Ficou ainda mais arrasada quando, posteriormente, lhe disseram que os instrumentos levados pelos outros também tinham falhado, não se sabia como. Peter Valerian queria acreditar nela; Der Heer também. Mas era-lhes difícil, mesmo com a melhor boa vontade do mundo. A história que os Cinco tinham trazido era um pouco… bem, inesperada — além de totalmente desprovida de provas físicas. Para mais, não houvera tempo suficiente para tudo aquilo, eles tinham estado fora de vista apenas vinte minutos. Não fora aquela a recepção que ela esperara. Mas tinha confiança em que tudo acabaria por se explicar por si mesmo. De momento contentava-se com reviver mentalmente a experiência e tomar alguns apontamentos pormenorizados. Queria ter a certeza de que não se esqueceria de nada. Embora avançasse da Kamchatka uma frente de ar extremamente frio, o tempo continuava a estar mais quente do que era próprio da estação quando, ao fim do dia de Ano Bom, chegou ao Aeroporto Internacional de Sapporo um número não previsto de aviões. O novo secretário da Defesa americano, Michael Kitz, e uma equipe de especialistas apressadamente constituída, chegaram num avião com a denominação «Estados Unidos da América». A sua presença só foi confirmada por Washington quando o caso estava prestes a ser divulgado em Hokkaido. O conciso comunicado para a imprensa assinalava que a visita era de rotina, que não havia nenhuma crise, nenhum perigo, e que não foi recebida nenhuma informação extraordinária na Instalação de Integração de Sistemas da Máquina, a nordeste de Sapporo. Um Tu-120 viera durante a noite de Moscovo, transportando, entre outros, Stefan Baruda e Timofei Gotsridze. Claro que nenhum dos grupos se sentia encantado por passar o feriado daquele Ano Bom longe da sua família. Mas o tempo em Hokkaido constituiu uma surpresa agradável; estava tão ameno que as esculturas de Sapporo se derretiam e o dodecaedro de gelo se transformara num glaciar quase informe, com água a pingar de superfícies arredondadas que tinham sido as arestas das superfícies pentagonais. Dois dias depois desencadeou-se uma tempestade invernal tão violenta que todo o trânsito para as instalações da Máquina foi interrompido, até mesmo o de veículos de quatro rodas. Algumas ligações de rádio e todas as de televisão foram cortadas; aparentemente a tempestade derrubara uma torre de relais de microondas. Durante a maior parte dos novos interrogatórios, a única comunicação com o mundo exterior fazia-se pelo telefone. E poderia concebivelmente efetuar-se, pensou Ellie, pelo dodecaedro. Sentia-se tentada a introduzir-se secretamente a bordo e a fazer rotacionar os benzels. Agradava-lhe imaginar aquela fantasia. Mas, na verdade, não havia nenhuma maneira de saber se a Máquina voltaria alguma vez a funcionar, pelo menos deste lado do túnel. Ele dissera que não voltaria. Permitiu-se pensar novamente na praia. E nele. Fosse o que fosse que viesse a acontecer, uma ferida profunda existente dentro dela estava a sarar. Sentia o tecido cicatricial a formar-se. Fora a psicoterapia mais cara da história do mundo. E isso era dizer muito, pensou. Xi e Sukhavati foram interrogados por representantes dos seus respectivos países. Embora a Nigéria não tivesse desempenhado nenhum papel significativo na aquisição da Mensagem ou na construção da Máquina, Eda aquiesceu sem hesitar a ser demoradamente entrevistado por funcionários nigerianos. Mas tudo isso foi superficial, comparado com os interrogatórios a que foram submetidos pelo pessoal do Projeto. Vaygay e Ellie foram ainda mais minuciosa e profundamente interrogados pelas equipes de alto nível vindas da União Soviética e dos Estados Unidos para esse fim específico. Ao princípio, os interrogatórios americano e soviético excluíam estrangeiros, mas, depois de protestos apresentados através do Consórcio Mundial da Máquina, tanto os Estados Unidos como a União Soviética cederam e as sessões voltaram a internacionalizar-se. Kitz dirigia o interrogatório de Ellie e, atendendo ao pouco tempo de que dispusera, apresentava-se surpreendentemente bem preparado para tal missão. Valerian e Der Heer diziam ocasionalmente uma palavra a favor dela e de vez em quando faziam uma pergunta penetrante. Mas quem dirigia o espetáculo era Kitz. Disse-lhe que estava a abordar a história dela cética, mas construtivamente, no que julgava ser a melhor tradição científica. Confiava em que não confundisse a franqueza das suas perguntas com alguma animosidade pessoal. Ela merecia-lhe o mais elevado respeito. Ele, pelo seu lado, não permitiria que a sua capacidade de julgamento fosse perturbada pelo ato de ter sido contra o Projeto da Máquina desde o princípio. Ellie resolveu deixar passar, sem discutir, uma afirmação enganadora tão patética e começou a fazer o seu relato. Ao princípio, ele escutou-a atentamente, fez ocasionais perguntas de pormenor e pediu desculpa quando a interrompia. No segundo dia, porém, já não se notavam tais cortesias. — … portanto, o nigeriano foi visitado pela mulher, a indiana pelo defunto marido, o russo pela neta engraçada, o chinês por um senhor da guerra mongol qualquer… — Qin não era mongol… — … e você, com mil raios, você foi visitada pelo seu querido e falecido pai, que lhe disse que ele e os amigos tinham andado atarefados a reconstruir o universo, com mil raios! «Padre Nosso que estais no Céu…»? Isso é religião pura. Isso é antropologia cultural pura. Isso é Sigmund Freud puro. Não se apercebe disso? Não só afirma que o seu pai regressou dos mortos, como espera, de fato, que nós acreditemos que ele fez o universo… — Está a deformar o que… — Tire o cavalo da chuva, Arroway. Não insulte a nossa inteligência. Não nos apresenta um resquício de prova e espera que nós acreditemos na maior história da carochinha de todos os tempos? Não é assim tão parva. Você é uma senhora inteligente. Como foi capaz de imaginar que se safaria com uma dessas? Ela protestou. Valerian também protestou. Aquele gênero de interrogatório, declarou, era uma perda de tempo. Naquele momento, a Máquina estava a ser submetida a testes físicos delicados. Era assim que a validade da história contada por ela podia ser verificada. Kitz concordou que a prova física seria importante. Mas a natureza do relato da Arroway, argumentou, era revelador, era uma maneira de compreender o que realmente acontecera. — O encontro com o seu pai no Céu e tudo o mais, doutora Arroway, é revelador, porque você foi criada na cultura judaico-cristã. É essencialmente a única dos Cinco dessa cultura e foi a única que encontrou o seu pai. A sua história é demasiado apropriada. Não é suficientemente imaginativa. Aquilo era pior do que ela julgara possível. Experimentou um momento de pânico epistemológico — como quando não encontramos o carro onde o deixamos estacionado, ou a porta que fechamos à chave à noite está aberta de manhã. — Pensa que inventamos tudo isto? — Bem, vou contar-lhe uma coisa, doutora Arroway. Quando era muito novo, trabalhei no Gabinete do Promotor de Justiça de Cook Country. Quando pensavam pronunciar alguém, faziam três perguntas. — Foi-as contando pelos dedos: — Tivera a oportunidade? Tivera os meios? Tivera o motivo? — Para fazer o quê? Ele olhou-a com desdém. — Mas os nossos relógios mostravam que tínhamos estado ausentes mais de um dia — protestou ela. — Não sei como pude ser tão estúpido! — exclamou Kitz, e deu uma palmada na testa. — Demoliu o meu argumento. Esquecera-me de que é impossível adiantar o relógio um dia! — Mas isso implicaria uma conspiração. Pensa que Xi mentiu? Pensa que Eda mentiu? Pensa… — O que penso é que devemos passar para uma coisa mais importante. Sabe, Peter — Kitz voltou-se para Valerian —, estou convencido de que você tem razão. Estará aqui amanhã de manhã um primeiro rascunho do Relatório da Verificação dos Materiais. Não percamos mais tempo com… histórias. A reunião fica interrompida até essa altura. Der Heer não dissera uma palavra durante toda a sessão da tarde. Dirigiu-lhe um sorriso hesitante, e ela não pôde deixar de o comparar com o do pai. Às vezes, a expressão de Ken parecia instigá-la, implorar-lhe. Mas o quê ou o quê, não fazia idéia; talvez a mudar de história. Ele lembrava-se das recordações de infância de Ellie e sabia como chorara o pai. Era evidente que considerava a possibilidade de ela ter endoidecido. Pela mesma ordem de idéias, pensou Ellie, considerava igualmente a possibilidade de os outros também terem endoidecido. Histeria coletiva. Alucinação compartilhada. Folie à ánq. — Pronto, aqui está ele — disse Kitz. O relatório tinha cerca de um centímetro de espessura e ele deixou-o cair em cima da mesa, dando origem a que se espalhassem alguns lápis. — A senhora quererá lê-lo, doutora Arroway, mas eu posso fazer-lhe um sumário rápido dos resultados. Está bem? Ela assentiu, com uma inclinação de cabeça. Ouvira, através do «diz-se que…» que o relatório era muitíssimo favorável ao que os Cinco tinham contado. Esperava que viesse pôr ponto final àquele disparate. — Aparentemente — Kitz imprimiu grande ênfase à palavra —, o dodecaedro esteve exposto a um ambiente muito diferente do dos benzels e das estruturas de apoio. Esteve aparentemente sujeito a imensas forças de tensão e compressivas. É um milagre o fato de a coisa não ter sido feita em bocados. É igualmente um milagre que você e os outros não tenham sido do mesmo modo feitos em bocados. Além disso, viu aparentemente um ambiente de intensa radiação — há radiatividade induzida de nível baixo, rastos de raios cósmicos, etc. É outro milagre o fato de terem sobrevivido à radiação. Mais nada foi acrescentado ou retirado. Não há nenhum sinal de erosão ou atrito nos vértices laterais que a senhora alega terem embatido Freqüentemente nas paredes dos túneis. Não existe sequer qualquer entalhamento, como deveria haver se o engenho tivesse entrado na atmosfera terrestre à velocidade elevada. — E então isso não confirma o que nós contamos? Pense, Michael. Forças de tensão e compressivas — correntes de forças — são exatamente o que devemos esperar se caímos por um buraco negro clássico. Há pelo menos cinqüenta anos que se sabe isso. Ignoro por que motivo não o sentimos, mas talvez o dodecaedro nos tenha protegido de qualquer maneira. E elevadas doses de radiação do interior do buraco negro e no ambiente do centro galáctico, uma fonte conhecida de raios gama. Há evidência independente de buracos negros e há evidência independente de um centro galáctico. Nós não inventamos essas coisas. Não compreendo a ausência de atrito, mas isso depende da interação entre um material que mal estudamos e um material que é completamente desconhecido. Eu não esperaria nenhum entalhamento ou carbonização, porque nós não afirmamos que entramos através da atmosfera da Terra. Parece-me que a evidência confirma quase inteiramente a nossa história. Qual é o problema? — O problema é que vocês são demasiado espertos. Demasiado espertos. Veja as coisas do ponto de vista de um cético. Recue uns passos e olhe para o grande quadro. Há um grupo de gente superiormente inteligente, de diferentes países, que pensa que o mundo está a ir para o caneco. Alegam estar a receber uma Mensagem complexa vinda do espaço. — Alegam? — Deixe-me continuar. Decifram a Mensagem e anunciam instruções para a construção de uma Máquina muito complicada que orçará em bilhões de dólares. O mundo encontra-se num estado desgraçado, as religiões estão todas alvoroçadas com a aproximação do Milênio e, para surpresa de toda a gente, a Máquina é construída. Há uma ou duas ligeiras mudanças no pessoal e depois essencialmente essas mesmas pessoas… — Não foram as mesmas pessoas. Não foi a Sukhavati, não foi o Eda, não foi o Xi, e houve… — Deixe-me continuar. Essencialmente essas mesmas pessoas sentam-se na Máquina. Em virtude do modo como a coisa foi concebida, ninguém as pode ver nem falar com elas depois de a engenhoca ser ativada. Assim, a Máquina é ligada e depois ela própria se desliga. Uma vez ligada, não é possível fazê-la parar em menos de vinte minutos. Muito bem. Passados vinte minutos, essas mesmas pessoas saem da Máquina, todas contentes e eufóricas, e contam uma história de caca a respeito de terem viajado mais depressa do que a luz, dentro de buracos negros, para o centro da Galáxia e regressado. Imagine quem ouve esta história e é apenas normalmente cautelosa. Pede para ver as provas que essas pessoas trouxeram. Fotografias, videotapes, quaisquer outros dados. Agora adivinhem! Foi tudo convencionalmente apagado. Trazem artefatos da civilização superior que dizem encontrar-se no centro da Galáxia? Não. Recordações? Não. Uma placa de pedra? Não. Mascotes? Não. Nada. A única evidência física é um certo dano sutil sofrido pela Máquina. Então as pessoas perguntam-se: não podiam aqueles para tal motivados, e tão superiormente inteligentes, provocar o que parecem estragos causados por forças de tensão e radiações, especialmente se dispunham de dois bilhões de dólares para forjar as provas? Ela ficou boquiaberta. Lembrou-se da última vez em que isso lhe acontecera. Aquela era uma reconstituição verdadeiramente venenosa dos acontecimentos. Perguntou-se o que a teria tornado atraente a Kitz. Ele devia encontrar-se num estado de autêntica angústia, pensou. — Não creio que alguém vá acreditar na vossa história — continuou ele. — Esta é a vigarice mais complicada — e mais cara — jamais perpetrada. Você e os seus amigos tentaram enganar a presidente dos Estados Unidos e ludibriar o povo americano, para não falar de todos os outros governos da Terra. Devem estar realmente convencidos de que todas as outras pessoas são estúpidas. — Michael, isso é uma loucura. Dezenas de milhares de pessoas trabalharam para captar a Mensagem, para a decifrar e para construir a Máquina. A Mensagem encontra-se em fitas magnéticas, em printouts e em discos laser, em observatórios de todo o mundo. Pensa que há uma conspiração envolvendo todos os radioastrônomos do planeta, e as companhias de indústrias aeroespaciais e de cibernética, e… — Não, não é preciso uma conspiração dessa envergadura. Só o que é preciso é um emissor no espaço que dê a impressão de estar a transmitir de Vega. Vou dizer-lhe como penso que fizeram a coisa. Prepararam a Mensagem e arranjaram alguém — alguém com capacidade de lançamento firmada — para a pôr lá em cima. Provavelmente como parte suplementar de qualquer outra missão. E em qualquer órbita que desse a impressão de movimento sideral. Talvez haja mais de um satélite. Depois, o transmissor ativa-se e você está prontinha, no seu providencial observatório, para receber a Mensagem, fazer a grande descoberta e dizer-nos, a nós, pobres ignorantes, o que tudo isso significa. Aquilo foi demais até para o impassível Der Heer, que estava espapaçado na cadeira. — Francamente, Mike — começou, ao mesmo tempo que se endireitava, mas Ellie interrompeu-o imediatamente: — Não fui eu a autora da maior parte da decifração. Estiveram envolvidas nisso numerosas pessoas. Especialmente o Drumlin. Ao princípio ele era apenas um cético interessado, como você sabe. Mas, quando os dados começaram a chegar, Dave convenceu-se inteiramente. Não ouviu quaisquer reservas da parte dele. — Ah, sim, o pobre Dave Drumlin! O falecido Dave Drumlin. Você rasteirou-o. O professor de que nunca gostou. Der Heer afundou-se ainda mais na cadeira e ela viu-o subitamente a regalar Kitz com conversa de travesseiro em segunda mão. Observou-o mais atentamente. Não podia ter a certeza. — Durante a decriptogravação da Mensagem, você não podia encarregar-se de tudo. Havia tanto que tinha de fazer! Por isso lhe passava despercebido isto, esquecia aquilo. E ali estava o Drumlin a envelhecer, preocupado porque a sua ex-aluna o eclipsava e obtinha o crédito todo. De súbito vê uma maneira de se meter no assunto, de desempenhar um papel fulcral. Você apelou para o seu narcisismo e filou-o. E, se ele não tivesse percebido o método de decriptogravação, você ter-lhe-ia dado uma ajuda. Se acontecesse o pior, teria descascado pessoalmente todas as camadas da cebola. — Está a dizer que fomos capazes de inventar semelhante Mensagem? Francamente, é um escandaloso cumprimento ao Vaygay e a mim. E também é impossível. Não se pode fazer. Pergunte a qualquer engenheiro se esse tipo de Máquina — com indústrias subsidiárias completamente novas e componentes absolutamente desconhecidos —, pergunte se isso podia ter sido inventado por um punhado de físicos e radioastrônomos nos seus dias de folga. Quando imagina que tivemos tempo para inventar semelhante Mensagem, mesmo que soubéssemos como? Veja quantos bits de Informação contém. Teria levado anos. — Você dispôs de anos, enquanto Argus não chegava a parte nenhuma. O projeto estava prestes a ser abandonado. Drumlin, como deve lembrar-se, insistia nisso. Assim, precisamente no momento certo, você descobriu a Mensagem. E não se falou mais de abandonar o seu projeto de estimação. Penso que você e o russo cozinharam tudo nas horas vagas. Dispuseram de anos para o fazer. — Isto é loucura — disse ela, baixinho. Valerian interveio. Conhecera bem a Dr.a Arroway durante o período em questão. Ela fizera trabalho científico produtivo. Nunca dispusera do tempo necessário para um logro tão minucioso e complicado. Por muito que a admirasse, considerava que a Mensagem e a Máquina ultrapassavam muito a sua competência — ou, verdadeiramente, a competência fosse de quem fosse. De qualquer pessoa da Terra. Mas Kitz não embarcou. — Isso é uma opinião pessoal, doutor Valerian. Há muitas pessoas e pode haver muitas opiniões. O senhor estima a doutora Arroway. Eu compreendo. Também a estimo. É compreensível que a defenda. Não acho descabido. Mas há um argumento concludente. Ainda não o conhecem, mas eu vou revelar-lho. Inclinou-se para a frente, a observar Ellie atentamente. Era óbvio que estava interessado em ver como ela reagiria ao que ele ia dizer. — A Mensagem parou no momento em que ativamos a Máquina. No momento em que os benzels atingiram a velocidade de cruzeiro. Com uma precisão de segundo. Em todo o mundo. Todos os radiobservatórios com uma linha de mira para Vega viram a mesma coisa. Resolvemos não lho dizer, para não lhe distrair a atenção do seu relato. A Mensagem terminou em meio-de-bit. Isso foi realmente estúpido da sua parte. — Não sei nada a esse respeito, Michael. Que importância tem que a Mensagem tenha parado? Tinha cumprido o seu objetivo. Nós construímos a Máquina e fomos a… aonde eles queriam que fôssemos. — Coloca-a numa situação peculiar — insistiu Kitz. De súbito, ela viu aonde ele pretendia chegar. Não esperara aquilo. Ele alegava conspiração, mas ela estava a considerar loucura. Se Kitz não estava doido, poderia ela estar? Se a nossa tecnologia podia fabricar substâncias indutivas de ilusões, não poderia uma tecnologia muito mais avançada induzir alucinações coletivas altamente minuciosas e pormenorizadas? Por um momento, apenas, pareceu-lhe possível. — Imaginemos que estamos na semana passada — dizia ele. — Supõe-se que as ondas de rádio que chegam neste momento à Terra foram emitidas de Vega há vinte e seis anos. Levam vinte e seis anos para atravessar o espaço e chegar até nós. Mas há vinte e seis anos, doutora Arroway, não havia instalações Argus nenhumas e você andava a dormir com viciados de LSD e a lamuriar por causa do Vietnam e do Watergate. Vocês são muito espertos, mas esquecem-se da velocidade da luz. Não existe nenhuma maneira de a ativação da Máquina poder desligar a Mensagem antes de decorridos vinte e seis anos — a não ser que no espaço normal se possa enviar uma mensagem a uma velocidade maior do que a da luz. Mas nós ambos sabemos que isso é impossível. Lembro-me de você se queixar da estupidez de Rankin e Joss por não saberem que não se pode viajar mais rapidamente do que a luz. Surpreende-me que tenha pensado que se podia safar com esse estenderete. — Escute, Michael. Isso relaciona-se com a maneira como conseguimos ir daqui lá e regressar em quase tempo plano nenhum. Vinte minutos, de qualquer modo. Pode ser «causa» na vizinhança de uma singularidade. Não sou especialista nisso. Devia falar com o Eda ou o Vaygay. — Obrigado pela sugestão — agradeceu Kitz. — Já falamos. Ellie imaginou Vaygay submetido a um interrogatório comparavelmente rigoroso efetuado pelo seu velho adversário Arkhangelsky ou por Baruda, o homem que propusera que se destruíssem os radiotelescópios e queimassem os dados. Provavelmente, eles e Kitz viam as coisas do mesmo modo naquela questão embaraçosa. Esperou que Vaygay estivesse a agüentar-se bem. — A senhora compreende, doutora Arroway. Tenho a certeza de que compreende. Mas deixe-me explicar de novo. Talvez possa indicar-me se e onde me escapou alguma coisa. Há vinte e seis anos, aquelas ondas de rádio estavam a partir para a Terra. Agora imagine-as no espaço entre Vega e aqui. Ninguém pode alcançar as ondas de rádio depois de elas deixarem Vega. Ninguém as pode deter. Mesmo que o emissor soubesse instantaneamente — através do buraco negro, se assim o deseja — que a Máquina tinha sido ativada, decorreriam vinte e seis anos antes de os sinais parar de chegarem à Terra. Os seus Veganianos não poderiam saber há vinte e seis anos quando a Máquina ia ser ativada. E com uma precisão de minuto. Seria preciso enviar um recado para trás no tempo, para vinte e seis anos no passado, para a Mensagem parar em 31 de Dezembro de 1999. Está a acompanhar o meu raciocínio, não está? — Estou, sim. Isto é território completamente inexplorado. Sabe, não é por acaso que se chama um continuum espaço-tempo. Se eles são capazes de fazer alguma espécie de túneis através do tempo, o fato de termos chegado um dia antes demonstra que têm, pelo menos, uma espécie de viagem no tempo limitado. Por isso, assim que partimos da estação, talvez tenham enviado uma mensagem vinte e seis anos para trás no tempo, a fim de cortar a transmissão. Não sei. — Compreende como é conveniente para si que a Mensagem tenha parado precisamente agora. Se ainda estivesse a emitir, poderíamos encontrar o seu satelitezinho, apreendê-lo e voltar com a fita da transmissão. Isso constituiria prova definitiva de logro. Sem ambigüidade nenhuma. Mas você não podia correr esse risco. Por isso, está reduzida a conversa fiada a respeito de buracos negros. O que provavelmente é embaraçoso para si. Fingiu-se preocupado. Era como uma fantasia paranóica em que uma manta de retalhos de fatos inocentes se reconstituía numa conspiração complicada. Naquele caso, os fatos não se podiam considerar correntes e era lógico que as autoridades experimentassem outras explicações possíveis. Mas a maneira como Kitz enumerava os acontecimentos era tão odiosa que, parecia-lhe, revelava alguém verdadeiramente ferido, com medo, sofrendo. Na sua mente, a possibilidade de tudo aquilo ser uma alucinação coletiva diminuiu um pouco. Mas a cessação da transmissão da Mensagem — se acontecera como Kitz dissera — era preocupante. — Ora eu digo a mim próprio, doutora Arroway, que vocês, cientistas, punham os miolos para engendrar tudo isto e a motivação também. Mas, sozinhos, não dispunham dos meios. Se não foram os Russos que puseram este satélite lá em cima para vocês, podia ter sido qualquer de meia dúzia de outras autoridades nacionais de lançamento para o espaço. Mas nós investigamos isso tudo. Ninguém lançou um satélite de vôo livre nas órbitas apropriadas. Só resta, assim, a capacidade de lançamento privada. E a possibilidade mais interessante que chegou ao nosso conhecimento é um tal Mister S. R. Hadden. Conhece-o? — Não seja ridículo, Michael. Falei consigo acerca do Hadden antes de ir lá acima, ao Methuselah. — Só queria ter a certeza de que estávamos de acordo nos pormenores fundamentais. Experimente esta possibilidade, por exemplo: você e o russo congeminam o plano. Você convence o Hadden a financiar as primeiras fases — a concepção do satélite, a invenção da Máquina, a criptogravação da Mensagem, a contrafação dos estragos causados pela radiação e tudo o mais. Em troca, depois de ser posto em andamento o Projeto da Máquina, ele pode meter as mãozinhas numa parte desses dois bilhões de dólares. A idéia agrada-lhe. Pode haver enorme lucro na negociata e, a julgar pelos antecedentes, ele adoraria embaraçar o Governo. Quando você encalha na descriptogravação da Mensagem, quando não consegue encontrar o tal manual de instruções, vai até lá consultá-lo. Ele diz-lhe onde deve procurar. Isso também foi descuidado. Teria sido melhor se você o descobrisse sozinha. — É demasiado descuidado — opinou Der Heer. — Uma pessoa que estivesse realmente a perpretar uma vigarice não… — Ken, estou surpreendido consigo. Tem sido muito crédulo, sabe? Está a demonstrar exatamente por que razão a Arroway e os outros acharam que seria inteligente pedir o conselho de Hadden. E certificarem-se de que nós sabíamos que ela ia vê-lo. Voltou a concentrar a sua atenção nela: — Doutora Arroway, tente ver a questão do ponto de vista de um observador neutro… Kitz foi pressionando, fazendo novos padrões fulgurantes de fatos encaixar-se no ar diante dos seus olhos, reescrevendo anos inteiros da vida dela. Ellie não imaginara que ele fosse estúpido, mas também nunca imaginara que fosse tão inventivo. Talvez tivesse recebido ajuda. Mas o propulsante emocional para aquela fantasia toda vinha do próprio Kitz. Mostrava-se cheio de gestos expansivos e de floreados de retórica. Aquilo não era meramente uma coisa que fizesse parte do seu trabalho. Aquele interrogatório, aquela interpretação alternativa de acontecimentos, despertara nele qualquer coisa de apaixonado. Passados momentos, julgou perceber do que se tratava. Os Cinco tinham regressado sem resultados que permitissem quaisquer aplicações militares imediatas, sem qualquer capital político, apenas com uma história que era insuperavelmente estranha. E essa história tinha certas implicações. Kitz era agora senhor do mais devastador arsenal da Terra, enquanto os zeladores estavam a construir galáxias. Ele era um descendente direto de uma progressão de líderes, americanos e soviéticos, que tinham engendrado a estratégia do confronto nuclear, enquanto os zeladores eram um amálgama de diversas espécies de mundos separados a trabalhar conjuntamente, em harmonia. A sua própria existência era uma reprovação muda. E imaginasse-se depois a possibilidade de o túnel poder ser ativado do outro lado, de não haver nada que ele pudesse fazer para o impedir. Eles podiam chegar aqui num instante. Como poderia Kitz defender os Estados Unidos em tais circunstâncias? O seu papel na decisão de construir a Máquina — cuja história parecia estar a reescrever afanosamente — . Poderia ser interpretado por um tribunal hostil como negligência no cumprimento do dever. E que contas poderia Kitz dar aos extraterrestres da sua administração do planeta — da sua e da dos seus antecessores? Mesmo que não emergissem iradamente do túnel nenhuns anjos de vingança, se a verdade constasse, o mundo mudaria. Já estava a mudar. Mudaria muito mais. Voltou a olhá-lo com compreensão. Durante cem gerações, pelo menos, o mundo fora governado por pessoas muito piores do que ele. Era pouca sorte sua chegar-lhe a vez de jogar precisamente quando as regras do jogo estavam a ser reescritas. — … mesmo que você acreditasse em todos os pormenores da sua história — dizia ele —, não acha que os extraterrestres a trataram mal? Aproveitaram-se dos seus sentimentos mais ternos mascarando-se como o querido papá. Não lhe disseram o que estão a fazer, expuseram todas as suas películas, destruíram todos os seus dados e nem sequer lhe permitiram que deixasse lá em cima aquela estúpida fronde de palmeira. Não falta nada no inventário, a não ser um pouco de comida, e não chegou nada que não conste do manifesto, a não ser um bocadinho de areia. Portanto, em vinte minutos, você manducou alguma comida e despejou um pouco de areia das algibeiras. Voltou um nanossegundo, ou o que é, depois de ter partido; logo, para qualquer observador neutro, nunca chegou sequer a partir. «Ora, se os extraterrestres tivessem querido tornar claro, sem ambigüidade, que você foi realmente a algum lado, tê-la-iam trazido de volta um dia depois, ou uma semana. Certo? Se não houvesse nada dentro dos benzels durante um bocado, nós teríamos tido a certeza absoluta de que você teria ido a algum lado. Se eles quisessem facilitar-lhe as coisas, não teriam desligado a Mensagem. Certo? Isso dá mau aspecto às coisas, bem sabe. Eles podiam tê-lo previsto. Por que haveriam de querer dificultar-lhe a vida? E há ainda outras maneiras graças às quais poderiam ter apoiado a sua história. Poderiam ter-lhe dado qualquer coisa como recordação. Poderiam tê-la deixado trazer os seus filmes. Então ninguém conseguiria alegar que não passou tudo de uma intrujice inteligente. Como se explica que eles não tivessem feito isso? Como se explica que os extraterrestres não confirmem a sua história? Você passou anos da sua vida a tentar encontrá-los. Não estão gratos pelo que fez? Ellie, como pode ter a certeza de que a sua história aconteceu realmente? Se, como afirma, nada disto é uma impostura, não poderá ser uma… alucinação? É doloroso considerar essa possibilidade, bem sei. Ninguém gosta de pensar que enlouqueceu um bocadinho. No entanto, dada a tensão em que tem vivido, não é nada de espantar. E se a única alternativa é conspiração criminosa… Talvez queira reconsiderar cuidadosamente: Ela já o fizera. Nesse mesmo dia, mas mais tarde, encontrou-se a sós com Kitz. Tinha efetivamente sido proposto um acordo, que ela não tinha intenção nenhuma de aceitar. Mas Kitz também estava preparado para essa eventualidade. — Você nunca gostou de mim, desde o princípio — disse. — Mas eu vou passar por cima disso. Vamos fazer uma coisa verdadeiramente leal «Já distribuímos um comunicado dizendo que a Máquina não funcionou, pura e simplesmente, quando tentamos ativá-la. Naturalmente, estamos a tentar compreender o que correu mal. Com todos os outros fracassos, no Wyoming e no Uzbequistão, ninguém duvida deste. «Depois, daqui a algumas semanas, anunciaremos que continuamos a não obter quaisquer resultados. Fizemos tudo quanto pudemos. A Máquina é demasiado dispendiosa para se continuar a trabalhar nela. Talvez por enquanto não sejamos, pura e simplesmente, bastante inteligentes para a compreender. Além disso, no fim de contas, há algum perigo. Sempre soubemos isso. A Máquina pode explodir, ou coisa que o valha. Portanto, considerados os prós e os contras, é melhor congelar o Projeto da Máquina — pelo menos por uns tempos. Não se trata de não nos termos esforçado. «Hadden e os seus amigos opor-se-iam, claro, mas como Hadden foi levado da nossa companhia… — Ele está apenas a trezentos quilômetros de distância, lá em cima — lembrou ela. — Oh, ainda não sabe?! Sol morreu mais ou menos na altura em que a Máquina foi ativada. Curioso, como aquilo aconteceu. Desculpe, devia ter-lhe dito. Esquecera-me que era… tão íntima dele. Ellie não soube se deveria acreditar em Kitz. Hadden era um quinquagenário e parecera sem dúvida nenhuma de boa saúde física. Investigaria esse tópico depois. — E que nos acontece a nós, na sua fantasia? — perguntou. — A nós? Quem é «nós»? — Nós. Nós os Cinco. Os que embarcaram na Máquina que você afirma que nunca funcionou. — Ah! Após mais uns pequenos interrogatórios serão livres para partir. Não creio que nenhum de vocês seja suficientemente idiota para contar essa estória da carochinha lá fora. Mas, só por uma questão de segurança, estamos a preparar uns dossiês psiquiátricos dos Cinco. Perfis. Baixos. Foram sempre um pouco rebeldes, contestatórios do sistema — seja qual for o sistema em que tenham crescido. Isso não é problema nenhum. É bom as pessoas serem independentes. Nós encorajamo-lo, especialmente nos cientistas. Mas a tensão dos últimos anos tem sido esgotante — não verdadeiramente incapacitadora, mas esgotante. Sobretudo para os doutores Arroway e Lunacharsky. Primeiro estiveram envolvidos na descoberta da Mensagem, na sua descriptogravação e na tarefa de convencer os governos a construir a Máquina. Depois, problemas de construção, sabotagem industrial, a espera e uma ativação que não conduziu a lado nenhum… Foi duro. Só trabalho e nenhum divertimento. E, de qualquer modo, os cientistas são muito sensíveis. Se ficaram todos um bocadinho… perturbados com o falhanço da Máquina, toda a gente compreenderá. Sim, compreender, toda a gente compreenderá. Mas ninguém acreditará na vossa história. Ninguém. Se se comportarem bem, não existe nenhuma razão para que os dossiês venham alguma vez a ser divulgados. «Ficará claro que a Máquina ainda aqui se encontra. Vamos mandar vir alguns fotógrafos de serviços telegráficos para a fotografarem assim que as estradas reabrirem. Mostrar-lhes-emos que a Máquina não foi a lado nenhum. E a tripulação? Naturalmente, a tripulação está decepcionada. Talvez mesmo um pouco desencorajada. Não quer falar à imprensa por enquanto. — Não acha que é um plano perfeito? — Sorriu. Queria que ela confirmasse a perfeição do plano. Ellie não disse nada. — Não acha que estamos a ser muito razoáveis, depois de gastarmos dois bilhões de dólares naquele monte de trampa? Podíamos encarcerá-la para o resto da vida, Arroway. Mas vamos deixá-la livre. Não terá sequer de pagar fiança. Acho que estamos a comportar-nos como cavalheiros. É o Espírito do Milênio. É Machindo. CAPÍTULO XXII Gilgamesh Nunca mais voltar É o que torna a vida tão doce      EMILY DICKINSON. Poema número 1741 Naquele tempo, largamente anunciado como a aurora de uma nova idade, o sepultamento no espaço era uma ocorrência comum dispendiosa. Comercialmente acessível e negócio competitivo, atraía especialmente aqueles que, em épocas anteriores, teriam pedido que os seus restos fossem espalhados pelo seu condado nat, ou, pelo menos, pela cidadezinha industrial da qual tinham extraído a sua primeira fortuna. Mas agora era possível conseguir que os restos de uma pessoa circum-navegassem eternamente a Terra — ou tão perto do eternamente quanto importa no mundo prático. Basta apenas acrescentar um curto codicilo ao testamento. Depois — partindo, claro, do princípio de que tem «aquilo com que…» —, quando a pessoa morre e é cremada, as cinzas são comprimidas num esquife minúsculo, quase de brincar, no qual se gravam o nome e as datas de nascimento e morte, um breve verso em memória e o símbolo religioso da sua preferência (pode escolher um entre três). Juntamente com centenas de caixões miniaturais similares, é então lançado lá para cima e abandonado numa altitude intermédia, evitando expeditamente tanto os corredores congestionados da órbita geossíncrona como a desconcertante resistência atmosférica da órbita terrestre baixa. Em vez disso, as suas cinzas circundam triunfantemente o seu planeta natal no meio das cinturas de radiação de Van Allen, uma tempestade de prótons na qual, para começar, nenhum satélite no seu perfeito juízo se arriscaria a entrar. Mas as cinzas não se importam. A essas altitudes, a Terra ficara envolta nos restos dos seus cidadãos importantes e um visitante desinformado de um mundo distante poderia imaginar logicamente que fora parar a alguma sombria necrópole da era espacial. A localização cheia de riscos daquele cemitério explicaria a ausência de visitas de saudade dos parentes enlutados. Ao considerar semelhante imagem, S. R. Hadden ficara estupefato com as insignificantes porções de imortalidade com que aqueles defuntos importantes se tinham contentado. Todas as suas partes orgânicas — cérebro, coração, tudo quanto os distinguira como uma pessoa — eram atomizados na cremação. Não resta nada de uma pessoa depois da cremação, pensou, apenas osso em pó, o que mal chega para uma civilização, mesmo avançada, poder reconstituir o indivíduo a partir dos seus despojos. E, ainda por cima, o caixão é atirado para as cinturas de Van Allen, onde até mesmo as cinzas se vão torrando lentamente. Seria muito melhor se algumas das células pudessem ser preservadas. Verdadeiras células vivas, com o ADN intacto. Visualizou uma empresa que, mediante honorários vultosos, congelasse um pouco do tecido epitelial da pessoa e o lançasse para uma órbita alta — bem acima das cinturas de Van Allen, talvez até mais alto do que a órbita geossíncrona. Não há nenhuma razão para morreres primeiro, pensou. Trata disso agora, enquanto está na tua idéia. Depois, pelo menos, biólogos moleculares alienígenas — ou os seus homônimos terrestres do futuro distante — poderão reconstruir-te, clonar-te, mais ou menos a partir do zero. Esfregavas os olhos, espreguiçavas-te e acordavas no ano dez milhões. Ou, mesmo que não se fizesse nada com os teus despojos, continuariam a existir cópias múltiplas das tuas instruções genéticas. Estarias vivo em princípio. Em qualquer dos casos, poder-se-ia dizer que viverias eternamente. Mas, à medida que Hadden foi ruminando, aprofundando mais o assunto, este esquema também lhe pareceu demasiado modesto. Porque algumas células raspadas das solas dos pés não eram realmente a pessoa. Na melhor das hipóteses, permitiriam reconstituir a forma física. Mas isso não era o mesmo que a pessoa. Se uma pessoa encarasse o assunto verdadeiramente a sério, incluiria fotografias de família, uma autobiografia minuciosamente pormenorizada, todos os livros e gravações que apreciara e o máximo de coisas possível a seu respeito. Marcas preferidas de loções para depois de barbear, por exemplo, ou de cola de dieta. Era supremamente egotista, sabia-o, e adorava a idéia. No fim de contas, a era gerara um delírio escatológico continuado. Era natural pensar no próprio fim como toda a gente estava a pensar no fim da espécie, ou do planeta, ou no ascenso celestial coletivo dos eleitos. Não se podia esperar que os extraterrestres soubessem inglês. Mas, para eles reconstruírem a pessoa, precisavam de saber a sua língua. Portanto, havia que incluir uma espécie de tradução. Este problema agradava particularmente a Hadden. Era quase o anverso do problema da decriptogravação da Mensagem. Tudo isto requeria uma cápsula espacial substancial, tão substancial que deixava de ser necessário limitar-se a meras amostras de tecido. Podia mandar-se o próprio corpo inteiro. Se fosse possível a congelação rápida de uma pessoa pós a morte, por assim dizer, haveria uma vantagem subsidiária. Talvez uma parte suficiente da pessoa estivesse em estado de funcionamento, de modo que quem quer que a encontrasse poderia fazer mais do que apenas reconstituí-la. Talvez pudesse devolvê-la à vida — claro, depois de curar o que quer que fosse que tivesse causado a morte. No entanto, se a pessoa se decompusesse um pouco antes da congelação — porque, digamos, a família não se apercebera de que ela tinha morrido —, as perspectivas de revivificação diminuíam. O que seria verdadeiramente lógico, pensou, era congelar alguém imediatamente antes da morte. Isso tornaria a eventual ressuscitação mais provável, embora fosse de prever que a procura de tal serviço seria limitada. Mas, por essa ordem de idéias, por quê imediatamente antes de morrer? Supondo que uma pessoa sabia que tinha apenas um ou dois anos de vida. Não seria melhor ser logo congelada, pensara Hadden, antes de a carne se estragar? Mesmo então — suspirara —, fosse qual fosse a natureza deteriorante da doença, poderia ser ainda incurável depois de a pessoa ter sido devolvida à vida; um indivíduo estaria congelado durante uma idade geológica e acordaria apenas para morrer pouco depois de um melanoma ou de um enfarte cardíaco, doenças a respeito das quais os extraterrestres talvez não soubessem nada. Não, concluiu, só havia uma maneira de concretizar a idéia com perfeição: alguém de saúde robusta teria de ser lançado numa viagem só de ida para as estrelas. Como benefício secundário ser-lhe-ia ainda poupada a humilhação da doença e da velhice. Longe do sistema solar interior, o seu equilíbrio térmico desceria a alguns graus apenas acima do zero absoluto. Não seria necessária mais nenhuma refrigeração ulterior. Cuidados perpétuos incluídos. Grátis. Seguindo esta lógica, chegou ao passo final do argumento: se são necessários alguns anos para chegar ao frio interestelar, uma pessoa pode muito bem manter-se acordada para assistir ao espetáculo e ser rapidamente congelada apenas quando deixar o sistema solar. Isso minimizará também a sobre-dependência da criogenia. Hadden tomara todas as precauções razoáveis contra um inesperado problema clínico em órbita terrestre, acrescentava o relatório oficial, indo mesmo ao ponto da desintegração sônica preemptiva dos seus cálculos biliares e renais antes de pôr os pés no seu castelo no céu. E depois morrera de choque anafilático. Uma abelha saíra furiosamente de um ramo de frésias mandado lá para cima por um admirador, pelo Narnia. Por negligência, a farmácia bem fornecida de Methuselah não dispunha do soro imunizante apropriado. O inseto estivera provavelmente imobilizado pelas baixas temperaturas do porão de carga do Narnia e não tivera na verdade culpa nenhuma. O seu pequeno corpo despedaçado fora remetido cá para baixo, para ser examinado por entomólogos legistas. A ironia do multimilionário derrubado por uma abelha não escapara aos editoriais dos jornais nem aos sermões dominicais. Mas, na verdade, tudo aquilo fora um logro. Não houvera abelha nenhuma, ferroada nenhuma, nem morte humana. Hadden permanecera de excelente saúde. Ao invés, ao nascer o Ano Bom, nove horas depois de a Máquina ter sido ativada, os motores do foguete de um veículo auxiliar, de tamanho apreciável, atracado ao Methuselah ficaram incandescentes. Atingiu rapidamente a velocidade de escape do sistema Terra-Lua. Ele dera-lhe o nome de Gilgamesh. Hadden passara a sua vida a acumular poder e a pensar no tempo. Quanto mais poder se tem, descobrira, mais poder se ambiciona. O poder e o tempo estavam relacionados, porque todos os homens são iguais na morte. Foi por isso que os reis antigos erigiram monumentos a si mesmos. Mas os monumentos sofrem os efeitos da erosão, as realizações reais são obliteradas e os próprios nomes dos reis esquecidos. E, mais importante do que tudo, eles estavam mortos que nem pregos. Não, isto era mais elegante, mais belo, satisfazia mais. Ele descobrira uma porta baixa na parede do tempo. Se se tivessem limitado a anunciar os seus planos ao mundo, surgiriam certas complicações. Se Hadden fosse congelado a 4ºKelvin a dez mil milhões de quilômetros da Terra, qual seria exatamente o seu estatuto jurídico? Quem controlaria as suas empresas? Deste modo era muito mais limpo. Num pequeno codicilo do seu testamento deixara aos seus herdeiros e cessionários uma nova empresa, especializada em motores de foguete e criogenia, que eventualmente se chamaria Immortality, Inc. Nunca mais precisaria de pensar nesse assunto. Gilgamesh não tinha equipamento de rádio. Ele já não desejava saber o que acontecera aos Cinco. Não queria mais notícias da Terra — nada que o alegrasse, nada que o desconsolasse, nenhum do tumulto sem significado que conhecera. Somente solidão, pensamentos elevados… silêncio. Se acontecesse alguma coisa adversa nos poucos anos seguintes, a criogenia do Gilgamesh poderia ser ativada com o simples movimento de um interruptor. Até lá havia uma coleção completa da sua música, da sua literatura e das suas vídeo-gravações preferidas. Não se sentiria só. Na verdade, nunca lhe interessara muito ter companhia. Yamagishi considerara a idéia de ir também, mas acabara por recusá-la. Ter-se-ia sentido perdido, dissera, sem staff. E, naquela viagem, os incentivos eram insuficientes, assim como o espaço inadequado para staff. A monotonia da alimentação e a escala modesta das amenidades poderiam assustar alguns, mas Hadden sabia que era um homem com um grande sonho. As amenidades não interessavam nada. Dentro de dois anos, aquele sarcófago voador cairia no poço gravitacional potencial de Júpiter, do lado imediatamente exterior à sua cintura de radiação, seria disparado à volta do planeta e depois lançado para o espaço interestelar. Durante um dia ele desfrutaria de uma paisagem ainda mais espetacular do que a proporcionada pela janela do seu gabinete em Methuselah — as turvas nuvens multicores de Júpiter, o maior planeta. Se se tivesse tratado apenas de uma questão de panorama, Hadden teria optado por Saturno e pelos anéis. Preferia os anéis. Mas Saturno ficava a quatro anos, pelo menos, da Terra, e isso significaria, pesando todos os prós e todos os contras, correr um risco. Quando se persegue a imortalidade, é preciso ter muito cuidado. A tais velocidades seriam necessários dez mil anos para percorrer apenas a distância até à estrela mais próxima. No entanto, quando se está congelado a quatro graus abaixo do zero absoluto, dispõe-se de muito tempo. Mas, um belo dia — tinha a certeza disso, nem que fosse dentro de um milhão de anos —, Gilgamesh entraria por acaso noutro sistema solar qualquer. Ou a sua barca fúnebre seria interceptada na escunção entre as estrelas, e outros seres — muito avançados, muito inteligentes — recolheriam o sarcófago a bordo e saberiam o que tinha de ser feito. Aquilo nunca fora realmente tentado antes. Ninguém que jamais vivera na Terra se aproximara tanto do objetivo. Confiante de que no seu fim estaria o seu princípio, fechou os olhos e cruzou, experimentalmente, os braços no peito, quando os motores ficaram de novo incandescentes, desta vez mais brevemente, e a reluzente nave iniciou com toda a suavidade a sua longa viagem para as estrelas. Sabe Deus o que estará a acontecer na Terra daqui a milhares de anos, pensou. O problema não era dele. Nunca fora, realmente. Mas ele, ele estaria a dormir, ultracongelado e perfeitamente conservado, lançado no seu sarcófago através do vazio interestelar, ultrapassando os faraós, levando a palma a Alexandre, vencendo Quin em resplendor. Conseguiria a sua própria ressurreição. CAPÍTULO XXIII Reprogramação Não obedecemos a fábulas astuciosamente imaginadas… mas fomos testemunhas oculares.      II Pedro t:16 Olhai e recordai. Olhai para este céu; Olhai profunda, profundamente para o limpo ar marinho, O ilimitado, o término da prece. Falai agora e falai para a sagrada abóbada. Que ouvis? Que responde o céu? Os céus estão ocupados; esta não é a vossa casa.      KARL JAY SHAPIRO. Travelogue for Exiles As linhas telefônicas tinham sido reparadas, as estradas limpas e desimpedidas e foi permitida a representantes cuidadosamente selecionados da imprensa mundial uma vista de olhos às instalações. Alguns repórteres e fotógrafos foram conduzidos através das três aberturas iguais dos benzels, atravessaram a câmara de vácuo e penetraram no interior do dodecaedro. Foram registrados comentários para a televisão, os repórteres sentaram-se nas cadeiras que os Cinco tinham ocupado e falaram ao mundo do malogro daquela primeira tentativa corajosa para ativar a Máquina. Ellie e os seus colegas foram fotografados de longe, para mostrar que estavam vivos e bem, mas por enquanto não seriam concedidas entrevistas nenhumas. O Projeto da Máquina estava a fazer o balanço da situação e a estudar as suas opções futuras. O túnel de Honshu a Hokkaido estava de novo aberto, mas a passagem da Terra para Vega encontrava-se fechada. Eles não tinham testado realmente essa proposição. Ellie perguntava-se se, quando os Cinco abandonassem finalmente o local, o projeto não tentaria pôr de novo os benzels a girar; mas acreditava no que lhe fora dito: a Máquina não voltaria a funcionar, os seres da Terra não voltariam a ter acesso aos túneis. Podíamos fazer pequenas mossas no espaço-tempo, tantas quantas nos apetecesse; não nos serviria de nada se ninguém puxasse do outro lado. Fora-nos dada a possibilidade de um vislumbre, e depois tinham-nos deixado sós, para nos salvarmos a nós próprios. Se fôssemos capazes. No fim, os Cinco foram autorizados a falar uns com os outros. Ellie despediu-se sistematicamente deles, um por um. Nenhum a censurou pelas cassettes em branco. — As imagens das cassettes são gravadas em domínio magnético, em fita — recordou-lhe Vaygay. — Acumulou-se nos benzels um forte campo elétrico e, claro, eles estavam em movimento. Um campo elétrico tempo-variável faz um campo magnético. As equações de Maxwell. Parece-me que foi assim que as suas gravações se apagaram. A culpa não foi sua. O interrogatório do Vaygay intrigara-o. Não o tinham acusado exatamente, mas sugerido apenas que ele fazia parte de uma conspiração anti-soviética envolvendo cientistas do Ocidente. — Digo-lhe, Ellie, que a única questão em aberto é a existência de vida inteligente no Politburo. — E na Casa Branca. Não posso acreditar que a presidente permita que o Kitz leve a sua avante nisto. Ela entregou-se ao Projeto, comprometeu-se nele. — Este planeta é governado por gente doida. Lembre-se do que têm de fazer para chegar onde estão. A sua perspectiva é tão estreita, tão… breve! Alguns anos. Para os melhores deles, a umas décadas. Só lhes importa o tempo que estão no Poder. Ellie pensou na Cygnus A. — Mas eles não têm a certeza de que a nossa história é uma mentira. Não podem prová-lo. Portanto, temos de os convencer. No fundo do seu coração, interrogam-se. «Poderia ser verdade?» Alguns, poucos, até querem que seja verdade. Mas é uma verdade arriscada. Precisam de qualquer coisa vizinha da certeza… E talvez nós possamos fornecê-la. Podemos refinar a teoria gravitacional. Podemos fazer novas observações astronômicas para confirmar o que nos disseram — especialmente quanto ao centro galáctico e a Cygnus A. Eles não vão parar a investigação astronômica. Também podemos estudar o dodecaedro, se nos derem acesso a ele. Nós modificaremos a mente deles, Ellie. Será difícil fazê-lo se forem todos doidos, pensou ela. — Não vejo como os governos poderiam convencer as pessoas de que isto foi uma impostura — observou. — Deveras? Pense nas outras coisas em que eles fizeram as pessoas acreditar. Persuadiram-nos de que só estaremos em segurança se gastarmos toda a nossa riqueza para que toda a gente da Terra possa ser morta num momento quando os governos decidirem que chegou a altura. Parece-me que é difícil fazer as pessoas acreditarem numa coisa tão estúpida. Não, Ellie, eles têm muita habilidade para convencer. Basta-lhes dizer que a Máquina não funciona e que nós enlouquecemos um pouco. — Não creio que parecêssemos assim tão loucos se contássemos todos a nossa história juntos. Mas talvez você tenha razão. Talvez devamos tentar obter algumas provas primeiro. Vaygay, não haverá problemas consigo quando… regressar? — Que me podem fazer? Exilar-me em Gorky? Poderia sobreviver a isso; tive o meu dia na praia… Não, estarei em segurança. Você e eu temos um tratado de segurança mútua, Ellie. Enquanto você estiver viva, eles precisarão de mim. E vice-versa, claro. Se a história é verdadeira, gostarão de ter uma testemunha soviética; eventualmente, ainda a contarão, aos gritos, de cima dos telhados. E, como a sua gente, interrogar-se-ão acerca da utilidade militar e econômica de que nós vimos. — Não importa o que nos digam que façamos. Só importa que permaneçamos vivos. Então contaremos a nossa história — todos os Cinco; discretamente, claro. Ao princípio só àqueles em quem confiamos. Mas essas pessoas contarão a outras. A história propagar-se-á. Não haverá nenhuma maneira de a deter. Mais cedo ou mais tarde, os governos reconhecerão o que nos aconteceu no dodecaedro. E até lá somos apólices de seguro uns dos outros. Ellie, sinto-me muito feliz com tudo isto. Foi a coisa mais formidável que me aconteceu. — Dê um beijo a Nina, da minha parte — disse ela, momentos antes de ele partir no avião noturno para Moscovo. Durante o pequeno-almoço perguntou a Xi se estava decepcionado. — Decepcionado? Ter ido lá — ergueu os olhos na direção do céu —, tê-los visto e estar decepcionado? Sou um órfão da Longa Marcha. Sobrevivi à Revolução Cultural. Tentei cultivar batatas e beterraba sacarina, durante seis anos, à sombra da Grande Muralha. A minha vida inteira tem sido sublevação. Conheço a decepção. Fomos a um banquete e, quando regressamos a casa, à nossa aldeia faminta, sentimo-nos decepcionados por eles não festejarem o nosso regresso? Isso não é decepção. Perdemos uma pequena escaramuça. Estude a… disposição das forças. Regressaria em breve à China, onde acedera a não fazer quaisquer declarações públicas a respeito do que acontecera na Máquina. Mas voltaria a dirigir a escavação em Xian. O túmulo de Qin esperava por ele. Queria saber até que ponto o imperador se parecia com aquela simulação do outro lado dos túneis. — Desculpe, sei que isto é impertinente — disse ela, passados momentos —, mas o fato de, de todos nós, só o senhor ter encontrado alguém que… Enfim, em toda a sua vida não houve ninguém que tivesse amado? Desejou ter formulado a pergunta melhor. — Todos aqueles a quem amei me foram tirados. Obliterados. Vi os imperadores do século XX chegarem e partirem — respondeu Xi. — Ansiei por conhecer alguém que não pudesse ser revisto, reabilitado, ou censurado. Há somente algumas figuras históricas, poucas, que não podem ser apagadas. Estava a olhar para o tampo da mesa, a tocar na colher de chá. — Dediquei a minha vida à Revolução e não estou arrependido. Mas não sei quase nada da minha mãe e do meu pai. Não tenho nenhumas recordações deles. A sua mãe ainda está viva. Você lembra-se do seu pai e voltou a encontrá-lo. Não esqueça quanto é afortunada. Em Devi, Ellie adivinhou uma mágoa que nunca antes notara. Presumiu que se tratava de uma reação ao ceticismo com que a Diretoria do Projeto e os governos tinham acolhido a sua história. Mas Devi abanou a cabeça. — Não é muito importante para mim que acreditem ou não em nós. O fundamental é a experiência em si. Transformadora. Ellie, aquilo aconteceu-nos de fato. Foi real. Na primeira noite depois de regressarmos a Hokkaido sonhei que a nossa experiência era um sonho, sabe? Mas não foi, não foi. «Sim, estou triste. A minha tristeza é… Sabe, lá em cima satisfiz um desejo da vida inteira quando reencontrei Surindar ao fim de tantos anos. Ele era exatamente como eu o recordava, exatamente como sonhava com ele. Mas, quando o vi, quando vi uma simulação tão perfeita, compreendi, soube: este amor era precioso porque me fora roubado, porque eu desistira de tantas coisas para casar com ele. Mais nada. O homem era um pateta. Dez anos com ele, e ter-nos-íamos divorciado. Talvez apenas cinco chegassem. Eu era tão jovem e tola! — Lamento sinceramente — disse Ellie. — Sei um pouco acerca de chorar um amor perdido. — Ellie, não compreendeu. Pela primeira vez na minha vida, não choro Surindar. O que choro é a família a que renunciei por amor dele. Sukhavati iria passar alguns dias a Bombaim e depois visitaria a sua aldeia ancestral, em Tamil Nadu. — Eventualmente — disse —, será fácil convencermo-nos a nós próprios de que isto foi apenas uma ilusão. Todas as manhãs, quando acordarmos, a nossa experiência estará mais distante, mais delida, será mais como um sonho. Seria melhor para todos nós permanecermos juntos para reforçarmos as nossas recordações. Eles compreenderam esse perigo. Foi por isso que nos levaram para a beira-mar, para um lugar como o nosso próprio planeta, uma realidade que podemos apreender. Não consentirei que ninguém banalize essa experiência. Lembre-se: aconteceu realmente. Não foi um sonho. Ellie, não esqueça. Tendo em consideração as circunstâncias, Eda estava muito descontraído. Ellie não tardou a compreender porquê. Enquanto ela e Vaygay tinham estado a ser submetidos a prolongados interrogatórios, ele estivera a fazer cálculos. — Penso que os túneis são pontes Einstein-Rosen — disse. — A relatividade geral admite um tipo de soluções, chamadas buracos de vermes, semelhantes a buracos negros, mas sem nenhuma relação evolutiva — não podem ser gerados, como os buracos negros, pelo colapso gravitacional de uma estrela. Mas o tipo usual de buraco de verme, uma vez feito, expande-se e contrai-se antes de por ele poder passar alguma coisa; exerce correntes de forças desastrosas e exige também — pelo menos do ponto de vista de alguém que ficou atrás — uma infinita quantidade de tempo para ser atravessado. Ellie não compreendeu como isso poderia constituir grande progresso e pediu-lhe que clarificasse. O problema-chave consistia em manter o buraco de verme aberto. Eda descobrira um tipo de soluções para as suas equações de campo que sugeriam um novo campo macroscópico, uma espécie de tensão que podia ser usada para impedir que um buraco de verme se contraísse completamente. Um buraco assim não apresentaria nenhum dos outros problemas dos buracos negros; teria tensões de correntes muito mais pequenas, acesso em dois sentidos, tempos de trânsito rápidos pelos padrões de medição de um observador exterior e nenhum campo de radiação interior devastador. — Não sei se o túnel é estável contra pequenas perturbações — esclareceu. — Se não é, eles teriam de construir um sistema de feedback muito complicado para monitorizar e corrigir as instabilidades. Ainda não tenho a certeza de nada disto. Mas, pelo menos, se os túneis podem ser pontes Einstein-Rosen, podemos dar alguma resposta quando nos disserem que tivemos alucinações. Eda estava ansioso por regressar a Lagos e Ellie via o bilhete verde das Linhas Aéreas Nigerianas a espreitar da algibeira do casaco. Ele perguntava-se se conseguiria interpretar completamente a nova física que a experiência por que tinham passado implicava. Mas confessava-se inseguro, receava não estar à altura da tarefa, sobretudo em virtude daquilo que descrevia como a sua idade avançada para física teórica. Tinha trinta e oito anos. Acima de tudo, disse-lhe, estava desesperado por se reunir à mulher e aos filhos. Ela abraçou-o e disse-lhe que se sentia orgulhosa por tê-lo conhecido. — Por quê o pretérito? Voltará a ver-me, com certeza. Ellie — acrescentou, como se fosse uma coisa de que quase se tivesse esquecido, — faz-me um favor? Recorde tudo quanto aconteceu, todos os pormenores, e escreva-o. E depois mande-mo. A nossa experiência representa dados experimentais. Um de nós pode ter visto qualquer coisa que escapou aos outros, qualquer coisa essencial para uma compreensão profunda do que aconteceu. Mande-me o que escrever. Pedi o mesmo aos outros. Acenou, pegou na pasta velha e entrou no carro do Projeto que esperava. Estavam a partir, cada um para o seu país, e isso dava a Ellie a impressão de que a sua própria família estava a ser separada, fraturada, dispersa. Ela também achara a experiência transformadora. Como poderia não achar? Fora exorcizado um demônio. Vários demônios. E, precisamente quando se sentia mais capaz de amar do que nunca, descobria-se sozinha. Levaram-na das instalações de helicóptero. No longo vôo para Washington no avião governamental dormiu tão profundamente que tiveram de a sacudir, para a acordar, quando a gente da Casa Branca entrou a bordo — logo após o aparelho ter aterrado por breves momentos numa pista isolada de Hickam Field, no Havai. Tinham chegado a um acordo. Ela podia voltar para Argus, embora já não como diretora, e dedicar-se a qualquer problema científico que desejasse. Teria lá, se quisesse, um lugar vitalício. — Não estamos a ser desrazoáveis — dissera finalmente Kitz ao aceitar o compromisso. — Volte com uma prova sólida, concreta, qualquer coisa verdadeiramente convincente, e juntar-nos-emos a si para fazer o anúncio. Diremos que lhe pedimos que guardasse segredo da sua história até podermos ter a certeza absoluta. Dentro dos limites do razoável, apoiaremos qualquer investigação que queira fazer. Pelo contrário, se anunciássemos a história agora, haveria uma onda inicial de entusiasmo e depois os céticos começariam a criticar. Seria um embaraço para si e um embaraço para nós. É muito melhor reunir as provas, se conseguir. Talvez a presidente tivesse contribuído para ele mudar de idéias. Não parecia nada crível que Kitz estivesse a gostar do compromisso. Mas, em troca, ela não deveria dizer nada acerca do que acontecera a bordo da Máquina. Os Cinco tinham-se sentado no dodecaedro, conversado uns com os outros e depois saído. Se ela dissesse uma palavra sequer de mais alguma coisa, o perfil psiquiátrico forjado iria parar aos media e, relutantemente, ela seria demitida. Ellie perguntava a si mesma se eles teriam tentado comprar o silêncio de Peter Valerian, ou de Vaygay, ou de Abonneba. Não via como — a não ser que fuzilassem as equipes de interrogatório de cinco nações e os membros do Consórcio Mundial da Máquina — esperavam conseguir manter aquilo secreto para sempre. Era só uma questão de tempo. Portanto, concluiu, eles estavam a comprar tempo. Surpreendia-a a brandura dos castigos com que a tinham ameaçado, mas as violações do acordo, se viessem a acontecer, não se verificariam no tempo de Kitz. Ele afastar-se-ia em breve; dentro de um ano, a Administração Lasker deixaria o poder, depois do máximo de dois mandatos constitucionalmente admitido. Ele aceitara sociedade numa firma de advogados de Washington, conhecida pela sua clientela de empreiteiros da Defesa. Ellie pensava que Kitz tentaria mais qualquer coisa. Não parecia nada preocupado fosse com o que fosse que ela pudesse alegar ter acontecido no Centro Galáctico. O que o angustiava, tinha a certeza, era a possibilidade de o túnel ainda estar aberto para a, ainda que não da, Terra. Ela calculava que as instalações de Hokkaido seriam em breve desmanteladas e que os técnicos regressariam à suas indústrias e universidades. Que histórias contariam? Talvez o dodecaedro fosse colocado em exposição na cidade científica de Tsukuba. Depois, após um intervalo decente de tempo, durante o qual a atenção mundial seria em certa medida atraída por outros assuntos, talvez houvesse uma explosão no estaleiro da Máquina — nuclear, se Kitz conseguisse engendrar uma explicação plausível para ela. Se fosse uma explosão nuclear, a contaminação radiativa seria uma excelente razão para declarar toda a área zona proibida. Pelo menos isolaria o local de observadores casuais e talvez pudesse soltar o bocal, com o safanão. Provavelmente, as suscetibilidades japonesas quanto a armas nucleares, mesmo que deflagradas subterraneamente, obrigariam Kitz a contentar-se com explosivos convencionais. Poderiam disfarçar a coisa como uma das séries contínuas de desastres nas minas de carvão de Hokkaido. Mas ela duvidava que alguma explosão nuclear ou convencional — conseguisse desprender a Terra do túnel. No entanto, talvez Kitz não estivesse a imaginar nenhuma dessas coisas, talvez ela estivesse a menosprezá-lo. No fim de contas, ele também devia ter sido influenciado pelo Machindo. Devia ter família, amigos, alguém que amasse. Devia ter captado pelo menos um bafejo de quanto se passara. No dia seguinte, a presidente condecorou-a com a Medalha Nacional da Liberdade, numa cerimônia pública na Casa Branca. Ardiam toras de lenha numa lareira aberta numa parede de mármore branco. A presidente empatara uma grande quantidade de capital político, assim como da espécie mais corrente de capital, no Projeto da Máquina e estava decidida a tirar o melhor partido possível disso, perante a nação e perante o mundo. Os investimentos feitos na Máquina pelos Estados Unidos e por outras nações, dizia-se, tinham dado resultados muito compensadores. Estavam a desabrochar novas tecnologias e indústrias, que prometiam, pelo menos, tanto benefício para a gente comum como as invenções de Thomas Edison. Descobríramos que não estávamos sós, que existiam no espaço inteligências mais avançadas do que a nossa. Isso mudava para sempre, disse a presidente, o conceito de quem somos. Falando por si própria — mas achava que também pela maioria dos Americanos —, a descoberta fortalecera a sua crença em Deus, que se demonstrara agora estar a criar vida e inteligência em muitos mundos, uma conclusão que a presidente tinha a certeza de estar de harmonia com todas as religiões. Mas o maior bem que nos fora concedido pela Máquina, afirmou, foi o espírito que insuflou na Terra: a crescente compreensão mútua entre a comunidade humana, a noção de que somos todos companheiros numa viagem perigosa no espaço e no tempo, o objetivo de uma unidade de propósito global agora conhecido em todo o planeta como Machindo. A presidente apresentou Ellie à imprensa e às câmaras da televisão, falou da perseverança por ela demonstrada durante doze longos anos, do gênio com que detectara e decodificara a Mensagem e da coragem que revelara ao embarcar na Máquina. Ninguém sabia o que a Máquina faria. A Dra. Arroway arriscara conscientemente a sua vida. Não era culpa da Dra. Arroway o fato de não ter acontecido nada quando a Máquina fora ativada. Ela tinha feito o máximo que qualquer ser humano poderia fazer. Merecia a gratidão de todos os americanos e de toda a gente de todos os cantos da Terra. Ellie era uma pessoa muito reservada. Apesar da sua reticência pessoal, arcara, quando se tornara necessário, com o fardo de explicar a Mensagem e a Máquina. Na verdade, demonstrara para com a imprensa uma paciência que ela, presidente, admirava muito particularmente. A Dra. Arroway poderia agora desfrutar de alguma verdadeira privacidade, a fim de reatar a sua carreira científica. Houvera comunicados para a imprensa, reuniões de instruções, entrevistas com o secretário Kitz e o conselheiro científico Der Heer. A presidente esperava que a imprensa respeitasse o desejo da Dra. Arroway de não conceder nenhuma conferência de imprensa. Foi, no entanto, concedida uma oportunidade para tirar fotografias. Ellie partiu de Washington sem ter conseguido avaliar quanto a presidente sabia. Transportaram-na de regresso num reluzente pequeno jato do Comando de Transporte Militar Aéreo Conjunto e acederam em parar em Janesville, no caminho. A mãe vestia o velho robe acolchoado. Alguém lhe pusera um pouco de cor nas faces. Ellie deitou o próprio rosto na almofada, ao lado do da mãe. Além de ter recuperado uma hesitante capacidade de falar, a idosa mulher recuperara também o uso suficiente do braço direito para poder dar umas leves palmadinhas no ombro da filha. — Mãe, tenho uma coisa para lhe dizer. É uma coisa importante. Mas tente ficar calma, não quero transtorná-la. Mãe… vi o paizinho. Vi-o. Ele manda-lhe saudades. — Sim — A velha acenou devagar com a cabeça. — Esteve cá ontem. Ellie sabia que John Staughton estivera no lar no dia anterior. Escusara-se a acompanhá-la agora, alegando excesso de trabalho, mas parecia plausível que não desejasse apenas intrometer-se naquele momento. Apesar disso, Ellie ouviu-se dizer, com alguma irritação: — Não, não. Estou a falar do paizinho. — Diz-lhe… — A idosa mulher falava com dificuldade. — Diz-lhe, vestido de chiffon. Passe pela tinturaria… quando for da loja para casa. Era evidente que, no universo da mãe, o pai dela ainda dirigia a loja de ferragens. E no de Ellie também. A vasta extensão de cerca anticiclone estendia-se agora inutilmente de horizonte a horizonte, a macular a paisagem de deserto de restolho. Ela sentia-se grata por ter regressado, contente por estar a organizar um programa de investigação novo, ainda que em muito menor escala. Jack Hibbert tinha sido nomeado diretor interino das instalações Argus e ela estava liberta de responsabilidades administrativas. Em virtude de tanto tempo de uso de telescópio ter ficado livre quando o sinal de Vega cessara, respirava-se uma atmosfera inebriante de progresso numa dúzia de sub-disciplinas de radioastronomia havia muito em declínio. Os que com ela tinham trabalhado não demonstraram um resquício sequer de apoio à idéia de Kitz de que a Mensagem era uma impostura. Ellie perguntou a si mesma o que Der Heer e Valerian andariam a dizer aos amigos e colegas acerca da Mensagem e da Máquina. Duvidava que Kitz tivesse proferido uma única palavra a tal respeito fora do segredo do seu gabinete — que em breve abandonaria — no Pentágono. Ela estivera lá uma vez. Um soldado da Armada — de baioneta numa bainha de couro e mãos apertadas atrás das costas — guardava rigidamente a entrada, não fosse o caso de, no labirinto de corredores concêntricos, alguém de passagem sucumbir a um impulso irracional. Willie fora pessoalmente buscar o Thunderbird a Wyoming, para que estivesse à sua espera. Nos termos do acordo, ela só o podia conduzir no recinto das instalações, que era suficientemente grande para um normal passeio recreativo de automóvel. Mas não mais paisagens do Texas Ocidental, não mais guardas de honra de coelhos, não mais idas de automóvel às montanhas para vislumbrar uma estrela do hemisfério sul. Esse era o único pesar que a reclusão lhe causava. De qualquer modo, as leiras de coelhos em parada não apareciam no Inverno. Ao princípio, um corpo razoável de gente da imprensa percorria a área na esperança de lhe gritar uma pergunta ou de a fotografar através de uma teleobjetiva. Mas ela permanecia resolutamente isolada. O recém-importado pessoal de relações públicas era eficiente, até mesmo um pouco implacável, no tocante a desencorajar perguntas. No fim de contas, a presidente pedira que respeitassem a privacidade da doutora Arroway. Ao longo das semanas e dos meses seguintes, o batalhão de repórteres reduziu-se a uma companhia e depois a um pelotão. Agora restava apenas uma brigada dos mais persistentes, principalmente de The World Hologram e de outros semanários sensacionalistas, de revistas quiliastas, e um único representante de uma publicação que se auto-intitulava Science and God. Ninguém sabia a que seita pertencia e o seu repórter não o dizia. Quando as histórias foram escritas, falaram de doze anos de trabalho devotado, culminando na importante e triunfante decriptogravação da Mensagem e seguidos pela construção da Máquina. No auge das expectativas mundiais, esta, infelizmente, falhara. A máquina não fora a parte alguma. Naturalmente, a Dra. Arroway estava decepcionada, talvez mesmo, especulavam, um pouco deprimida. Muitos editorialistas comentaram que esta pausa era bem-vinda. O ritmo de novas descobertas e a necessidade evidente de importantes reavaliações filosóficas e religiosas constituíam uma mistura tão embriagante que se impunha um período de tempo para entrincheiramento e estudo sereno da situação. Talvez a Terra ainda não estivesse preparada para estabelecer contato com civilizações alienígenas. Sociólogos e alguns educadores afirmavam que a mera existência de inteligências extraterrestres mais avançadas do que a nossa exigiria diversas gerações para ser convenientemente assimilada. Era uma agressão física ao amor-próprio humano, diziam. Já tínhamos muito com que nos preocupar. Dentro de algumas décadas compreenderíamos muito melhor os princípios subjacentes à Máquina. Veríamos que erro cometêramos e rir-nos-íamos do descuido, da omissão insignificante que a impedira de funcionar na sua primeira experiência completa, em 1999. Alguns comentadores religiosos argumentavam que o não funcionamento da Máquina era um castigo do pecado do orgulho, da arrogância humana. Billy Jo Rankin, numa alocução televisiva para toda a nação, opinou que a Mensagem viera de fato diretamente de um inferno chamado Vega, consolidando assim, com fundamento, a sua posição prévia em relação ao assunto. A Mensagem e a Máquina, disse, eram uma Torre de Babel moderna. Estupidamente, tragicamente, os seres humanos tinham aspirado a alcançar o Trono de Deus. Houvera uma cidade de fornicação e blasfêmia, construída havia milhares de anos e chamada Babilônia, que Deus destruíra. No nosso tempo houvera outra cidade assim, com o mesmo nome. Aqueles que amavam a Palavra de Deus tinham cumprido lá, igualmente, o Seu propósito. A Mensagem e a Máquina representavam novo ataque de Perversidade aos justos e tementes a Deus. Mais uma vez, as iniciativas demoníacas tinham sido travadas — no Wyoming, por um acidente divinamente inspirado; na Rússia ímpia, pela confusão dos cientistas comunistas pela Graça Divina. Mas, apesar dessas advertências claras da vontade de Deus, continuara Rankin, os humanos tinham tentado uma terceira vez construir a Máquina. Deus deixou-os. Depois, docemente, sutilmente, fez com que a Máquina falhasse, defletiu o intento demoníaco e demonstrou novamente o Seu amor e a Sua preocupação pelos Seus desobedientes e pecadores — e, para dizer toda a verdade, pelos Seus indignos — filhos da Terra. Era altura de aprender as lições da nossa tendência para o pecado, das nossas abominações e, antes da chegada do Milênio, do verdadeiro Milênio, que começaria em 1 de Janeiro de 2001, de nos rededicarmos, a nós e ao nosso planeta, a Deus. As Máquinas deveriam ser destruídas. Todas elas e todas as suas componentes. A pretensão de que construindo uma máquina, em vez de purificarem o coração, os seres humanos se poderiam sentar à mão direita de Deus deveria ser arrancada, raiz e ramo, antes que fosse demasiado tarde. No seu pequeno apartamento, Ellie ouviu Rankin até ao fim, desligou o televisor e voltou a concentrar-se na sua programação. Os únicos telefonemas para o exterior que lhe permitiam fazer eram para o lar de idosos em Janesville, Wisconsin. Todos os telefonemas do exterior, exceto os de Janesville, eram recusados e apresentadas desculpas corteses. Cartas de Der Heer, Valerian e da sua velha amiga do colégio Becky Ellenbogen arquivava-as ela sem as abrir. Chegaram diversas mensagens de Palmer Joss por correio expresso, e depois por mensageiro, da Carolina do Sul. Ela sentia-se muito mais tentada a ler essas do que as outras, mas não lia. Escreveu-lhe um bilhete que dizia apenas: «Meu caro Palmer: Ainda não. Ellie» e mandou-o para o correio sem remetente. Não tinha maneira nenhuma de saber se seria entregue. Um programa especial de televisão sobre a sua vida, feito sem seu consentimento, descrevia-a como mais reclusa, agora, do que Neil Armstrong; ou mesmo Greta Garbo. Ellie aceitava tudo isso com animosa equanimidade. Estava ocupada noutras coisas. Na realidade, trabalhava noite e dia. As proibições quanto a comunicação com o mundo exterior não se estendiam a colaboração puramente científica e, através de telerrede assíncrona de canal aberto, ela e Vaygay organizaram um programa de investigação a longo prazo. Entre os objetos a examinar encontravam-se as imediações de Sagitário A no centro da Galáxia e a grande fonte de rádio extragaláctica Cygnus A. Os telescópios Argus eram utilizados como parte de um sistema faseado, ligado aos telescópios soviéticos de Samarcanda. Em conjunto, o sistema americano-soviético atuava como se fizesse parte de um único radiotelescópio do tamanho da Terra. Operando num comprimento de onda de poucos centímetros, podiam analisar fontes de emissão de rádio tão pequenas como o sistema solar interior se estivessem tão distantes como o centro da Galáxia. Preocupava-a o fato de isso não ser suficientemente bom, de os dois buracos negros em órbitas serem consideravelmente mais pequenos do que isso. No entanto, um programa de monitorização contínua poderia desvendar alguma coisa. Do que realmente precisavam, na sua opinião, era de um radiotelescópio lançado por veículo espacial para o outro lado do Sol e que trabalhasse conjugado com radiotelescópios na Terra. Os seres humanos poderiam criar assim um telescópio tendo efetivamente as dimensões da órbita da Terra. Com ele, calculava, conseguiriam analisar qualquer coisa do tamanho da Terra no centro da Galáxia. Ou talvez do tamanho da estação. Passava a maior parte do seu tempo a escrever, a modificar programas existentes para o Cray 21 e a redigir um relato, tão minucioso quanto possível, dos acontecimentos proeminentes que tinham sido comprimidos nos vinte minutos de tempo terrestre após terem ativado a Máquina. A meio do trabalho apercebeu-se de que estava a escrever samizdat: tecnologia da máquina de escrever e do papel químico. Fechou o original e duas cópias no seu cofre — ao lado de uma cópia já amarelecida da Decisão Hadden —, escondeu a terceira cópia atrás de um painel solto do compartimento eletrônico do telescópio 49 e queimou o papel químico, o que produziu um fumo preto e acre. Ao fim de seis semanas tinham acabado a reprogramação e, precisamente quando os seus pensamentos voltavam a fixar-se em Palmer Joss, ele apresentou-se pessoalmente no portão principal de Argus. O seu caminho tinha sido aberto mediante alguns telefonemas de um assistente especial da presidente, o qual, claro, Joss conhecia havia vários anos. Mesmo ali no Sudoeste, onde reinavam códigos de vestuário prático, ele apareceu, como sempre, de casaco, camisa branca e gravata. Ela deu-lhe a fronde de palmeira, agradeceu-lhe o medalhão e, apesar das recomendações de Kitz para manter secreta a sua experiência ilusória, contou-lhe imediatamente tudo. Adotaram a prática dos colegas soviéticos de Ellie, que, sempre que era necessário dizer qualquer coisa politicamente heterodoxa, descobriam a necessidade urgente de um passeio higiênico. De vez em quando ele parava e, como veria um observador distante, inclinava-se para ela. De todas as vezes, Ellie dava-lhe o braço e continuavam a andar. Ele escutava compreensivamente, inteligentemente, na verdade generosamente — sobretudo tratando-se de alguém cujas doutrinas deviam, pensava ela, estar a ser abaladas nos próprios alicerces pelo relato de Ellie… se lhes dava algum crédito. Depois de toda a relutância de Joss, na altura em que a Mensagem começara a ser recebida, ela estava finalmente a mostrar-lhe Argus. Ele era uma companhia agradável e Ellie sentia-se feliz por vê-lo. Teve pena de não ter estado menos preocupada quando o vira a última vez, em Washington. Aparentemente ao acaso, subiram a estreita escada exterior de metal que atravessava a base do telescópio 49. O espetáculo proporcionado por cento e trinta radiotelescópios — muitos deles material rolante no seu próprio sistema de vias férreas — não tinha nada que se lhe assemelhasse na Terra. No compartimento eletrônico, ela afastou o painel e retirou um sobrescrito volumoso com o nome de Joss. Ele meteu-o na algibeira interior do casaco, onde fez uma saliência discernível. Ellie falou-lhe dos protocolos de observação de Sag A e Cyg A e do seu programa para o computador. — É muito demorado, mesmo com o Cray, calcular pi até qualquer coisa como dez à décima… e nós não sabemos se o que procuramos está em pi. Eles disseram mais ou menos que não estava. Pode estar em e. Pode tratar-se de um dos membros da família de números transcendentes de que falaram a Vaygay. Pode ser um outro número qualquer completamente diferente. Por isso, uma abordagem de força bruta ignorante — como calcular eternamente números transcendentais exeqüíveis — é uma perda de tempo. Mas aqui em Argus temos algoritmos de decriptogravação muito sofisticados, concebidos para descobrir padrões num sinal, concebidos para extrair e mostrar qualquer coisa que pareça não casual. Por isso, reescrevi os programas… Pela expressão do rosto dele, receou não estar a ser clara. Fez um pequeno desvio no monólogo: — … mas não para calcular os dígitos de um número como pi, imprimi-los e apresentá-los para inspeção. Não há tempo suficiente para tal. Em lugar disso, o programa corre através dos dígitos em pi e só pára para pensar quando surge alguma seqüência anômala de zeros e uns. Compreende o que estou a dizer? Qualquer coisa não ao acaso. Por probabilidade, haverá alguns zeros e uns, claro. Dez por cento dos dígitos serão zeros e outros dez por cento serão uns. Em média. Quanto mais dígitos percorrermos de enfiada, tanto maiores serão as seqüências de zeros e uns puros que obteremos por acaso. O programa sabe o que estatisticamente se espera, e só presta atenção a seqüências inesperadamente longas de zeros e uns. E não procura apenas na base dez. — Não compreendo. Se observarem ao acaso números suficientes, não obterão qualquer padrão que queiram simplesmente por acaso? — Com certeza. Mas pode-se calcular em que medida isso é provável. Se obtemos uma mensagem muito completa logo ao princípio, sabemos que não pode ser por acaso. Por isso, todos os dias, nas primeiras horas da manhã, o computador trabalha neste problema. Não entram nenhuns dados do mundo exterior. E por enquanto não saem nenhuns dados do mundo interior. Limita-se a percorrer as séries ótimas de expansão para pi e observa os dígitos a voar. Mete-se só na sua vida, digamos. A não ser que descubra alguma coisa, não fala se lhe não falarem. É assim como se estivesse a contemplar o umbigo. — Deus sabe que não sou nada matemático. Mas pode dar-me um exemplo? — Com certeza. Procurou um bocado de papel nas algibeiras do fato-macaco e não encontrou nenhum. Pensou meter a mão na algibeira interior do casaco dele, retirar o sobrescrito que acabara de lhe dar e escrever nele, mas achou que era muito arriscado, ali, em campo aberto. Passados momentos, ele compreendeu e estendeu-lhe um livrinho de apontamentos. — Obrigada. Pi começa por 3,1415926… Como pode ver, os dígitos variam muito ao acaso. Certo, um aparece duas vezes nos primeiros quatro dígitos, mas, depois de prosseguirmos durante um bocado, estabelece-se a média. Cada dígito — 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 — aparece quase exatamente dez por cento das vezes depois de termos acumulado dígitos suficientes. Ocasionalmente, obtemos alguns dígitos consecutivos que são os mesmos — 4444, por exemplo —, mas não mais do que seria estatisticamente de esperar. Agora imagine que estava a percorrer alegremente estes dígitos e, de súbito, só encontrava quatros. Centenas de quatros todos de enfiada. Isso não podia transmitir nenhuma informação, mas também não podia ser um bambúrrio estatístico. Podiam-se calcular os dígitos de pi durante toda a idade do universo e, se os dígitos fossem ocasionais, nunca se chegaria suficientemente fundo para obter uma centena de quatros consecutivos. — É como a exploração que fez para a Mensagem. Com estes radiotelescópios. — Sim. Em ambos os casos procurávamos um sinal que se encontrava bem fora do ruído, qualquer coisa que não pode ser apenas um bambúrrio estatístico. — Mas não tem de ser uma centena de quatros… pois não? Podia falar-nos? — Certo. Imagine que passado algum tempo obtemos uma longa seqüência apenas de zeros e uns. Assim, tal como fizemos com a Mensagem, podíamos extrair um desenho, se lá houvesse algum. Compreenda, podia ser qualquer coisa. — Quer dizer que podia decodificar um desenho escondido em pi e poderia ser uma salada de letras hebraicas? — Com certeza. Grandes letras pretas talhadas em pedra. Ele olhou-a ironicamente. — Desculpe, Eleanor, mas não acha que está a ser um bocadinho… indireta demais? Não pertence a nenhuma ordem silenciosa de monjas budistas. Por que não me conta simplesmente a sua história? — Palmer, se eu tivesse provas sólidas, falaria. Mas, não tendo nenhumas, as pessoas como o Kitz dirão que estou a mentir. Ou com alucinações. É por isso que esse manuscrito está na sua algibeira interior. Você vai lacrá-lo, datá-lo, reconhecê-lo pelo notário e guardá-lo num cofre de depósito. Se me acontecer alguma coisa, pode divulgá-lo ao mundo. Dou-lhe autoridade total para fazer o que quiser dele. — E se não lhe acontecer nada? — Se não me acontecer nada? Então, quando encontrarmos o que procuramos, esse manuscrito confirmará a nossa história. Se encontrarmos evidência de um buraco negro duplo no Centro Galáctico, ou alguma imensa construção artificial em Cygnus A, ou uma mensagem oculta dentro de pi, isto — deu-lhe uma leve palmadinha no peito — será a minha prova. Então falarei… Entretanto, não o perca. — Continuo a não compreender — confessou ele. — Sabemos que existe uma ordem matemática no universo. A lei da gravidade e tudo isso. Em que é isto diferente? Digamos que existe ordem dentro dos dígitos de pi. E depois? — Não. Não vê? Isto seria diferente. Isto não é apenas começar o universo com algumas leis matemáticas precisas que determinam a física e a química. Isto é uma mensagem. Quem quer que faz o universo oculta mensagens em números transcendentes para que elas sejam lidas quinze mil milhões de anos depois, quando a vida inteligente finalmente evoluir. Critiquei-o, e ao Rankin, quando nos encontramos pela primeira vez, por não compreenderem isso. «Se Deus quisesse que soubéssemos que existia, por que não nos enviaria uma mensagem sem ambigüidades?», perguntei. Lembra-se? — Lembro-me muito bem. Você pensa que Deus é um matemático. — Qualquer coisa do gênero. Se o que nos dizem é verdade. Se isto não é uma busca sem objetivo. Se há uma mensagem oculta em pi e não um da infinidade de outros números transcendentes. Uma quantidade de «ses», como vê. — Está a procurar a Revelação na aritmética. Conheço uma maneira melhor. — Palmer, esta é a única maneira. Esta é a única coisa capaz de convencer um cético. Imagine que descobrimos qualquer coisa. Não tem de ser tremendamente complicado. Basta que seja qualquer coisa mais metódica que possa acumular por acaso todos esses dígitos em pi. Só disso que precisamos. Então, matemáticos de todo o mundo poderão encontrar exatamente o mesmo padrão ou mensagem ou seja lá o que venha a ser. Então não haverá divisões sectárias. Toda a gente começará a ler a mesma Escritura. Então ninguém poderá argumentar que o milagre-chave da religião foi truque de qualquer prestidigitador, ou que os historiadores falsificaram os registros, ou que não passa tudo de histeria, ou ilusão, ou um progenitor-substituto para quando crescemos. Toda a gente poderá ser um crente. — Não pode ter a certeza de que encontra alguma coisa. Pode esconder-se aqui e computar até as galinhas terem dentes. Ou pode sair e contar a sua história ao mundo. Mais cedo ou mais tarde terá de escolher. — Espero não ter de escolher, Palmer. Primeiro, a evidência concreta; depois, a divulgação pública. Caso contrário… Não vê como nos tornaríamos vulneráveis? Não falo por mim própria, mas… Ele abanou a cabeça, quase imperceptivelmente. Brincava-lhe um sorriso nos cantos dos lábios. Detectara um fator irônico nas circunstâncias deles. — Por que está tão ansioso para que eu conte a minha história? — perguntou Ellie. Talvez ele tenha considerado que se tratava de uma pergunta retórica. Fosse como fosse, não respondeu, e ela continuou: — Não acha que se deu uma estranha… inversão nas nossas posições? Aqui estou eu, portadora da profunda experiência religiosa que não posso provar… para ser franca, Palmer, mal posso compreendê-la. E aqui está você, o cético endurecido, a tentar — com mais êxito do que eu jamais consegui — ser generoso com o crédulo… — Oh, não, Eleanor! Eu não sou um cético. Eu sou um crente. — É? A história que tenho para contar não é exatamente acerca de castigo e recompensa. Não é exatamente Advento e Êxtase. Não há nela uma palavra a respeito de Jesus. Parte da minha mensagem diz que nós não somos fundamentais para o objetivo do cosmo. O que me aconteceu faz-nos parecer a todos muito pequenos. — Pois faz. Mas também faz Deus muito grande. Ela olhou-o um momento e apressou-se a continuar: — Sabe que é tão verdade como a Terra correr à volta do Sol que os poderes deste mundo — os poderes religiosos, os poderes seculares — teimaram em tempos que a Terra não se mexia nada. Estavam todos ocupados a ser poderosos. Ou, pelo menos, a fingir que eram poderosos. E a verdade fê-los sentirem-se muito pequenos. A verdade assustou-os; minou os seus poderes. Por isso eles a suprimiram. Essas pessoas achavam a verdade perigosa. Tem a certeza de que sabe o que implica acreditar em mim? — Tenho andado à procura, Eleanor. Acredite-me, ao fim de todos estes anos conheço a verdade quando a vejo. Qualquer fé que admira a verdade, que luta para conhecer Deus, tem de ser suficientemente corajosa para abranger o universo. Refiro-me ao universo real. Todos esses anos-luz. Todos esses mundos. Penso na extensão do seu universo, nas oportunidades que oferece ao Criador, e falta-me a respiração. É muito melhor do que engarrafá-lo num pequeno mundo. Nunca me agradou a idéia de a Terra ser o escabelo verde de Deus. Era excessivamente tranqüilizadora, como uma estória para crianças… como um tranqüilizante. Mas o seu universo tem espaço suficiente, e tempo suficiente, para a espécie de Deus em que acredito. Digo-lhe que não precisa de mais provas. Já existem provas bastantes. Cygnus A e tudo isso são coisas apenas para os cientistas. Você julga que será difícil convencer a gente comum de que está a dizer a verdade. Eu acho que será fácil, uma canja, como costuma dizer-se. Julga que a sua história é excessivamente peculiar, excessivamente estranha. Mas eu ouvi-a antes. Conheço-a bem. E aposto que você também. Fechou os olhos e passado um momento recitou: Ele sonhou e, pasmai, uma escada ergueu-se na Terra, e o cimo dela chegou ao Céu: e, pasmai, os anjos de Deus a subirem-na e a descerem-na… certamente o Senhor está neste lugar; e eu não sabia… Esta não é outra que não a Casa de Deus, e esta é a porta do Céu. Ele deixara-se levar um pouco pelo entusiasmo, como se estivesse a pregar para multidões do púlpito de uma grande catedral, e, quando abriu os olhos, fê-lo com um pequeno sorriso auto-depreciativo. Desceram uma vasta avenida, flanqueada à esquerda e à direita por enormes radiotelescópios caiados de branco a perscrutar o céu, e instantes depois ele falou num tom mais coloquial: — A sua história foi prevista. Aconteceu antes. Algures, dentro de si, você deve tê-lo sabido. Nenhum dos pormenores que apresenta constam do Livro do Gênesis. Claro que não. Como poderiam constar? O relato do Gênesis estava certo para o tempo de Jacob. Assim como o seu testemunho está certo para este tempo, para o nosso tempo. As pessoas vão acreditá-la, Eleanor. Milhões delas. Em todo o mundo. Tenho a certeza… Ellie abanou a cabeça e caminharam mais um momento em silêncio, antes de ele continuar: — Seja, pronto. Compreendo. Demore o tempo que tiver de demorar. Mas, se houver alguma maneira de apressar as coisas, utilize-a… por mim. Falta menos de um ano para o Milênio. — Eu também compreendo. Tenha paciência comigo durante mais uns meses. Se até lá não encontrarmos alguma coisa em pi, considerarei a idéia de tornar público o que aconteceu lá em cima. Antes de 1 de Janeiro. Talvez Eda e os outros estejam dispostos a falar também. De acordo? Retrocederam em silêncio na direção do edifício da administração de Argus. Os aspersores estavam a regar o parco relvado e eles contornaram uma poça de água que, naquela terra ressequida, parecia estranha, deslocada. — Alguma vez foi casada? — perguntou ele. — Não, nunca fui. Creio que tenho andado demasiado ocupada. — Alguma vez esteve apaixonada? — a pergunta foi franca, natural. — Estive a meio caminho, meia dúzia de vezes. Mas… — olhou para o telescópio mais próximo — havia sempre tanto ruído que o sinal era difícil de encontrar. E você? — Nunca — respondeu sem hesitar. Fez uma pausa e depois acrescentou, com um leve sorriso: — Mas eu tenho fé. Ela resolveu não aprofundar, naquele momento, aquela ambigüidade e subiram o curto lanço de degraus para examinar o computador mainframe. CAPÍTULO XXIV A assinatura do artista Atentai, falo-vos de um mistério; não dormiremos todos, mas seremos todos mudados.      CORÍNTIOS, 15:51 O universo parece… ter sido determinado e ordenado de acordo com número, pela antevisão e pela mente do criador de todas as coisas; pois o padrão foi fixado, como um esboço preliminar, pelo domínio do número preexistente na mente do Deus criador do mundo.      NICOMACO DE GERASA — aritmética, 6 (cerca de 100 d.C.) Ellie correu pela escada do lar de idosos acima e, na varanda recém-pintada de verde, assinalada a intervalos regulares por cadeiras de balanço vazias, viu John Staughton — curvado, imóvel, de braços caídos como pesos mortos. Segurava na mão direita um saco de compras no qual ela vislumbrou uma touca de banho transparente, um estojo de maquilagem florido e dois chinelos de quarto enfeitados com pompons cor-de-rosa. — Ela morreu — disse Staughton, de olhos fixos. — Não entres — pediu. — Não a vejas. Ela detestaria que a visses assim. Sabes quanto orgulho tinha no seu aspecto. De qualquer modo, ela não está ali. Quase maquinalmente, levada pela longa prática e por ressentimentos ainda não abandonados, sentiu-se tentada a virar-lhe as costas e a entrar, apesar de tudo. Estava preparada, mesmo agora, para o desafiar por uma questão de princípio? Mas qual era exatamente o princípio? Pela expressão destroçada do seu rosto, não havia dúvidas quanto à autenticidade do seu remorso. Ele amara a mãe dela. Talvez, pensou, a tenha amado mais do que eu — avassalou-a uma onda de auto-recriminação. A mãe fora tão débil durante tanto tempo que Ellie imaginara muitas vezes como reagiria quando o momento chegasse. Recordou como a mãe era bonita no retrato que Staughton lhe enviara e, de súbito, mal-grado os ensaios que fizera para aquele momento, foi sacudida por soluços. Surpreendido com a sua angústia, Staughton mexeu-se para a confortar. Mas ela levantou a mão e, com esforço evidente, recuperou o autodomínio. Nem mesmo numa altura daquelas era capaz de o abraçar. Eram desconhecidos, estranhos tenuemente ligados por um cadáver. Mas ela errara — sabia-o no âmago do seu ser — ao culpar Staughton pela morte do seu pai. — Tenho uma coisa para ti — disse ele, a remexer no saco das compras. Algum do conteúdo circulou entre o fundo e a parte de cima, e ela viu, além do que já vira, uma carteira de imitação de cabedal e uma caixa de plástico de guardar dentaduras. Teve de desviar o olhar. Por fim, ele endireitou-se e apresentou um sobrescrito que o tempo envelhecera. Tinha escritas as palavras «Para a Eleanor». Ao reconhecer a caligrafia da mãe, Ellie fez um gesto para lhe pegar. Mas Staughton recuou um passo, assustado, de sobrescrito levantado à frente da cara, como se ela tivesse feito menção de lhe bater. — Espera — pediu. — Espera. Sei que nunca nos entendemos. Mas faz-me este único favor: não leias esta carta antes desta noite! Está bem? O desgosto fazia-o parecer dez anos mais velho. — Por quê? — A tua pergunta favorita! Faz-me apenas esta gentileza. É pedir demasiado? — Tem razão. Não é pedir demasiado. Desculpe. Ele olhou-a francamente nos olhos e disse: — Seja o que for que te tenha acontecido naquela Máquina, talvez te tenha mudado. — Desejo que sim, John. Telefonou a Joss e pediu-lhe que se encarregasse do serviço fúnebre. — Não preciso de lhe dizer que não sou religiosa. Mas havia ocasiões em que a minha mãe era. Você é a única pessoa que eu gostaria que o fizesse e tenho a certeza de que o meu padrasto aprovará. Joss prometeu-lhe que chegaria no primeiro avião. No seu quarto de hotel, depois de jantar cedo, Ellie apalpou o sobrescrito, acariciou todas as suas rugas, todos os pontos desgastados da superfície. Era velho. A mãe devia tê-lo escrito havia anos e trazido nalgum compartimento da bolsa, debatendo consigo mesma se deveria entregá-lo ou não à filha. Não parecia ter sido fechado de novo, recentemente, e Ellie perguntou a si mesma se Staughton o lera. Parte dela ansiava por abri-lo, mas outra parte hesitava, com uma espécie de ressentimento. Ficou muito tempo sentada na mofenta cadeira de braços, a pensar, com os joelhos dobrados e levantados para o queixo. Soou um besouro e o carreto não completamente silencioso do seu telefax despertou. Estava ligado ao computador de Argus. Embora lhe recordasse tempos antigos, agora não havia verdadeiramente nenhuma urgência. O que quer que fosse que o computador encontrasse, não fugiria; não se poria com a rotação da Terra. Se havia uma mensagem escondida dentro de pi, esperaria eternamente por ela. Voltou a examinar o sobrescrito, mas o eco do besouro intrometeu-se. Se havia conteúdo dentro de um número transcendental, só podia ter sido introduzido na geometria do universo logo no princípio. Este seu novo projeto era de teologia experimental. Mas o mesmo era toda a ciência, pensou. «ATENÇÃO», imprimiu o computador no écran do telefax. Ellie pensou no pai… bem, no simulacro do pai… Pensou nos zeladores com a sua rede de túneis através da Galáxia. Tinham testemunhado, e talvez influenciado, a origem e o desenvolvimento da vida em milhões de mundos. Estavam a construir galáxias, a isolar setores do universo. Podiam controlar pelo menos uma espécie de viagem no tempo limitada. Eram deuses para além do imaginário piedoso de quase todas as religiões — pelo menos de todas as religiões ocidentais. Mas até eles tinham as suas limitações. Não tinham introduzido a mensagem no número transcendental e nem sequer sabiam lê-la. Os construtores de túneis e os inscritores de pi eram quaisquer outros. Já não viviam aqui. Não tinham deixado nenhum endereço. Ellie supôs que, quando os construtores de túneis partiram, aqueles que eventualmente viriam a ser os zeladores se tinham tornado crianças abandonadas. Como ela, como ela. Pensou na hipótese de Eda, de que os túneis eram buracos de vermes, distribuídos a intervalos convenientes à volta de inúmeras estrelas nesta e noutras galáxias. Pareciam buracos negros, mas tinham propriedades e origens diferentes. Não eram exatamente isentos de massa, porque ela vira-os deixar esteiras gravitacionais nos resíduos em órbita no sistema de Vega. E através deles passavam e ligavam a Galáxia seres e naves de muitas espécies. Buracos de vermes. No calão revelador da física teórica, o universo era a sua maçã e alguém abrira túneis através dela, enchendo o interior de caminhos que se entrecruzavam no miolo. Para um bacilo que vivia na superfície era um milagre. Mas um ser que se encontrasse fora da maçã poderia sentir-se menos impressionado. Dessa perspectiva, os construtores de túneis eram apenas uma contrariedade. Mas se os construtores de túneis são vermes, pensou, quem somos nós? O computador de Argus entrara profundamente em pi, mais profundamente do que alguma entidade da Terra, humano ou máquina, jamais penetrara, embora não tanto como os zeladores se tinham aventurado a fazer. Era demasiado cedo, pensou, para aquilo agora ser a Mensagem, havia tanto tempo por decriptografar acerca da qual Theodore Arroway lhe falara na praia daquele mar que não vinha nos mapas. Talvez fosse apenas uma aceleração, uma antestréia de futuras atrações, um encorajamento para prosseguimento da exploração, um símbolo para que os humanos não desanimassem. Fosse o que fosse, não poderia ser a mensagem com que os zeladores se debatiam. Talvez houvesse mensagens fáceis e mensagens difíceis encerradas nos vários números transcendentais e o computador de Argus tivesse descoberto a mais fácil. Com ajuda. Na estação, ela aprendera uma espécie de humildade, fora-lhe lembrado quanto era pouco o que os habitantes da Terra realmente sabiam. Podia haver, pensou, tantas categorias de seres mais avançados do que os humanos quantas há entre nós e as formigas, ou talvez mesmo entre nós e os vírus. Mas isso não a deprimira. Ao invés de uma resignação descoroçoada, despertara nela um sentimento crescente de maravilhamento. Havia tanto a que aspirar agora! Era como o passo do liceu para o colégio, da maneira como tudo se encaminhava naturalmente para a necessidade de fazer um esforço continuado e disciplinado para compreender alguma coisa. No liceu, ela apreendera o trabalho do seu curso mais depressa do que quase todos os outros. No colégio descobrira muita gente mais lesta do que ela. Houvera a mesma sensação de incremento de dificuldade e desafio quando fizera o curso de pós-graduação e quando se tornara astrônoma profissional. Em cada estágio encontrara cientistas mais dotados do que ela e cada estágio fora mais excitante do que o anterior. Deixa rolar as revelações, pensou, a olhar para o telefax. Estava preparada. «PROBLEMA DE TRANSMISSÃO. S/Nº 10. MANTENHA-SE ATENTA, POR FAVOR». Estava ligada ao computador de Argus por um satélite relais de comunicações chamado Defcom Alpha. Talvez tivesse havido um problema de controle-atitude, ou um erro de programação. Antes que tivesse tempo de pensar mais no assunto descobriu que tinha aberto o sobrescrito. LOJA DE FERRAGENS ARROWAY, dizia o cabeçalho, e o tipo era sem dúvida o da velha Royal que o pai tivera em casa para datilografar tanto assuntos comerciais como particulares. «13 de Junho de 1964», estava escrito no canto superior direito. Ela tinha quinze anos nessa altura. Não podia ter sido o pai que escrevera a carta; já estava morto havia anos. Um olhar para o fundo da página revelou-lhe a caligrafia clara da mãe. Minha querida Ellie: Agora, que morri, espero que o teu coração consiga perdoar-me. Sei que cometi um pecado contra ti, e não somente contra ti. Não podia suportar a idéia de quanto me odiarias se soubesses a verdade. Foi por isso que não tive a coragem de te dizer enquanto fui viva. Sei quanto amaste Ted Arroway e quero que saibas que também o amei. Ainda amo. Mas ele não era o teu verdadeiro pai. O teu verdadeiro pai é John Staughton. Cometi um erro muito grande. Não o devia ter feito e fui fraca, mas se não fosse isso, não estarias no mundo; portanto, sê generosa quando pensares em mim. Ted sabia e perdoou-me, e nós combinamos que nunca te diríamos. Mas neste momento olho pela janela e vejo-te no quintal das traseiras. Estás lá sentada a pensar em estrelas e coisas que eu nunca consegui compreender e orgulho-me muito de ti. Fazes uma questão tão grande quanto à verdade, que me pareceu justo que soubesses esta verdade a respeito de ti própria. Quero dizer, do teu começo. Se o John ainda for vivo, então terá sido ele quem cedeu esta carta. Sei que o fará. É um homem melhor do que tu imaginas, Ellie. Tive sorte em reencontrá-lo. Talvez o detestes tanto porque alguma coisa dentro de ti descobriu a verdade. Mas tu detestá-lo realmente porque ele não é Theodore Arroway. Eu sei. Continuas sentada lá fora. Não te mexeste desde que comecei a escrever esta carta. Estás somente a pensar. Espero e rezo para que assim aconteça, que encontres o que quer que procuras. Perdoa-me. Fui apenas humana. Com amor, Mãe. Ellie, que assimilara a carta num simples relance de olhos, releu-a imediatamente. Tinha dificuldade em respirar. Sentia as mãos úmidas. O impostor revelara-se, afinal, o artigo genuíno. Durante a maior parte da sua vida rejeitara o próprio pai sem ter a mínima consciência do que estava a fazer. Que força de caráter ele demonstrara durante todas aquelas suas explosões de adolescente em que o provocara por não ser seu pai, por não ter direito nenhum de lhe dizer o que devia fazer! O telefax chamou de novo, duas vezes. Agora convidava-a a premir a tecla de «responder». Mas ela não teve vontade de se levantar e aproximar-se dele. Teria de esperar. Pensou no pai… em Theodore Arroway, em John Staughton e na mãe. Eles tinham sacrificado muito por ela e ela estivera tão concentrada em si mesma que nem dera por isso. Desejou que Palmer estivesse ali consigo. O telefax besourou mais uma vez e o carreto movimentou-se hesitantemente, experimentalmente. Ela programara o computador para ser persistente, até mesmo um pouco inovador, para atrair a sua atenção se lhe parecesse que descobrira alguma coisa em pi. Mas agora estava demasiado entregue à tarefa de desfazer e reconstruir a mitologia da sua vida. A mãe devia ter estado sentada à secretária do quarto grande, no primeiro andar, a olhar pela janela enquanto pensava na maneira de redigir a carta, e o seu olhar detivera-se em Ellie aos quinze anos: desajeitada, ressentida, rebelde. A mãe fizera-lhe outra dádiva. Com aquela carta, Ellie retrocedera e encontrara-se a si mesma, tantos anos atrás. Aprendera tanto desde então! Ainda havia muito mais que aprender. Por cima da mesa onde se encontrava o telefax resmungador havia um espelho. Nele viu uma mulher nem nova nem velha, nem mãe nem filha. Tinham procedido bem ocultando-lhe a verdade. Ela não estivera suficientemente avançada para receber esse sinal, quanto mais para o decifrar. Passara a sua carreira a tentar estabelecer contato com os desconhecidos mais distantes e alienígenas, enquanto na sua própria vida praticamente não estabelecera contato com ninguém. Fora violenta, fogosa, no desmantelamento dos mitos da criação dos outros e ignorante da mentira existente no cerne da sua própria. Toda a sua vida estudara o universo, mas passara-lhe despercebida a sua mensagem mais clara: para pequenas criaturas como nós, a imensidade só é suportável através do amor. O computador de Argus foi tão persistente e inventivo nas suas tentativas para contactar com Eleanor Arroway que quase lhe transmitiu uma sensação de necessidade pessoal urgente de compartilhar a descoberta. A anomalia revelava-se muito nitidamente em aritmética de base onze, onde podia ser escrita inteiramente como zeros e uns. Comparado com o que tinha recebido de Vega, aquilo podia ser, na melhor das hipóteses, uma mensagem simples, mas o seu significado estatístico era elevado. O programa reagrupou os ditos numa quadriculação quadrada, um número igual de lado a lado e de cima a baixo. A primeira linha era uma fila ininterrupta de zeros, da esquerda para a direita. A segunda linha apresentava um único numeral, um, exatamente no meio, com zeros aos lados, à esquerda e à direita. Depois de mais algumas linhas formara-se um arco inequívoco, composto de uns. A figura geométrica simples tinha sido rapidamente construída, linha por linha, auto-refletora, rica de promessas. A última linha da figura emergiu, toda zeros, com exceção de um único um central. A linha subseqüente seria apenas de zeros, parte do enquadramento. Oculto nos padrões alternantes de dígitos, profundamente no interior do número transcendente, estava um círculo perfeito, com a sua forma traçada por unidades num campo de zeros. O universo era feito de propósito, dizia o círculo. Fosse em que galáxia fosse que uma pessoa se encontrasse, tomava a circunferência de um círculo, dividia-a pelo seu diâmetro, media com rigor bastante e descobria um milagre: outro círculo, desenhado quilômetros a jusante da vírgula decimal. Haveria mensagens mais ricas mais para o interior. Não importa o nosso aspecto, aquilo de que somos feitos, ou de onde viemos. Desde que vivemos neste universo e tenhamos um talento modesto para a matemática, mais cedo ou mais tarde descobri-lo-emos. Já aqui se encontra. Está dentro de tudo. Não precisamos de deixar o nosso planeta para o encontrarmos. No tecido do espaço e na natureza da matéria, como numa grande obra de arte, encontra-se, em letras pequenas, a assinatura do artista. Erguendo-se acima de humanos, deuses e demônios, subsumindo, zeladores e construtores de túneis, existe uma inteligência que antecede o universo. O círculo fechara-se. Ela encontrara o que andara a procurar. FIM NOTA DO AUTOR Embora tenha sido, evidentemente, influenciado por aqueles que conheço, nenhuma das personagens deste livro é um retrato exato de uma pessoa real. No entanto, deve muito à comunidade mundial SETI — um pequeno grupo de cientistas de todo o nosso pequeno planeta trabalhando em conjunto, por vezes perante obstáculos desencorajadores, à escuta de um sinal vindo do firmamento. Gostaria de reconhecer uma dívida especial de gratidão para com os pioneiros da SETI, Frank Drake, Phillip Morrison e o falecido I. S. Shklovskii. A procura de inteligência extraterrestre está agora a iniciar uma nova fase, com dois grandes programas em marcha: a exploração META/Sentinel de oito milhões de canais da Universidade de Harvard, patrocinada pela Sociedade Planetária sediada em Pasadena, e um programa ainda mais complexo sob os auspícios da National Aeronautics and Sace Administration. A minha esperança mais sentida em relação a este livro é que o ritmo da descoberta científica real o torne obsoleto. Vários amigos e colegas tiveram a gentileza de ler um rascunho inicial e/ou fazer comentários pormenorizados que influenciaram a forma presente do livro. Estou-lhes profundamente grato, e inclusivamente a Frank Drake, Pearl Druyan, Lester Grispoon, Irving Gruber,Jon Lomberg, Philip Morrison, Nancy Palmer, Will Provme, Stuart Shapiro, Steven Soter e Kip Thome. O Prof. Thorne deu-se ao trabalho de estudar o sistema de transporte galáctico aqui descrito, gerando cinqüenta linhas de equações na física gravitacional relevante. Devo conselhos proveitosos, quanto a estilo ou conteúdo, a Scott Meredith, Michael Korda, John Herman, Gregory Weber, Clifton Fadiman e ao falecido Theodore Sturgeon. Durante os muito estádios da preparação deste livro, Shirley Arden trabalhou longa e impecavelmente; estou-lhe muito grato, e a Kel Arden. Agradeço a Joshua Lederberg ter-me sugerido pela primeira vez, há muitos anos e porventura de brincadeira, que poderia viver uma forma elevada de inteligência no centro da Galáxia da Via Láctea. A idéia tem antecedentes, como todas as idéias, e algo similar parece ter sido encarado por volta de 1710 por Thomas Wright, a primeira pessoa a mencionar explicitamente que a Galáxia podia ter um centro. No frontispício do livro está reproduzida uma xilogravura de Wright representando o centro da Galáxia. Este romance derivou de um estudo para um filme que Ann Druyan e eu escrevemos em 1980-81. Lynda Obst e Gentry Lee facilitaram essa fase inicial. Em todas as fases da escrita beneficiei tremendamente do auxílio de Ann Druyan — desde a conceptualização inicial do enredo e das personagens fulcrais até à revisão final das provas. O que com ela aprendi ao longo de todo o processo é o que mais caro me é no tocante à escrita deste livro. ÍNDICE PARTE I — A MENSAGEM Capítulo I Números transcendentes Capítulo II Luz coerente Capítulo III Ruído branco Capítulo IV Números primos Capítulo V Algoritmo descriptografador Capítulo VI Palimpsesto Capítulo VII O etanol em W-3 Capítulo VIII Acesso ao acaso Capítulo IX O numinoso PARTE II — A MÁQUINA Capítulo X Precessão dos equinócios Capítulo XI O Consórcio Mundial da Mensagem Capítulo XII O isômero delta-um Capítulo XIII Babilônia Capítulo XIV Oscilador harmônico. Capítulo XV Tubo de érbio. Capítulo XVI Os anciãos do ozono. Capítulo XVII O sonho das formigas Capítulo XVIII Superunificação PARTE III — A GALÁXIA Capítulo XIX Singularidade nua Capítulo XX Grand Central Station Capítulo XXI Causalidade Capítulo XXII Gilgamesh Capítulo XXIII Reprogramação Capítulo XXIV A assinatura do artista notes Notas 1 Professor universitário cuja categoria se situa entre a de professor catedrático e a de assistente (N. da T.) 2 Tanga usada pelos Hindus na Índia. (N. da T.) 3 Como este livro trata da inteligência humana e da inteligência extraterrestre, convém esclarecer que esta Intelligence aqui é outra e se traduz por «informação»: serviços de informação ou, menos eufemisticamente, espionagem (N. da T.) 4 Além de termo de calão para significar uma substância suja, viscosa, repugnante, gook passou a ser uma maneira pejorativa de dizer «oriental», principalmente depois das guerras da Coreia e do Vietname. (N. da T.) 5 Cometer o mesmo erro outra vez. (N. da T.) 6 As duas formas significam «queimar», embora o burn down tenha talvez um pouco mais de força, signifique «destruir», «arrasar pelo fogo» (N. da T.) 7 To screze, simplesmente, é «aparafusar», «atarraxar», etc. Com a partícula up passa a ser um termo de calão: «lixar» ou, pior, «copular» etc. Não se emprega, de fato, a partícula down (N. da T.) 8 Traduzido literalmente, é estar de «cabeça sobre os pés de amor», mas significa «loucamente apaixonado», «perdido de amor», «doido de amor», etc. Head over heels, somente, também significa «rolar às cambalhotas».. (N. da T.) 9 A palavra inglesa usada é straight, cuja tradução correta, neste contexto, deveria ser «franco». Mas o comentário do interlocutor da cientista obriga a esta pequena incorreção. (N. da T.) 10 A hilaridade devia-se ao fato de Lorde do Selo Privado (funcionário que tem a seu cargo o uso do selo do Estado em assuntos de pequena importância) se dizer em inglês Lord Privy Seal, e privy também significar «latrina». (N. da T.) 11 Palavra anglo-indiana designativa de alguém com determinada ocupação. (N. da T.) 12 Carruagem aberta de quatro rodas, puxada a cavalos, antigamente usada na Rússia. (N. da T.) 13 Mainframe computer: computador de grandes dimensões e grande capacidade, com uma grande unidade central de processamento e uma grande memória. (N. da T.) 14 O termo usado pelo autor é rapture, que, além de «êxtase» também significa, no inglês americano, «transporte de uma pessoa de um lugar para outro, especialmente para o céu». Creio que é neste último sentido que o autor usa a palavra. (N. da T.) 15 Dos três inventos de Hadden, Adnix é a aglutinação da abreviatura de advertise e seus derivados («anunciar», «anúncio», «publicidade» etc.) e nix, que em calão significa «nada» «nicles». Temos, portanto, nicles, ou veto, de anúncios. Em Preachnix, como facilmente se deduz, o veto vai para a pregação, para os sermões. Em Jivenix há uma certa mordacidade, pois, além de calão relacionado com a música de swing e jazz e seus entusiastas, jive significa «pessoa loquaz, de falas doces ou insinceras». (N. da T.) 16 É qualquer de vários insetos verdes do gênero «licrocentru» e aparentados com os gafanhotos e os grilos. O macho tem, nas asas, órgãos especializados que, ao roçarem um no outro, produzem um som característico. (N. da T.) 17 Tapete japonês de palha de arroz coberto por uma esteira de junco, usado nos quartos japoneses. (N. da T.) 18 Faixa tradicional usada pelas mulheres e crianças japonesas. (N. da T.)